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Car Culture

O abafador de 100 anos que antecipou os coletores dimensionados

Quando falamos das invenções engenhosas dos primórdios do automóvel, tendemos a dar mais atenção a elementos de desempenho, como potência de motor e comportamento dinâmico, ou itens de segurança ou acessórios de condução, como os cintos de três pontos e os limpadores intermitentes. Isso quando pensamos nesses itens, porque o carro moderno tem um padrão estabelecido há tanto tempo (uns 45 anos, aproximadamente), que parece que ele sempre foi assim.

O carro moderno — aquele que a BYD jura que está reinventando — é produto de uma série de tentativas, erros e acertos ao longo de mais de 100 anos em absolutamente todos os aspectos de sua construção. Desde os faróis até o tecido dos bancos e materiais de acabamento. Absolutamente nada além da forma das rodas e os pistões reciprocantes permaneceu inalterado desde que o primeiro carro produzido em série chegou às ruas.

Veja: o primeiro carro com volante circular, surgiu somente em 1894 (foi o Panhard 4HP, caso você esteja se perguntando). Àquela altura já havia ao menos 15 modelos de automóveis circulando pelo mundo. Nenhum deles com um volante — a maioria com uma alavanca de direção.

Já falamos sobre o surgimento e a evolução de vários outros dispositivos do carro — rodas de liga leve, teto solar, turbo etc. — mas nunca sobre algo banal e pouco entusiasta como os abafadores de escape. Afinal, quem se importa com um negócio que serve pra amenizar a principal experiência sensorial de um carro (ao menos para quem gosta de carros)?

Para a maioria das pessoas (e eu me incluo aqui), os abafadores sempre foram como são hoje. Mas neste final de semana percebi que houve, sim, uma evolução nesse negócio. Foi por causa do vencedor do Pebble Beach Concours d’Elegance, deste ano, um Hispano-Suiza H6C Nieuport-Astra Torpedo de 1924, conhecido como “Tulipwood”.

Repare o escape entre o estepe e o eixo traseiro

A carroceria de tiras de mogno presas com 8.500 rebites já é uma história fascinante por si só. Mas, para os mais atentos, outro detalhe chamou a atenção: um escapamento de aparência estranha, com volumes arredondados e tubos em ângulos improváveis. Não era apenas um elemento estético exótico: tratava-se de um raro exemplar do Steigboy Vacuum-Auspuff, um abafador que prometia conciliar silêncio e desempenho usando princípios aerodinâmicos e acústicos — muito antes dos sistemas modernos que hoje consideramos avançados.

O sistema foi desenvolvido no início dos anos 1920 por Friedrich August Boysen, fundador da Steigboy Apparatebau, em Leipzig. Boysen era engenheiro e tinha forte ligação com a aviação, o que explica sua busca por soluções leves e eficientes. Em 1921, ele patenteou o Vacuum-Auspuff, que chegou a equipar motocicletas, alguns aviões e, mais raramente, automóveis como o Hispano-Suiza de André Dubonnet.

A ideia era reduzir o ruído do escapamento sem criar contrapressão (backpressure) — problema comum nos abafadores convencionais da época. O escapamento tradicional dos anos 1920 era basicamente uma caixa com câmaras e defletores. O pulso de alta pressão saía do cilindro e batia nessas paredes, se dissipando em forma de calor e turbulência. O ruído diminuía, mas o excesso de contrafluxo atrapalha a saída dos gases, reduz o enchimento dos cilindros e, portanto, derruba potência. Boysen queria o oposto: um abafador que, além de silenciar, ajudasse a esvaziar os cilindros.

Para entender o que o Steigboy tinha de revolucionário, é preciso lembrar que o abafador de escapamento convencional atua principalmente como um atenuador acústico: a redução do ruído vem da dissipação de energia sonora em câmaras internas e pelo uso de material absorvente que amortece as ondas de pressão. O Steigboy, por outro lado, não se apoiava em fibras ou recheios, mas em geometria e dinâmica de fluidos.

