O quadro FlatOut Classics se dedica ao antigomobilismo e aos neocolecionáveis (youngtimers) estrangeiros e nacionais, dos anos 20 ao começo dos anos 2000. Carros originais ou preparados ao estilo da época.
São matérias especiais, feitas para serem saboreadas como as das clássicas revistas que amamos.
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O último 911 realmente purista?
Vivemos uma era de transição. Evolutiva, sem dúvida, mas não necessariamente saborosa. Morte do câmbio manual, da admissão naturalmente aspirada, da era sem assistências… será que, num futuro não tão distante, do motor a combustão em si? Esse breve pensamento é destroçado pelo canto feroz, rouco e agudo do boxer 3.8 aspirado do Porsche 911 GT3 997.2 de Daniel – como veremos, um dos menos rodados do mundo – , devorando a primeira das seis marchas e esmagando as minhas costas contra o encosto enquanto estilingamos em uma curta arrancada na área de serviço que passa atrás do antigo anel externo de Interlagos. O ronco ressoa nas paredes e guard-rails pela janela entre-aberta. Entorpece e vicia. Rimos. E outra cutucada funda no acelerador.
O GT3 997.2 é considerado como o ultimate 911, o cruzamento máximo entre a evolução técnica e o purismo raiz, por uma série de razões. Foi a última geração “analógica” do 911 – essencialmente dependente do piloto e muito menos conduzido pela ECU e seu batalhão de unidades em paralelo que seus sucessores.
No volante, nada de teclas multifuncionais cobrindo os raios. Freio de mão acionado por alavanca. Câmbio manual com embreagem pesada e nada de sincronização automática de rotações: se errar o punta-tacco, as rodas travam como manda o figurino da velha guarda. Direção hidráulica, transmitindo a textura do asfalto e as vibrações sem os filtros dos motores elétricos – mais eficazes, menos saborosos. “Ao mesmo tempo em que ele é todo seco, espartano, no aspecto mecânico e na forma como ele se comporta, é um carro que incorpora uma série de tecnologias de motor, de conforto e de luxo na cabine”, complementa Daniel.
E ao olhá-lo de perfil, o legado histórico fica claro: este é o último Porsche 911 com o entre-eixos realmente curto, com 2,35 m. Na geração 991 e na atual 992, passamos para 2,45 m, o que o deixou mais previsível e moderado dinamicamente. O 997 também é celebrado por resgatar as linhas mais puristas do 993 em relação ao 996, ainda que este tenha muitos fãs.
Tudo isso dito, é claro que celebramos carros atuais como o 911R, que acenam ao passado com o volante nu de comandos adicionais, três pedais e algum alívio de peso. Mas basta a primeira cutucada em um 997 para entendermos a diferença entre acenar e ser.
Falta a coroa dessa lista de atributos que elenquei. O 997 trouxe em suas versões mais bravas a geração final do lendário motor Mezger. Era o fim do ciclo de powertrain mais importante da Porsche.
O presente final de Hans Mezger
Hans Mezger. O homem por trás do trem-de-válvulas do “Four Cam” Fuhrmann do 356 Carrera, dos motores de F1 da Porsche dos anos 60 e 80, dos flat-6 aircooled do 911, do flat-8 do 908, do flat-12 do 917 (este, tecnicamente um V12 a 180º) e do Turbopanzer de mais de 1.000 cv do 917/10. É como imaginar a Ferrari sem Pininfarina. Na ausência de Hans Mezger (conheça sua história aqui), dificilmente a história da Porsche teria sido a mesma.
Em seu sétimo ano de aposentadoria, Mezger decidiu adaptar para as ruas um projeto de competição para vestir o cofre do Porsche 911 GT3 da geração 996. Ele selecionou o motor do 911 GT1 de Le Mans, cujo bloco foi baseado no flat-6 do esporte-protótipo Porsche 962 e cujos cabeçotes eram derivados do Porsche 959, e em cima dele, criou o M96/72. Cárter seco, duas bombas de óleo (uma para cada cabeçote), camisas de cilindro de Nikasil, bielas de titânio, galerias de óleo completamente diferentes do M96 convencional do 911 e comandos de válvulas extremamente agressivos, extraindo o máximo de fluxo dos dutos dos cabeçotes.
