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Daniel e seu Porsche 911 SC 1979 | FlatOut Classics

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A essência nine-eleven

Por muito tempo entre os seus anos de Matchbox na infância e os dias de hoje, Daniel teve uma relação não mais que platônica com a sigla mais famosa de Zuffenhausen. Como muitos de nós, se divertiu com nacionais turbinados dos anos 80 e importados mais recentes, mas lá no fundo, os Porsche 911 eram inabaláveis como o sonho absoluto. Até o dia em que se viu nas condições de dar o primeiro passo do que se tornaria uma pequena e fascinante coleção do modelo. Para adentrar neste universo, ele poderia ter feito a escolha prestige e partido para a melhor e mais evoluída geração do 911, a então recém-lançada 991.

Mas ele não queria o melhor.

Para o primeiro de todos, queria a essência. E nada mais.

Mas não é tão simples. O 911 clássico compreende uma fatia colossal de 26 anos, que até pode ser quebrada em duas fases: a primeira, de 1963 a 1973, e depois o G-Model de 1973 a 1989 – sendo que este ainda pode ser subdividido em 15 séries, incluindo o SC, de 1978 a 1983. Como fazer uma escolha? Para Daniel, da forma mais pessoal possível: “foi quando tive a ideia de buscar um carro do ano do meu nascimento, no máximo um ano pra lá ou pra cá”.

O timing foi feliz, pois isso aconteceu pouco antes da explosão que fez o valor dos 911 refrigerados a ar aumentar em algumas vezes. Mas ainda havia um desafio: nunca foram muitos os 911 clássicos disponíveis em nosso mercado. “Depois de muita pesquisa e contatos, cheguei à seleção final dos três 911 SC anunciados que atendiam aos requisitos. Um marrom, um prata e este que está comigo”, afirma. Os três carros tinham propostas bem distintas.

De cara, Daniel dispensou o marrom. Seria como ir de fraque num jogo de rugby. “Ele estava maravilhoso, perfeito. Mas o marrom… era marrom! Vou comprar um Porsche 911 marrom, car#lh@ – não era uma Variant!”, entre risos. O prata, um US Spec com injeção mecânica K-Jetronic estava impecável também, recentemente restaurado por um especialista em clássicos americanos.

O problema era o branco. Grand Prix White.

O SC 1979 branco era uma kartoffelsalat. Tampa traseira duck tail (dos clássicos RS da década de 70) em fibra de vidro, gaiola no habitáculo, uma dupla de Weber 40 IDA substituindo o K-Jetronic e seguramente o menos conservado dos três, com sinais visíveis de desgaste.

Era exatamente o que ele queria.

Um 911 com mais alma e um que ele não se sentiria penalizado em levar adiante o projeto que ele já tinha em mente antes mesmo de tê-lo na garagem. Seu sogro, um antigomobilista com grande expertise em Alfa Romeo, o acompanhou em todas as visitas e o recomendou o marrom. Frente ao desejo pelo SC 1979 branco que transparecia na cara do Daniel, ele deu um pequeno estímulo: “não pega esse, você vai fazer a maior cagada”. Tácito, seu conselho tinha uma motivação: resgatar a originalidade é sempre um processo caro e envolve a compra de inúmeros detalhes para deixá-lo preciso historicamente. E os outros dois, além de já possuírem todos estes detalhes, estavam com a pintura impecável.

Mas a questão é que estas motivações não eram as mesmas que moviam Daniel em direção ao Grand Prix White – para ele, tudo aquilo que seria um obstáculo para um resgate à originalidade, era visto como um avanço para o ponto de partida para o que ele tinha em mente.

 

Projeto rabiscado na alma

O projeto final de seu primeiro nine-eleven – paixão que foi crescendo ao ponto de Daniel, que sempre foi apaixonado por design, criar uma marca para a sua coleção e para a sua admiração ao modelo – já estava dentro de sua cabeça, um conceito que ele vinha amadurecendo enquanto cultivava o seu sonho.

