Esta pergunta do título é uma das dúvidas mais frequentes recebidas pelo FlatOut. E ela também é uma das maiores ilusões dos entusiastas.
Ela é uma ilusão porque parte do princípio que de carros antigos são artificialmente inflacionados por especuladores e vendedores malandros. E parte do princípio de que restaurar um carro antigo é como consertar um esbarrão na lateral de um carro contemporâneo — o mesmo tipo de mão-de-obra, a mesma disponibilidade de peças.
Para responder esta pergunta, você precisa levar em consideração alguns conceitos básicos sobre mercado e sobre restauração. Como o Juliano explicou recentemente em um vídeo (e há cinco anos em um post sobre o tema), restaurações não são baratas e nem devem ser executadas por pessoas sem conhecimento amplo no assunto.
Elas exigem mão-de-obra especializada e, muitas vezes, peças de reposição que já não são mais fornecidas pelo fabricante ou pelo fornecedor original. Para seu clássico ter aquele visual que chama a atenção no domingo de manhã ou nos encontros de posto ou mesmo nos encontros de clássicos locais, você precisa de um serviço capaz de restaurar o aspecto original do carro. E isso custa caro, porque é um processo trabalhoso, 100% artesanal, e tempo é um artigo de luxo. Combinando o tempo à experiência e à habilidade necessária, não espere que alguém faça isso por um valor “barato”. Um salário mínimo, como o nome diz, é mínimo. E está na faixa dos R$ 1.000. Você não espera gastar menos que isso em uma repintura ou funilaria, espera?
Depois há a questão das peças. Muitas peças de reposição atualmente são feitas por empresas que compraram o ferramental antigo, mas devido aos custos de se produzir no Brasil (lembra do post sobre a produtividade?) e também à necessidade de fornecer peças a preços acessíveis para quem usa os “velhinhos” no dia-a-dia, elas têm qualidade inferior às originais. É por isso que um Gol GTI com faróis Arteb é mais valorizado que um Gol GTI com faróis genéricos.
Você vai encontrar peças que irão quebrar na instalação, que não vão encaixar perfeitamente como deveriam. Você terá que recomprar, ou procurar peças novas de estoque antigo (o chamado “new old stock”, ou NOS), que costumam ser bem caras. Terá que adaptar as que não servem direito. Comprar custa dinheiro. Adaptar custa tempo. Se você não tem tempo, terá que comprar o tempo de alguém. Já disse que comprar custa dinheiro?
É a cruel realidade, caro entusiasta. O automóvel nunca foi barato, porém em algum momento recente as pessoas criaram a ilusão de que ter um carro antigo para curtir no fim de semana seria algo barato — sem se dar conta de que a premissa em si pressupõe um custo elevado. Ter algo tão valioso para usar esporadicamente é um luxo pessoal. Se um carro é algo supérfluo — no sentido de não ser uma necessidade básica — um carro que serve apenas para lazer é o supérfluo do supérfluo. É a própria definição de artigo de luxo.
Então chegamos à segunda parte da questão:
O carro que não foi inflacionado
Como eu dizia, a ideia de que especuladores inflacionam carros é absolutamente equivocada. Primeiro você precisa saber o que é inflação. Não é simplesmente aumentar os preços e esperar que alguém pague por eles. A inflação — tanto para carros quanto para arroz e feijão — é o aumento contínuo dos preços de um bem de consumo. Esse aumento acontece, resumidamente, por uma única razão: demanda maior que oferta.
Tudo se resume à escassez. E nem precisa ser valor financeiro. Se você tem um único cobertor para o inverno inteiro, o valor dele é incomensurável: sua sobrevivência depende dele. Se você tem 120 cobertores, que diferença faz usar um deles e jogá-lo no lixo no dia seguinte, se você terá um para cada dia do inverno? O valor vem da escassez. Quanto mais raro um carro, mais caro ele tende a ser — isso em termos gerais, porque há diversos fatores subjetivos que agregam valor a um carro.
A raridade, contudo, não se refere à mera existência do carro, mas também à sua condição: a Ford produziu 16 milhões de unidades do Modelo T, mas quantos você encontra em perfeito estado de funcionamento e mantendo suas características originais?
Só que um carro raro, em um estado de conservação raro também não é valioso por si. Quem define o valor final dele é a demanda. Você certamente já viu algum modelo exótico ou clássico em ótimo estado anunciado durante anos pelo mesmíssimo preço, sem nunca ser vendido. Ele pode até valer cada centavo cobrado, mas se não vende, é porque não há demanda. Pela mesma razão uma Ferrari F50 é bem mais rara que a F40, mas seu preço é uma fração da antecessora: menos gente quer a F50.
E isso nos traz aos “patinhos-feios”. Os carros que “não foram inflacionados”.
Eles não foram inflacionados porque não há demanda suficiente para isso. O motivo da baixa demanda? Bem… pode ser um carro comum demais. Um carro feio. Um carro problemático. Um carro impossível de restaurar. Ou um carro interessante que ainda não entrou no radar do grande público — mas este você provavelmente não quer porque ele ainda não é antigo o bastante.
Nestes tempos de internet de bolso em lugares remotos é pouco provável que você vá encontrar um clássico incompreendido e desconhecido. O mais provável é que os clássicos baratos sejam impossíveis de restaurar e comuns demais. Normalmente são carros cujos exemplares conservados estão começando a valorizar.
É por isso que você encontra dezenas de Alfa Romeo 164 por menos de R$ 5.000. Tente restaurar um carro desses. A dificuldade de encontrar peças e o custo para levantar o carro a um estado minimamente aceitável, supera o valor de mercado de um exemplar em bom estado. O contrário acontece com os Dodge V8 brasileiros: uma carcaça carcomida tende a ter mais valor que o velho Alfa porque, mesmo com uma restauração cara, o valor de mercado é alto. E é alto porque as pessoas querem mais Dodge dos anos 1970 do que Alfa Romeo dos anos 1990.
Em resumo, um carro antigo barato não é barato por acaso. E a regra é implacável: se ele é barato para comprar, ele tende a ser caro para restaurar.
Mesmo os carros tidos como fáceis de restaurar, caso dos Fusca e Chevette dos anos 1980, que têm uma excelente oferta de componentes novos, não são exatamente “fáceis” como os entusiastas mais ingênuos pressupõem. Há uma boa razão para isso — e se você não quiser aceitar a realidade, bem, prepare-se para pagar para ver. Literalmente.
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