FlatOut!
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Automobilismo Zero a 300

Eu vivi a emoção da Turismo Carretera: o relato dos 1000 km de Buenos Aires

Lá está você, no meio de uma torcida organizada, com bandeirões, setores de arquibancada, fogos de artifício, gritos de guerra, palavrões, camisas, adesivos, e torcedores que sabem o nome dos ídolos, seus feitos, e tem na mente todas as lembranças de outros anos.

É uma paixão que move pessoas de vários cantos de um país por conta do esporte e da rivalidade. Gerações unidas por essa mesma paixão, do pai para o filho para o neto e assim vai. Um ambiente não muito requintado e refinado, e que tem até churrasco rolando, diferente de outros palcos do esporte, com tão pouca alma perto disso aqui que você esta vivendo, presenciando, sentindo. Pessoas de todas as idades, cores, sexos, poder aquisitivo. Todos unidos. Todos torcendo. Todos curtindo num… autódromo!

Hinchada

Hein? Autódromo? Sério isso?

Sim, meus amigos. E mais perto, bem mais perto que se pensa: na Argentina. Na Turismo Carretera. Mais precisamente, na prova de aniversário de 80 anos da categoria, reconhecida pelo Guiness Book como a mais antiga categoria oficial de automobilismo do mundo. E eu estive lá, vendo tudo isso de perto.

La 15

Eu em La 15, a torcida da Chevrolet

De Perto

De perto, mesmo.

A Turismo Carretera, como já contado aqui no FlatOut, tem raízes nas provas de estrada (carretera) com carros de rua (turismo). Porém, hoje, disso ficou somente o nome, e a paixão. Dentre as varias razões de ter sobrado somente o nome, a maior delas é a segurança: nos anos 70, médias de velocidade acima de 220 km/h já eram comuns de se obter nas provas em estradas, tanto realizadas em circuitos feitos com a ligação de estradas (chamados semi-permanentes), quanto em provas tal o Grande Prêmio da Argentina, que em muito se assemelhava a um rali. A ultima prova feita em estradas foi em 1997, no Triângulo del Tuyú de Santa Teresita, e desde então nunca mais se competiu assim.

Já a paixão vem de muito tempo. Na Argentina, as corridas sempre foram vistas de forma diferente de outros países. No início, serviam para conhecer e pavimentar estradas, descobrir vilarejos e lugares distantes, e criar no país o sentimento de que os povoados eram unidos.

Assim, por muitos anos, o automobilismo foi o esporte mais popular, por ser acessível ao povo. Parece irônico, mas se explica: era muito comum (e numa escala menor, ainda é algo recorrente) um grupo de pessoas de uma determinada cidade ou província se juntar para montar o carro do representante local. Assim, nasceram ídolos ligados aonde viviam, como Lo Chueco de Balcarce (traduzindo: O Manco de Balcarce, cidade distante 415 km da capital). E… quem é esse? Juan Manuel Fangio. Acho que esse vocês conhecem.

Chevy Fangio

La Chevy del Chueco de Balcarce. Sim, o carro ainda existe e funciona

Benito Juarez

E aqui, o Chevy de Juan José Ebarlin. Notem o apoio da Prefeitura de Benito Juarez, cidade distante 430 km de Buenos Aires.

Além disso, diferentemente do futebol, jogado nos estádios e que ficava normalmente mais concentrado na capital, as corridas da TC aconteciam nas estradas poeirentas que ligavam os longínquos vilarejos. Sendo assim, no domingo era quase um ritual: a família toda, logo cedo, na beira da estrada fazendo churrasco e assistindo os ídolos andando com os autos velozes. Um Fangio, um Emiliozzi, um Galvez, eram figuras muito mais acessíveis que os futebolistas. Afinal, eles iam até o povo.

Chico Hincha ChivoChica Hincha Ford

Torcer pela marca: Você esta fazendo isso certo

E já que hoje eles correm em autódromos, e certamente nunca chegariam a vir até o ABC Paulista, onde moro, eu fui até Buenos Aires, no Autodromo Hermanos Galvez, para ver e ouvir (e quase perder a audição depois disso) 45 carros aparentemente feios e antiquados, com linhas ressemblando o que havia de melhor no parque industrial automotivo argentino dos anos 60 e 70 (Chevy 400, Dodge GTX, IKA Torino e Ford Falcon) e pinturas que lembram capa de caderno de adolescente gearhead de tantos adesivos e cores diferentes. Com seus motores seis-cilindros de 3,2 litros alimentados por dois caburadores Weber 48 virando próximo de 9.000 rpm. Sim, crianças: é como um 2JZ–GE virando o que um VTEC vira. Durante cinco horas. Ao longo de 1.000 km.

Motor Dodge1

Você disse “carburado”?

Guri Martinez

Box de Omar “Guri” Martinez

El Campeon

Ford de Juan Manuel “Pato” Silva, no box

Guille Ortelli

Chevy de Guillermo Ortelli

Josito

Box do IKA Torino de Josito di Palma

E sabem o que é o mais curioso? Normalmente, temos o conceito de que prova de endurance é tocar na boa, sem se arriscar, poupando equipamento, e que normalmente as provas longas terminam sem emoção.

Explica isso pros caras, então:

Desde o início, era troca de marcha no limite, disputas de posição intensas, toques, frenagens onde Judas furou as meias (as botas ficaram onde estaria o teórico bom-senso),escapadas de pista, traseiradas nas saídas de curvas deixando boas marcas de borracha no asfalto, e por aí vai. Brigando no limite. E lógico, aconteceram problemas. De todo tipo. Desde motor e transmissão até pane seca, teve gente que furou pneu, que perdeu roda, que quebrou eixo traseiro, que ficou sem freio e passou reto na curva mais lenta da pista.

O líder e vencedor, Juan Manuel “Pato” Silva, tinha uma liderança até tranquila a 15 voltas para o fim. Mas aí dois carros quebrados precisaram ser removidos da pista, o que exigiu intervenção do pace car, juntando todo o pelotão. Assim, os cinco primeiros lutaram francamente até as últimas voltas. Na quinta posição estava Guillermo Ortelli, sete vezes campeão da categoria e atual campeão. Mas aí, devido à quebra de motor de Mariano Werner (Ford), à pane seca de Juan Martin Trucco (Dodge) e a uma ultrapassagem sobre José Marcos Angelini (Dodge), ele subiu até o segundo posto, cruzando a linha a 0,5 segundo do vencedor, depois de cinco horas e meia de corrida. Ou seja: emoção não faltou.

A comemoração do público é inacreditável. Parece futebol misturado com Fórmula 1 em Monza, mas é “só” uma categoria local argentina!

E assim, em uma comemoração com direito a invasão de pista, e piloto vencedor pegando o bandeirão da galera, acabou a chamada “corrida do século” da categoria mais importante da Argentina. Com todo o drama, com a rivalidade, com a emoção, com a euforia, com a personalidade que sobra nesses carros. Que conseguem mostrar que ainda há vida para quem curte o automobilismo mais puro e simples, mais barulhento e puro, e — porque não? —, mais carburado num mundo tão cheio de downsizing, turbos, injeção direta, híbridos e elétricos, paddle-shift, DRS e ordens de equipe.