Dez anos depois, em maio de 2009, nasce a segunda evolução do GT3 já em sua geração seguinte: trata se do 997.2, que trouxe em relação ao GT3 997.1 uma pequena reestilização, novo spoiler traseiro e a introdução do sistema front lift system, que erguia o nariz em 30 mm. Dentro do cofre, uma enorme evolução, o M97.77.
Agora o Mezger deslocava 3,8 litros – diga-se de passagem, a RUF já estava fazendo isso em seus carros –, obtidos com 102,7 mm de diâmetro de cilindro (ante os 100 mm do 3.6) e os mesmos 76,4 mm de curso. Comandos variáveis na admissão e no escape deixavam a sua mesa de torque mais gorda do que nunca, ainda que seus 43,8 kgfm de torque surgissem acima dos 6.000 rpm. Potência? Brutais 435 cv a 7.600 rpm, com corte de giro a estratosféricos 8.500 rpm. Zero a 100 km/h em 4,1s, máxima de 312 km/h.
A música mecânica do Mezger aspirado é difícil de ser comparada à de qualquer outro 911, e no caso do GT3 de Daniel, a música ficou muito mais intensa graças ao sistema de escape completo da Innotech, dos coletores aos abafadores – o que certamente liberou mais alguns cavalos com o ganho de fluxo. “Lembro-me até de hoje do ronco de quando meu amigo Alex passou por mim com o seu GT3 Nordic Gold. Isso me marcou de tal maneira que, quando comprei este GT3 997.2, foi apenas uma questão de dias para eu instalar o sistema inteiro. Quando o bicho está com o giro no talo, eu me sinto num carro de corrida”, relembra sorrindo. Considerando o parentesco direto do motor Mezger com os Porsche 956, 959 e 911 GT1, é fácil de entender que não se trata de figura de linguagem.
O santo graal dos motores Mezger aspirados foi o M97.74 do GT3 RS 4.0 de 2011, também da geração 997. Manteve o diâmetro de cilindros de 102,7 mm mas o curso foi ampliado para 80,4 mm. Seu rendimento de 500 cv a 8.250 rpm era tão fora de escala que foi superado apenas em 2018, com os 520 cv do GT3 RS 991.2.
Experiência crua e sem filtros
Números, contudo, não contam a parte mais fascinante da história. Pergunto a Daniel como é pilotar o GT3 997.2 na pista comparando aos outros 911 que ele já havia experimentado na vida. Antes da resposta, uma pausa de uns cinco segundos, como se buscasse na sobrecarga de informações e sensações uma tradução em palavras. E tudo vem em uma avalanche.
“É provável que, de todos os 911, os GT3 e GT2 997, cada um na sua praia, são os carros com a curva de aprendizado mais acentuada que existem para se pilotar. Você apanha para conseguir entender como o carro funciona na pista, e falando por mim, está sendo. Estou penando para evoluir e é um desafio sensacional. O que ele entrega de emoção não dá pra comparar com nenhum 911 que tenho, nem com o 993, nem com o 997 Turbo, nem com o 911 SC 1979. É performance de exótico com aquela experiência visceral de um clássico.”
Daniel dá um gole d’água e já emenda: “Você subjulga o limite do carro, porque ele é muito mais capaz do que você imagina. Muito mais. Imagine o seguinte, uma coisa é você comprá-lo lá em 2009 como a ultimate track tool do presente e outra é você andar hoje, encarando-o como um colecionável. Descobri que o limite dele estava na estratosfera quando o Maurizio Sala foi comigo num evento do Porsche Club – pedi pra ele acelerar fundo, sem dó. É outro nível em relação ao Turbo, que é rápido de reta, mas você precisa ficar gerenciando temperatura de freio, não tem a mesma velocidade de entrada de curva. O chassi desse GT3 é do caralho – o carro tem dez anos de idade, você entra na curva com a certeza de que você vai se arrebentar inteiro, e ele devora a curva com sobra dando risada”. Vale lembrar: em 2006, Walter Röhrl cravou 7:42 no Nürburgring Nordschleife. Há quatorze anos.