“Eu queria um carro como aqueles que você vê em revistas de competição da época, com as cornetonas nos carburadores, escape dimensionado…” e já emenda: “Há dois pilares principais: a mecânica e a estética. E eles se conectam. Na mecânica eu quis recriar um carro de corrida da época, como os 911 ST de ralis ou os RSR” – o que explica a dupla carburação Weber 40 IDA toda modificada posteriormente (veja mais adiante) alimentando a demanda dos três litros do boxer e dos comandos de válvulas utilizados na geração 964, que só viria dez anos depois ao mercado, resultando em uma marcha lenta descompassada e agressiva, cantada pelos coletores de escape dimensionados isolados por fita térmica.

Por trás das rodas Fuchs, freios do 911 Turbo, ou 930, seguram o ímpeto do motor apimentado, bem como os amortecedores Bilstein B6 de competição. Os pneus Yokohama A.Drive R1 são uma escolha baseada nas dimensões de pneus disponíveis em nosso mercado (uma limitação sempre presente no mundo dos clássicos), mas também deixam clara a proposta: além de um carro para se divertir com direção esportiva, a ideia é viajar bastante. Faça chuva, faça sol.

Os carburadores ficam expostos no cofre, sem filtros, apenas a clássica grelha para proteger de objetos maiores. Preocupação com a admissão de poeira? “Estou disposto a abrir este motor quantas vezes precisar. É um caminho que eu mesmo escolhi”. Por confiabilidade, Daniel optou por um sistema de ignição completo da MSD – e no futuro, pretende aprimorar ainda mais a ignição com um sistema Twin Spark.

“O mesmo conceito de competição eu quis reproduzir na parte estética: por isso, as lentes amarelas e o tartan nos bancos concha, algo que muitos veículos de competição usavam. Eu já tinha o padrão na cabeça desde que eu o comprei – e trouxe comigo o material real deal, do Reino Unido”.

“Outro detalhe era a gaiola, que estava preta, creio que para se fundir melhor aos acabamentos internos, mas eu queria da cor do carro, como 99% dos veículos de competição da época eram. Outros detalhes, como as junções da gaiola zincadas, não pintadas, são propositais para dar um toque mais cru, mais carro de corrida, mesmo”. Boa parte das referências, como o volante Momo Prototipo, cabine quase nua de forrações e os painéis ultra aliviados do 911 RSR, com puxadores de porta de nylon, vieram de um livro de fotos dos Porsche 911 de corrida de 1963 até o fim da geração 997, dado por sua esposa.

 

Teoria versus a prática

Mas voltemos alguns anos atrás na história. Quando Daniel comprou o 911 SC das mãos do Paulinho, da Biscayne, ele mesmo o apresentou a um mecânico altamente especializado nos nine-eleven clássicos: Mingo (ou Domingos) e Ricardo. O primeiro foi mecânico da Dacon nos anos dourados da concessionária e equipe de corrida, o segundo tem grande experiência com carros de rua preparados. Era a dupla que Daniel precisava para o seu projeto.

“Antes de eu comprar, o Mingo fez a avaliação básica do carro baseado no que podia ser visto. Amortecedores vazando, ajustes de acerto, nada tão aprofundado”. Se você tem experiência com carros antigos, sabe que a primeira puxada do novelo de lã costuma trazer uma avalanche. E não foi diferente com Daniel: a lista e o custo mais que quadruplicaram depois que ele encostou o 911 no estaleiro. O motivo, fora as surpresas que todos os clássicos possuem e que só são descobertas com o convívio, é que Daniel quis ir muito além de uma revisão funcional: ele buscou deixar tudo absolutamente impecável na parte mecânica. E só há um caminho para se fazer isso. Desmontando tudo.

“Era o meu primeiro Porsche e era um antigo, merecia uma atenção especial. Eu quis um carro em que eu pudesse confiar plenamente, tanto no motor quanto na suspensão ou freios, sem os sustos que um carro de 40 anos nas costas costuma reservar para as piores horas”. Tudo foi trocado: literalmente, apenas o bloco não foi substituído.

