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Car Culture

Ferrari F80: o que diz a imprensa internacional

Por quê? Como não nos impressionamos mais com carros como o novo Ferrari F80? Qual é o motivo da resposta morna a este carro fantástico? No papel, é algo simplesmente sensacional e impossível de se por defeito. Um maravilhoso ápice técnico para toda uma longa história da Ferrari, até no fato de que é derivado completamente de seu carro de corrida vencedor de Le Mans. Então por que cargas d’água a resposta ao seu lançamento foi tão morna?

Mas morna ela foi, quase ao ponto do esquecimento. Talvez por isso a Ferrari tenha chamado agora vários membros da imprensa internacional para algumas voltas com o carro em circuito, e para andar em ruas e estradas do mundo real, depois de colocá-los numa sala para explicar as nuances tecnológicas da coisa toda. Imagine passar um dia num carro assim tão potente e capaz; certamente as impressões ajudarão a dar um pouco mais de emoção no lançamento do carro.

Mas parece que de novo o resultado é um que conhecemos já de cor e salteado: imenso respeito e admiração pelo feito tecnológico. Mas muito pouco amor de verdade. Como isso pode estar acontecendo com nossa indústria? E mais importante: como vamos superar esta resposta apática ao topo do mundo do automóvel?

Existem muitos motivos para esta apatia. O primeiro, é claro, é preço: o F80 custa ao redor de 3,75 milhões de dólares; aqui no brasil facilmente chegaria a 50 milhões de reais. É algo tão impossivelmente fora da realidade de 99,9% das pessoas, que de cara gera desinteresse. A culpa aqui é dupla: primeiro do Mclaren F1, que custava um milhão de dólares em 1994, quando um Ferrari 512TR custava 10% disso, e o F40, 40%. O Mclaren mostrou que todo mundo podia cobrar mais caro. O outro motivo é o crescimento do mercado árabe, que compra tudo desse tipo sem parar, por algum motivo obscuro talvez relacionado com a falta de outro tipo de entretenimento masculino adulto aceitável socialmente.

O outro motivo é a dificuldade de se impressionar os clientes com desempenho ou potência. Um Ferrari “normal” como o 296 GTB já tem quase 900 cv. Um sedã de uso normal como um Tesla Model S Plaid faz o 0-100 km/h em 1,99 segundos. Velocidade máxima já nem é item importante mais, por uma mistura de impossibilidade de se achar lugares onde esticar as pernas dos mais potentes supercarros, e um trânsito cada vez mais volumoso no mundo real, que impede velocidade alta também. A normalidade dessas potências altíssimas traz apatia; e é difícil aumentar muito além dos 1000 cv sem deixar óbvia a futilidade do exercício.

Há de se ver também que há pouca diferença de desempenho perceptível, no mundo real das ruas e estradas, quando se passa muito dos 350-400 cv. Os números parecem se tornar apenas números, sem correlação com o mundo real. Quando um Golf GTI fazia 0-100 km/h em 9,5 segundos e um F40 fazia a mesma prova em 4 segundos, se percebia claramente a diferença. Hoje, quando um GTi chega a ter 320 cv, sinceramente se não colocar dois carros lado a lado para ver a diferença, tudo “anda pacas” igual. Ou quando o desempenho é perceptivelmente maior, o carro é tão veloz que não é possível usar toda potência nas ruas.

Há também a perfeição toda do carro moderno, que, paradoxalmente, faz do seu motorista pouco melhor que um passageiro. Antigamente carros como o F40 chamavam atenção para seu dono/piloto; os carros eram bestas-feras que pediam mais que dinheiro para se comprar. Exigia-se também a coragem para domá-lo: todo mundo via seus motoristas como gente de habilidade, ou no mínimo, coragem. Hoje o carro salva de sua própria potência, e quando não consegue, ainda nos protege do acidente. Coragem não é parte da equação mais.

Há outro caminho, claro, como o mostrado por Gordon Murray em seu T.50, claro. Mas mesmo ele é uma coisa muito pouco visceral, e muito mais cerebral. Ferraris, principalmente, eram ópera e arte, tão falhas e difíceis de conviver quanto apaixonantes. Eram barulhentas e antissociais, e se você não gostou, ora, não compre. Às vezes, Enzo até não deixava desafetos comprarem, o dinheiro que se lasque. Esse mundo, definitivamente acabou. Ao mundo moderno então.

