“Japonês, quando você vir fazer o curso de pilotagem do Manzini (clique aqui para ler nossa reportagem), não deixe de andar no Palio que a gente montou. Faço questão de te mostrar, você vai pirar na encrenca!” – o japonês em questão, sou eu. E o autor da ligação, o gearhead Ricardo Dilser, piloto e jornalista reconhecido por ambas as carreiras: nas pistas de turismo, entre 2002 e 2008 conquistou três vezes o Campeonato Brasileiro de Endurance, ganhou duas vezes as Mil Milhas, e uma vez as 500 milhas de Londrina, os 500 km de São Paulo e os 1.000 km de Brasília. Nas últimas décadas, trabalhou em diversas publicações, como Quatro Rodas, Motor Show, Oficina Mecânica e a Auto & Técnica.
Hoje, Dilser é assessor técnico do grupo FCA (Fiat-Chrysler), fazendo a ponte entre os jornalistas e os departamentos de engenharia, design, produto e marketing das fabricantes. Sua entrada na Fiat teve íntima relação com as pistas: “em 2008, o Caíque (Carlos Henrique Ferreira) me convidou para participar do desenvolvimento dos Linea de corrida, junto com o Juliano Moro”. Ele e Caíque foram os responsáveis pela famosa Fiat Marea Weekend Turbo de corrida que venceu os 1.000 km de Brasília, um carro que iremos detalhar a história futuramente.
Contar a sua história era necessário para vocês para entenderem o contexto da ligação. Com o nome do Dilser no meio, um convite para conhecer um Palio em Interlagos é certeza de que tem pimenta e arte no meio. E de sobra.
Como uma motocicleta de competição, carros de corrida de tração dianteira fazem o apontamento inicial para o ponto de tangência com a traseira, não com a dianteira, sempre de forma comunicativa e controlável. O ronco do 1.6 berrando a quase 8 mil rpm era eletrizante, pura música mecânica, transmitindo vibrações ao assoalho que fazia os pés formigarem. Ou será que era a adrenalina? Observar a pilotagem agressiva e moderada de Dilser era um deleite: frenagens com pé esquerdo, punta-taccos perfeitos, contra-esterços, derrapagens controladas, escorregadas de lado até a zebra de fora, exigindo reações instantâneas. Que carro intenso – e impressionante pelo fato de estar usando pneus radiais verdes, do segmento de entrada!
Vocês estão vendo em ação o único sobrevivente de uma bacanérrima empreitada de competição da Fiat, abortada por uma infelicidade do destino. Dilser conta o prólogo da história:
Em meados de 2013 começaram a circular notícias da volta das 24 Horas de Interlagos, que já tinha até data: 25 de janeiro de 2014. Nesta época a gente ainda tinha o Trofeo Linea, e para três equipes do campeonato lançamos o desafio de correr de Palio nas 24 Horas. Demos três carros gêmeos para eles: um para o Greco, outro para o Bucheca (RJ) e outro para o Pater, que fazia o carro do Marcos Gomes. E partimos para um desenvolvimento conjunto entre a Fiat e as equipes. Os motores ficaram a cargo do Zezão, da Automec, de Brasília.
A ideia dos três carros era de termos três equipes diferentes: uma equipe de artistas e personalidades, outra equipe só de jornalistas com talento pra pista e por fim, uma equipe composta de pilotos do Trofeo Linea. A Fiat e as três equipes profissionais do Trofeo Linea cuidariam de todo esse time.”
Provas de endurance envolvem um dos mais complicados balanços do esporte a motor, que é o cruzamento de alta performance com durabilidade, tudo enquadrado sob um regulamento restritivo, inspirado no do Paulista de Marcas. Por isso, foram utilizados o máximo de componentes originais possíveis – tanto pelas restrições quanto pelo fato de serem peças já validadas pela engenharia da Fiat para uso em condições severas.
Zezão se inspirou no motor do Fórmula Futuro, que era um 1.8, para preparar um 1.6 girador para o Palio. “É curioso. Este motor em particular possui válvulas pequenas, dutos pequenos, curso grande, mas por alguma razão, ele rende bem demais em rotações altas. Nós temos apenas indicativos do cabeçote: talvez o comprimento dos dutos em relação ao diâmetro das válvulas, talvez o fato de ele ter apenas um eixo de comando, o que resulta em pouco atrito e menos inércia do valvetrain em altas rotações. Então talvez a gente esteja falando mais de um desperdício energético reduzido do que de características construtivas dedicadas para altas rotações em si”, explica Dilser.
A receita do motor, em si, é simples. Eles encomendaram um comando bravo para a Fiat Corsa italiana, com capacidade para mais de 8.000 rpm, substituíram os tuchos hidráulicos por mecânicos, construíram um coletor de escape fluxado e mandaram ver na taxa, por meio de rebaixamento do cabeçote: 14,3:1. Rendimento: 170 cv a 7.300 rpm e 19,3 mkgf a 5.700 rpm. O câmbio manteve a carcaça do C510 do E-Torq, mas teve uma relação customizada montada com outras engrenagens da prateleira da Fiat, o que incluiu também o diferencial da Dobló Adventure, que tem a relação mais curta da família.