“O projeto teve umas três fases. A primeira levou uns dois meses, que foi a manutenção básica e essencial, para deixar o carro confiável em longo termo. Só depois disso e de ter curtido um pouco o carro é que partimos para a evolução mecânica, quando o conjunto mecânico recebeu toda a preparação. Foi uma fase bem longa, com cerca de um ano e meio”. A última fase foi a customização visual, que por sinal, não está finalizada: tanto que os pedais customizados ainda não tinham sido instalados na época deste ensaio, bem como outras evoluções visuais que Daniel planeja para deixar o 911 com um visual ainda mais retrô.

 

Como um relógio

Se a injeção mecânica K-Jetronic costuma fazer tropeçar mesmo o mais original dos clássicos, em parte por conta da nossa gasolina, por outro lado Daniel dispensou qualquer possibilidade de adotar um sistema de injeção moderno. Ele queria algo com a pegada orgânica – e nisso, nada melhor haveria que uma dupla de Weber 40 IDA tripla, que inclusive já estava no carro. Mas nada fazia aquele carro ficar afinado como ele gostaria, ainda mais agora, com as modificações mecânicas que deixaram o 911 mais bravo.

Entre a necessidade e a vontade de colocar a mão na massa, ele decidiu fazer uma imersão no mundo dos Weber, tanto para buscar entender como eles funcionavam no detalhe quanto para buscar a melhor receita para a demanda do seu motor. “Devorei centenas de conteúdos postados em fóruns e sites, mas a informação não era consolidada e frequentemente se contradizia. Depois de muita tentativa e erro, finalmente encontrei uma grande referência, uma tabela cruzando ano-modelo, tipo de ajuste entre rua, corrida e uso misto, o modelo do carburador e, frente a estes dados, indicações de configurações de bico, giclê de alta, baixa, todos os ajustes”, afirmou. Podia não ser algo perfeito, ainda mais considerando a unicidade da nossa gasolina cheia de etanol, mas era o melhor norte que ele encontrou.

Problema resolvido? Eles estavam apenas começando. “No Brasil, o que mais se faz é usinar o giglê para determinada medida. Mas como o carburador funciona com uma precisão muito grande, é difícil ter uma usinagem perfeita, fora que as peças já tinham pra lá de 40 anos: o fluxo sofria pequenos desvios que faziam uma grande diferença no ajuste… e são ajustes individuais para seis bocas”, exclama. Entre idas e vindas para o mesmo Reino Unido que o forneceu o tartan para os bancos, ele encontrou a Dellorto UK, que também fornecem peças de reposição para os Weber clássicos. Comprou todos os componentes do miolo novos e em duas configurações: corrida e misto.

Aí que a coisa começou a acontecer de verdade? Não exatamente. Babando de ansiedade para ver seu 911 SC afinado, ele remontou pela vigésima vez a dupla de Weber 40 IDA. “O carro ficou uma merda. Ricardo, vou tacar fogo nessa porra, não aguento mais!”. No suspiro final de pesquisa, contudo, ele descobriu que para os comandos que ele estava usando, o ajuste do enquadramento estava errado para aquele ajuste de carburação. “Até juntar o alinhamento de Marte e Júpiter foram dois anos suando, xingando e aprendendo”. O lado bom disso? Hoje ele se vira totalmente sozinho. “Eu fiz um log de tudo o que eu já fiz de alterações no ajuste e na montagem, para eu poder fazer o caminho inteiro de volta se precisar”.

Hoje, o 911 SC está quase como um relógio, mas um à moda antiga. Vez ou outra, é preciso dar corda. “Com carburador, você está sempre abrindo a tampa do motor se quiser algo afinado. Altitude, umidade, temperatura, combustível, qualquer variável vai requerer um ajuste” afirma Daniel, transparecendo prazer nesta constante imperfeição. Não é incomum vê-lo no acostamento ou no posto de gasolina buscando a afinação perfeita – e nisso, ele descobriu o outro lado dos clássicos. “Hoje, tenho alguns outros 911 mais modernos, e a diferença na reação é enorme. O clássico desperta paixão e curiosidade nas pessoas, as move de forma empática. E isso te leva a querer compartilhar tudo, como um filho prodígio. Já o exótico moderno afasta, até provoca julgamentos dos outros. Eles não sabem a sua história, te veem como um privilegiado. E depois, sempre aparece o cara do Punto T-Jet, do Jetta que quer ficar colando e dando pega. Isso é um aspecto chato de você ter um 911 moderno e, como vivo os dois lados da moeda, sei disso bem”, afirma.