O F80 e a imprensa

Antes de contar a reação ao carro, vamos relembrar rapidamente o que ele é. O carro é basicamente uma estrutura central de fibra de carbono, de onde subframes de alumínio saem para suportar a mecânica, atrás e na frente. O motor longitudinal-traseiro-central é um V a 120°, então é baixo e curto, e com cárter seco; de sua parte mais baixa até o virabrequim são apenas 100 mm.

O V6 tem 3 litros de deslocamento e é biturbo, com duas turbinas que são impulsionadas a baixa velocidade por motores elétricos de 48 v, virtualmente eliminando o turbo-lag. Ajuda também a eliminá-lo o fato de que existem três motores elétricos; um no motor com 95 cv, e dois no eixo dianteiro, cada um deles com 140 cv. São impulsionados por bateria de 800V e 2,28 kWh que fica atrás dos ocupantes. O carro então tem tração integral e nada menos que 1275 cv, para um carro de 1525 kg.

As suspensões são sofisticadas, claro: duplo A sobreposto nos quatro cantos, com conjuntos de amortecedor-mola da Multimatic sofisticadíssimos, montados na horizontal, que dispensam barra estabilizadora. Há freios de carbono-cerâmica, mais de uma tonelada de downforce a 250 km/h, e uma enorme asa traseira atuada por computador, que além de subir e descer altera seu ângulo.

O carro é capaz de zero a 100 km/h em apenas 2,1 segundos, e 0-200 km/h em 5,75 segundos. A velocidade final é limitada aos 350 km/h.

Como não poderia deixar de ser, o carro é impressionantemente capaz na pista. Chris Harris diz que a frente é plantada, e a tração saindo das curvas é simplesmente incrível.  A direção tem duas voltas de batente a batente, mas tem bom peso, e aquele sentimento de aumento de peso conforme a carga em curvas que gostamos tanto nas direções hidráulicas ou sem assistência do passado.

Harris também ficou impressionado com o fato de que a resposta do motor é incrível desde baixa rotação, e ainda assim, gira linearmente até 9000 rpm. Um turbo, sim, mas que não parece turbo. A soma dos motores elétricos e o auxílio elétrico aos turbocompressores foi sempre elogiada.

Daniel Pund, na Road and Track, diz: “quando me aproximava do final da reta oposta em Misano, eu sempre carregava muito mais velocidade do que esperava. Graças aos motores elétricos e aos turbos elétricos sempre prontos, a F80 dispara positivamente nas saídas de curva. Então, quando o V-6 assume a maior parte da propulsão, você começa a acelerar as marchas da transmissão de dupla embreagem de oito velocidades tão rápido quanto seus dedos conseguem puxar a borboleta direita. Perca a sincronia por um momento, e o limitador de rotação de 9200 rpm do motor entra em terceira, quarta, quinta, sexta… em uma puxada implacável.”

O motor também tem um barulho deveras agradável, segundo todos os avaliadores. Ainda que soe melhor por dentro do carro que por fora; nos vídeos as filmagens externas fzem ele parecer elétrico de tão silencioso. Barulho só dentro do carro é algo interessante teoricamente; mas deixa toda a experiência um pouco artificial demais talvez.

Disse a R&T: “De dentro da cabine, este trem de força é pura diversão, com muita energia, acompanhado pelo barulho do motor, o zumbido do turbo e o zumbido do motor elétrico. Do lado de fora, ouve-se apenas o som do ar sendo empurrado para o lado à velocidade de um pequeno jato. Um “whoosh” provavelmente não é o que a maioria dos compradores de supercarros quer que as pessoas ouçam, mesmo que seja o que as leis antiruído preferem.”

Harris gostou do caro em pista muito mais do que imaginou que gostaria; a combinação de ligeiro subesterço, eliminado completamente pelo motor elétrico dianteiro puxando o carro para a saída de curva, o fez ir cada vez mais fundo na curva sem medo. O a tração na saída de curva ele diz que “parece a mão de Deus” puxando, de tão forte que é. Os freios ABS também foram elogiados, pulsando bem menos que o normal, e segurando mais o caro aparentemente. É realmente uma arma incrível em pista, segundo ele.