Duas curiosidades: primeiro, todos os três Palio Racing nasceram brancos. Esta unidade foi repintada na planta da Fiat depois de uma gigantesca bateria de testes consecutivos: cerca de quatro dias no autódromo de Brasília, outros três no finado autódromo de Jacarepaguá e mais de 1.000 voltas no Mega Scape. “No desmonte, medimos absolutamente tudo: desgaste de bronzinas, rolamentos, suspensão, freios, etc. Ficamos muito empolgados com o que vimos: o bicho tava virando rápido e era um tanque de guerra. Íamos com tudo, pra buscar o topo da nossa categoria”, afirma Dilser.
Mas esta é uma história que terminou sem começar. Como vocês sabem, as 24 Horas de Interlagos não foram realizadas e continua apenas em nossas memórias. Com isso, os carros ficaram órfãos de seu destino. Dois dos protótipos Dilser foi obrigado a scrapear – sim, destruir –, mas ele conseguiu preservar este filho único. Mais do que isso, houve o legado do conhecimento.
“O Zezão acabou vendo o enorme potencial deste motor, e por isso continuou a desenvolvê-lo, para usar nos Uno de competição do Campeonato Centro-Oeste. Hoje ele rende mais de 184 cv, a quase 8.000 rpm. É tanto giro que tivemos de manufaturar uma engrenagem da bomba de óleo nova em CNC. E, em vez de ganhar taxa pelo rebaixamento, o Zezão está indo por pistões argentinos mais altos, feitos sob encomenda, preservando a geometria do cabeçote”, complementa Ricardo.
E qual o futuro do amarelinho? “Bom, a coisa mais importante é evitar que ele tenha o mesmo destino dos irmãos. Quem sabe as 24 Horas voltam? Talvez alguma outra prova do gênero, preferencialmente de endurance, porque todo o projeto foi dimensionado pra isso. Pra andar bem em um track day ou provas curtas ele precisaria sofrer várias mudanças”, afirma Dilser.
O Palio está com a carroceria toda de lata. Além da remoção das forrações internas, foram removidos apenas os reforços estruturais internos das portas, capô e tampa traseira, os vidros laterais foram substituídos por peças em policarbonato, e foi adicionado um santantônio homologado. Por isso, ele não é exatamente leve, com 980 kg, mas a distribuição de peso é excelente para um tração dianteira, flutuando entre 46-54 e 47-53.
A suspensão foi alterada de forma a conseguir chegar aos até seis graus negativos de cambagem na dianteira, acompanhado de quase quatro graus de cáster e uma convergência bem aberta (portanto, divergente) nos dois eixos; geometria que resulta em um comportamento sobre-esterçante nas entradas de curva.
A ideia era fazer o veículo rotacionar e apontar para o ponto de tangência com a traseira, não com a dianteira (leia nossa reportagem técnica a respeito desta característica dinâmica aqui), como todos os carros de turismo de tração dianteira. Isso seria importante não só para os tempos de volta, mas também para equilibrar o consumo de pneus entre os eixos. “Mas o ajuste não está perfeito pra Interlagos: a dianteira está dura e baixa, o que faz o carro quicar um pouco e escorregar de dianteira no meio da curva”, complementa Dilser.
A caixa de direção conta com uma pequena artimanha: o miolo é da Dobló, que é um pouco mais direta para compensar as respostas mais lentas do seu pneu mais alto.
Os freios são originais de fábrica: discos, pinças e até pastilhas – as únicas mudanças foram a adoção de dutos de refrigeração na dianteira e fluido de competição. Na prova, seriam apenas empregadas pastilhas de competição da Cobreq. Os pneus verdes Firestone Multihawk 185/65 R14 só estão lá para divertir com a sua baixa aderência e alta previsibilidade dinâmica devido ao seu alto ângulo de deriva (confira nossa matéria a respeito clicando aqui). Eles estão rodando com 33 libras na dianteira e 55 na traseira (pressão quente). Com pneus radiais de melhor qualidade, Ricardo Dilser crê que os tempos do Palio Racing fiquem na casa dos 2:02 em Interlagos.
No fim do dia em que fiz o curso de pilotagem do Roberto Manzini, além de pegar a espetacular carona com Ricardo Dilser, pude até mesmo dar algumas voltas com o Palio (a foto abaixo foi tirada pelo amigo Márcio Murta) e me deliciar com sua traseira rebelde combinada à alta comunicabilidade dos pneus radiais. O ronco deste Fiatzinho berrando a quase 8.000 rpm, transmitindo suas vibrações de forma impiedosa à carroceria sem nenhum isolamento acústico, me fez lembrar imediatamente dos clássicos Honda Civic VTI, em uma versão hardcore de pista.
O tipo de experiência que um carro com estas características oferece é mais do que envolvente, é viciante. É uma via de mão dupla, uma constante e enervante troca de inputs e respostas, ações e reações, entre piloto e veículo. Um diálogo ágil e dinâmico, sem pausas, como futebol de salão ou esgrima. Fica a nossa torcida para que este filho único da Fiat um dia consiga cumprir o seu objetivo e alinhe no grid!