 

Carisma e emoção

Entrar no 911 SC 1979 de Daniel exige alguns ritos que deixam clara a personalidade do carro. Puxo a porta – ainda mais leve do que a de um 911 tradicional por conta dos painéis aliviados do RSR – e deslizo por cima do tubo diagonal da gaiola, me encaixando no banco concha. Repousando sobre os ombros do encosto, estão os cintos Sabelt de quatro pontos. Instalá-los requer ajustes manuais, pois como todo cinto de competição, não são retratéis.

Tudo isso consome um tempo de preparação. Que, por si, já vira um rito de preparação para a sinfonia dos seis cilindros contrapostos. Mão esquerda na chave, Daniel dá a partida. O rosnar do despertar do boxer arrepia. A marcha lenta levemente descompassada deixa claro: aqui não há santo.

O passeio pela cidade mostra que o 911 SC apresenta hábitos surpreendentemente sadios para um carro com esta pegada. Claro, é preciso rodar com atenção aos buracos, valetas e a carga da suspensão nos faz sacolejar significativamente mais do que num G-Model original, mas é algo totalmente utilizável. É possível desfrutá-lo sem pressa.

Contudo, seu habitat natural começa quando as velocidades atingem três dígitos e as seis cornetas sugam o ar enquanto o conta-giros central ultrapassa as 6.000 rotações por minuto. Na rodovia Raposo Tavares, o Porsche está mais do que em casa: ele pede para ser conduzido esportivamente. Entre o ruído do vento da janela entreaberta e o canto dos três litros de Zuffenhausen, Daniel fala, com um tom de voz mais alto:

“Antes este Porsche era um carro… até que manso. Mas agora é um carro de corrida vintage. E a pegada é essa, curtir o carro, pegar estrada. Várias vezes viajo com outros amigos donos de Porsche, destinos próximos, outras vezes um pouco mais remotos, como Campos do Jordão… e boa parte do pessoal vai de 997, 991… sempre que possível eu vou com esse daqui, e digo que consigo acompanhá-los em boa parte dos trechos. A experiência é muito diferente, muito saborosa, mas não deixa de ser veloz” – e engata a quarta marcha.

Com entre-eixos curto, na casa de 2,25 m, e motor pendurado atrás de um eixo traseiro que apresenta a tendência de assumir geometria divergente em certas condições, como ao se tirar o pé numa entrada de curva, o 911 clássico definitivamente não é um carro para novatos para ser pilotado no limite. Requer foco, reflexos e confiança. Daniel, contudo, não está interessado em fazer um revival de derrapagens controladas a la Stefan Roser a bordo do RUF CTR “Yellowbird” em Nürburgring: viagens, ralis e no máximo provas de clássicos são o foco de seu projeto. Para flertar com os limites na pista, ele dispõe de outro carro – este 911 GT3 997 abaixo, cuja história contaremos em breve.

Durante a viagem de volta, pergunto a ele se a realidade respondeu bem à expectativa daquele Daniel que sonhava em ter na garagem a essência dos 911.

“Não – porque foi melhor que o esperado. Uma coisa é imaginar, outra é viver. Eu visualizava a matéria, o objeto. A sensação de realização, de prazer quando sento, ligo o carro e ando com ele… nada disso dá pra descrever, quanto menos imaginar antes de se viver. Isso não tem como planejar. E hoje, esse sentimento e essas sensações são a coisa mais importante da experiência. E isso me deu um conhecimento fundamental: para meus novos projetos, eu já penso no que aquilo vai transmitir quando ele estiver comigo nas ruas, nas estradas, e não se o carro é legal ou não, se tem mais de 300 cv ou não, se é cobiçado ou não. E isso veio deste 911 SC”.

Lembram do sogro de Daniel? Hoje, o 911 SC branco é o seu carro favorito dentre os demais de sua coleção. Um projeto com raison d’etre bem definida, historicamente correto em enorme parte e que transborda personalidade não tem como não derreter o coração de um antigomobilista entusiasta.

 

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