Leitores do FlatOut certamente sabem muito bem que a Bugatti é muito, muito mais do que o exagerado Veyron. A empresa original foi fundada em 1909 e ficou grande de verdade na década de 1930, quando começou a se destacar no selvagem automobilismo do início do século 20, culminando com duas vitórias nas 24 Horas de Le Mans em 1937 e 1939 com o Type 57 Tank.
O protagonista da história de hoje é desta época: um Bugatti Type 22 Brescia. Trata-se de uma evolução direta do Bugatti Type 13, primeiro carro “de verdade” da Bugatti, que começou a ser fabricado em 1909. O Type 13 era um roadster bastante simples, não muito diferente de seus contemporâneos. Fabricado até 1920, o Type 13 teve 435 unidades produzidas. Os exemplares de rua usavam um quatro-cilindros de 1,1 litro com duas válvulas por cilindro e comando no cabeçote, mas alguns carros de corrida tinham cabeçote de 16 válvulas, um pioneirismo a favor dos franceses (como de costume).
O Type 22 seguia o mesmo design básico do Type 13, porém era um carro maior e trazia a famosa grade oval, marca registrada dos Bugatti que vieram depois. Produzido na cidade italiana de Brescia, o carro costumava ser chamado de Type 22 Brescia Roadster. E ele era bem mais bonito quando novo do que na foto que abre este post, pode ter certeza.
Quando foi comprado novo, em 1925, este carro provavelmente era assim. E ele tem uma história bastante interessante, ainda que um tanto confusa.
Diz-se que o dono anterior do carro foi o piloto francês de Grand Prix René Dreyfus, que participou das 24 Horas de Spa de 1934 ao volante de um Bugatti Type 44. Naquele mesmo ano, Dreyfus perdeu seu Type 22 para um amigo, o playboy francês Adalbert Bodé, durante uma partida de pôquer em Paris. Agora, pense nisso: que tipo de cara aposta um Bugatti em uma partida de pôquer? Do tipo que sabia que o carro não valia muito na época, talvez: em 1934, um Bugatti com quase dez anos de idade não fosse exatamente algo precioso para um playboy da época.
Bodé, que morava na Suíça, levou o carro para casa. No entanto, acabou não ficando muito mais que um ou dois anos com ele. O motivo? Ele não queria pagar os impostos de importação.
Conta-se que, durante alguns meses, um fiscal de impostos visitava Bodé e dizia que já havia passado da hora de oficializar a importação do carro e registrá-lo de uma vez. No entanto, o novo dono do Bugatti não queria pagar as taxas (ou não tinha condições, de acordou com outras fontes) e assim, em 1936, mudou-se para a França, deixando o carro na Suíça.
Isto acabou deixando os fiscais em uma situação bastante delicada. Claramente o dono do carro não se importava mais com ele e, caso fosse confiscado, o carro provavelmente ficaria ocupando espaço em um depósito — não esqueça que um Bugatti com alguns anos de idade não era nada astronomicamente valioso na época, e simplesmente não justificaria o esforço e a burocracia.
Assim, a solução “fácil” encontrada pelas autoridades suíças foi jogar o carro no fundo de um lago. Mais precisamente, no Lago Maggiore (em português, Lago Maior), que fica no sul dos Alpes, na fronteira entre Itália e Suíça. A máquina ficou submersa a mais de 50 metros da superfície do corpo d’água por mais de três décadas. As autoridades provavelmente esqueceram do carro e Bodé também deve ter seguido com sua vida.
Quem não esqueceu, no entanto, foi o povo que morava nos arredores. A história logo se espalhou e, com o passar dos anos, passou a fazer parte do folclore local e se tornou um mito — aparentemente, não havia tecnologia acessível o bastante para que pessoas comuns procurassem um carro que supostamente estava no fundo do lago, e quem realmente poderia fazê-lo (se é que era possível) não tinha interesse algum.
Contudo, na década de 1960, isto mudou. Buscas começaram a ser feitas e, em 1967, o carro foi localizado por um mergulhador chamado Ugo Pillon decidiu encontrar o Bugatti. E ele conseguiu, confirmando a história. No entanto, ainda levaria algumas décadas até que o carro fosse removido do lago. Neste meio tempo, outras informações a respeito do Bugatti emergiram (sacaram?), mas em vez de esclarecer a história do carro, tudo foi ficando cada vez mais confuso.
Pillon notou que o carro tinha uma plaqueta que dizia “George Nielly, 48 Rue Nollet, Paris”. Descobriu-se, então, que o carro foi registrado em nome de Nielly em 1930 e, antes disso, pertenceu a um arquiteto chamado Marco Schmuklerski, que morava em Nancy, na França, que comprou o carro novo em 1925. É por isso que outras fontes dizem que o carro, na verdade, foi levado para a Suíça três anos depois por este primeiro dono.
Esta outra versão da história diz que o carro ficou com este primeiro dono até meados dos anos 1930, quando ele decidiu voltar para a França e deixou o carro na casa de um amigo, na cidade de Ticino, na Suíça. Este amigo, temendo que o carro fosse encontrado pelas autoridades, acabou jogando o carro no Lago Maior em 1937.
De qualquer forma, depois que foi encontrado e sua história, parcialmente desvendada, o Bugatti foi meio que esquecido. Isto durou até 2009, quando outro clube de mergulho, o Centro Sport Subacquei Salvataggio, de Ascona, na Itália, decidiu tirá-lo do fundo do Lago Maior. E assim eles o fizeram, descobrindo que o carro estava surpreendentemente bem “conservado” apesar dos mais de 70 anos debaixo d’água.
Em seguida, o Bugatti foi leiloado as is durante a edição de 2010 do Retromobile, evento promovido anualmente pela agência de leilões Bonham’s em Paris. O carro foi arrematado pelo equivalente a US$ 360 mil — ou US$ 380 mil em dinheiro de hoje. Isto dá cerca de R$ 1,5 milhão em 2015.
O vencedor do leilão foi o Museu Mullin, em Oxnard, na Califórnia. Eles decidiram não restaurar o Bugatti, que está exposto até hoje em uma sala própria, com luzes feitas para reproduzir as condições de iluminação no fundo do Lago Maior. É provável que jamais vejamos o carro restaurado e rodando novamente, mas isto não é de todo ruim. Certas coisas devem ser deixadas exatamente como estão.