O Vacuum-Auspuff era, em essência, um silenciador reativo por expansão e geometria. O escapamento saía do motor e entrava em câmaras arredondadas — as “panelas” que chamam atenção no Hispano-Suiza. Ali, aconteciam duas coisas.

Primeiro, a súbita expansão de volume fazia os pulsos de pressão perderem intensidade. O fluxo perde pressão e ganha velocidade – e a pressão mais baixa se equaliza no restante do sistema. Essa quebra de pressão reduz a energia das ondas sonoras mais agudas, atenuando o barulho antes mesmo da saída.

Em seguida, dentro da câmara havia um defletor chanfrado (uma placa em ângulo) posicionado de frente para o duto de saída. Esse defletor obrigava parte do fluxo a se redirecionar, criando zonas de baixa pressão. Além disso, o tubo de saída continha palhetas helicoidais que induziam rotação nos gases, acelerando-os para fora do duto do abafador. O efeito combinado era semelhante a um ejetor a vácuo: os gases em alta velocidade criavam uma leve sucção dentro da câmara principal (pelo diferencial de pressão, uma vez que ela cai dentro da panela) ajudando a puxar os pulsos seguintes. Em teoria, o sistema não apenas abafava o ruído como também otimizava o fluxo de gases.

Esse conceito lembrava, de certa forma, a função dos coletores de escape de alto desempenho, que usam o pulso de um cilindro para ajudar a varrer os gases do próximo. Boysen aplicou essa lógica ao abafador, décadas antes de a engenharia coletores se consolidar como um campo especializado.

Hoje, quase cem anos depois, o que vemos nos carros modernos é a combinação de várias estratégias que Boysen já utilizava. Os abafadores atuais misturam câmaras de ressonância do tipo Helmholtz, tubos perfurados com material absorvente e, em alguns casos, válvulas ativas que modulam o fluxo conforme a rotação.

A câmara de Helmholtz é um conceito acústico que funciona de forma análoga a uma garrafa vazia soprada: quando o pulso de pressão chega, o ar aprisionado nessa cavidade vibra em uma frequência natural específica. Se essa frequência coincide com a do ruído indesejado, a onda gerada dentro da câmara cancela a onda original, como dois sons que se encontram em fase oposta. O resultado é um abafamento muito eficiente, direcionado exatamente para o ponto da faixa sonora em que o motor seria mais incômodo.

Em paralelo, os tubos perfurados com lã mineral ou fibras de vidro absorvem parte da energia acústica transformando-a em calor, enquanto as válvulas ativas modernas — acionadas eletronicamente — desviam o fluxo conforme a rotação: fechadas em baixa para silenciar, abertas em alta para liberar ronco e potência.

O Vacuum-Auspuff chegou a equipar algumas motos que disputaram o AVUS-Rennen für Motorrad (corrida para motos de AVUS), em 1922, e ganhou notoriedade em anúncios da época. No entanto, nunca se consolidou. Seu efeito prático era limitado pela dificuldade de cálculo preciso com a tecnologia disponível, além do peso extra e da complexidade de fabricação. Com o avanço da metalurgia e da acústica, abafadores mais leves, baratos e fáceis de produzir acabaram prevalecendo.

Ainda assim, a contribuição de Boysen não foi em vão. Sua empresa sobreviveu, evoluiu e se transformou no Boysen Group, que hoje fornece sistemas de escapamento, componentes eletrônicos, tanques de hidrogênio e soluções para a indústria automotiva global.

O Steigboy Vacuum-Auspuff foi, sem exagero, um passo fundamental para o desenvolvimento dos sistemas de escape modernos — tanto dos coletores quanto dos abafadores. Embora tenha sido esquecido, ele antecipou conceitos de silenciamento por ressonância e de aproveitamento do fluxo para reduzir perdas. Um lembrete de que nem toda inovação chega ao mainstream, mas cada tentativa ajuda a abrir o caminho para as soluções seguintes.


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