Por outro lado, é um carro que precisa muito mais da participação do piloto. Seu ajuste dinâmico natural é de neutro para traseiro, o deixando traiçoeiro com decisões equivocadas sobre a hora de tirar o pé do acelerador ou de transferir cargas na diagonal. E isso também vale para a escolha das marchas. “Com o Turbo, você pode ser mais displicente com o câmbio. Com o GT3, se você entrar ou sair da curva na marcha errada, você perda a reta inteira”, complementa.
A melhor marca de Daniel com este GT3 em Interlagos é de 1:51,644 – tempo que o colocaria na pole-position da categoria força livre na época em que este carro era novo. Além do sistema de escape, outro upgrade importante são os Pirelli P Zero Trofeo R. “Eu quero chegar em 1:49 baixo. É totalmente possível, o que preciso é chegar mais próximo ao nível do carro”, reconhece Daniel. “O carro é um pouco traseiro, então estou andando com um ajuste um pouco mais firme na dianteira” afirma, se referindo às quatro posições de ajuste das barras estabilizadoras, que alteram o balanço dinâmico.
Colecionável? Absolutamente. Cristaleira? Definitivamente não.
Há um fator ainda mais fascinante que a possibilidade deste carro entrar na casa dos “quarenta” em Interlagos – lembrando que um GT3 atual seria pouquíssimos segundos mais rápido. O GT3 997.2 Speed Yellow de Daniel é um dos menos rodados do mundo: uma cápsula do tempo difícil de se encontrar equivalente em qualquer coleção do mundo. Foram apenas 2.256 unidades do GT3 997.2 fabricadas, sendo que no Brasil temos algo entre oito e dez unidades. Borrachas, plásticos, Alcantara, tudo é tão impecável, com reflexos acetinados e um perfume de novo, que confunde a nossa percepção temporal.
“Entrar nele é a sensação mais maluca, porque é como entrar num carro zero km com mais de dez anos. Quando o comprei, o carro tinha 380 km. Hoje ele tem 2.000 km aproximadamente, praticamente tudo de pista. Porque este foi o meu propósito com ele e este foi o propósito da Porsche em fazê-lo. Eu o comprei, fiz uma revisão de check-up, troquei todos os fluidos e no fim de semana seguinte fui pra Interlagos. Meus primeiros km a bordo dele foram da minha casa até o autódromo. Foi um negócio inexplicável – eu já tinha andado muito de 911 Turbo, mas na primeira volta estava rindo sozinho, berrando “caralho, pqp, esse negócio é legal pracaralho!”.
Ele sabe que sua decisão carpe diem com um colecionável raro e de valor exponencial não é unanimidade no meio dos colecionadores e entusiastas. “Há quem me recrimine por isso, que acha que estou fazendo uma loucura. Mas por que não desfrutar a sua natureza? O carro foi feito pro cara lá na Alemanha ir trabalhar e na volta passar no Nürburgring Nordschleife. Aqui no Brasil, as ruas são feitas de valetas, buracos, congestionamentos”, afirma. Ao menos o carro de Daniel é equipado com o front lift system, que eleva a dianteira em 30 mm ao toque de uma tecla no painel. E se por um lado veio com os freios de aço – nada de carbono-cerâmica, algo que deixaria os custos da diversão algumas vezes mais salgada –, por outro foi equipado com as rodas center lock, de cubo rápido. Quase como se fosse configurado para exatamente um cara como o Daniel.
Um adendo importante: apesar da vida intensa, o GT3 é tratado com o que existe de melhor, tanto em produtos de detailing quanto no rigor da manutenção, realizada por Fulvio Loreto e Rodrigo Rossi, sócios da FR Tech Center, ambos com longa carreira na Stuttgart e Porsche Cup. A FR Tech Center também é a assistência oficial da McLaren no Brasil.
“Eu já recebi propostas por ele que me permitiriam comprar um GT3 moderno, zero. É claro que eu seria mais rápido. Mas o que eu poderia comprar hoje que me entregue a conexão que esse carro me entrega com a máquina?” A motivação de Daniel não é uma garagem estática com luz de estúdio. Não é uma coleção de miniaturas em escala 1:1. Tampouco é estacioná-lo na porta do restaurante. É ter as experiências mais puras e intensas que se pode ter com um Porsche. Viver o espírito nine-eleven a quase nove mil rotações por minuto.
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Último dos moicanos: Porsche 911 Turbo 997.1 Mezger com câmbio manual | FlatOut Midnight