Daniel Pund: “Uma máquina de pura velocidade oferece diversão limitada a longo prazo. Veja a maioria dos carros elétricos velozes como evidência. O que sustenta o prazer depois que o choque da aceleração diminui é a dirigibilidade. Talvez o atributo mais chocante do F80 seja sua agilidade. Não, não é um Lotus Elise. É uma coisa enorme, de aproximadamente 1600 kg. E, no entanto, passar por uma sequência rápida de curvas à direita, direita fechada, esquerda e baixa velocidade revela que o F80 é estranhamente leve, capaz de girar sua traseira larga à vontade. A resposta nas curvas é rápida, é claro, mas nunca instável. Para seu crédito, a Ferrari vem adicionando, nos últimos anos, controles eletrônicos cada vez mais complexos e sofisticados, tão bem integrados e ajustados que complementam, em vez de controlar, o motorista. A relativa segurança da dirigibilidade do F80 pode decepcionar os poucos que acham que apenas manuseio afiado e instabilidade catastrófica são apropriados em um supercarro. Acho isso uma bravata boba.”

Pode ser boba, esta bravata, sim, especialmente com o desempenho do supercarro moderno, Mr. Pund. Mas a verdade é que nunca saberemos como ele seria sem este véu invisível de segurança. Talvez mais divertido; certamente menos rápido. Adoraria saber, mas nunca vai acontecer, a não ser que um dia a Ferrari tire as baterias e motores elétricos e faça um F80 Evo de 900 cv e tração traseira só, e uns 400 kg mais leve. Já pensou? Mas sim: o que vale tirar da afirmação é que o carro parece seguro, sem parecer tomar a direção de você. O que é um progresso já.

Nas ruas é perfeitamente civilizado; com os amortecedores/molas Multimatic em posição “soft”, o carro roda mais macio que uma 296 GTB, segundo Harris. O nível de ruído é sempre baixo, permitindo conversas no interior, mesmo a 100 km/h. Matt Prior da Autocar diz: “Como é andar num protótipo de Le Mans em estradas normais e cheias de imperfeições? Bom, ele é largo pacas; mas por dentro, a cabine é estreita. Todo Ferrari absorve bem imperfeições do solo e é confortável, mas este, com as unidades Multimatic, mesmo sendo focado em pista, é ainda melhor. A direção é de peso médio. O nível de ruído é baixo.”

A Daniel Pund na Road and Track diz que “o F80 é quase duas vezes mais largo do que alto; mede 2060 mm de largura, e 1138 mm de altura. A maneira como sua estreita capota de vidro se eleva das largas soleiras da carroceria lembra os protótipos IMSA GTP/Grupo C. O formato básico é perfurado e adornado com todos os tipos de dispositivos aerodinâmicos – asas, calhas de ar, difusores e dutos. Se você se inclinar sobre o nariz e olhar para baixo, poderá ver o chão através do enorme duto na base do para-brisa. O espaço para bagagem é limitado a uma pequena prateleira atrás dos dois assentos. O F80 é estranho e inspirador e, como diz a Ferrari, “não faz concessões ao romantismo”.” Um carro italiano que é técnico, mas não romântico. Nada permanece estático neste mundo; tudo muda mesmo.

Harris resume dizendo que o carro é perfeito nas ruas, confortável e perfeitamente usável. Diz que mostra como a AMG e a Aston Martin fizeram tudo errado com seus supercarros atuais; e que eles não são “produtos completos, totalmente finalizados em seu desenvolvimento”. O que soa com o peso da verdade, por mais dura que seja. Disse também que o engraçado é que antes, era a Ferrari que era cheia de caráter e drama e fúria, mas tinha problemas no uso como um carro normal; hoje é Ferrari que parece o mais sério fabricante de supercarros.

E talvez aí esteja o problema: carros sérios não são exatamente o que se procura quando se faz carros esporte, e especialmente os deste tipo, que definitivamente não verão uso diário. Os jornalistas ficam de queixo caído ao experimentá-lo. Claro: é um veículo incrível, admirável, impossível de não deixar queixos caídos. Mas de novo: admiração não é paixão. Especialmente num Ferrari.

Um pouco de drama é o que eu, particularmente, procuraria num Ferrari. E todo mundo, quando se fala do F80, parece pensar igual, antes de andar nela.

Mas não deixa de ser um enorme feito, este F80, e um carro muito mais interessante do que parecia à primeira vista. É realmente interessante notar que Ferrari mudou muito, como o mundo mudou muito; mas continua levando tecnologia de pista para as ruas em seu cerne. E que continua fazendo isso, carro de corrida para as ruas, melhor que todos os outros. O que é algo que pode não ser exatamente o que desejávamos, mas é, de qualquer forma, algo a se festejar.