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Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte Final: quatro vezes Ford

Quando o Ford GT40 MkIV #1 recebeu a bandeirada depois de 24 horas de corrida, Henry Ford II foi para o pódio com sua esposa. Ele queria estar presente na mais americana de todas as vitórias de Le Mans. Depois da comemoração — e de um banho de champanhe — ele voltou aos EUA e anunciou a criação da Ford of Europe, aproveitando a repercussão da vitória. Em seguida, encerrou o programa milionário de automobilismo. A missão estava cumprida. A Ferrari estava derrotada.

Para 1968, a Comissão Desportiva da FIA decidiu impor um limite de deslocamento dos motores para os protótipos do Grupo 4 e do Grupo 6. Preocupados com as velocidades atingidas na Hunaudières (os Ford chegaram aos 350 km/h) e a fim de evitar uma nova tragédia, eles reduziram os limites de deslocamento para 3 litros nos protótipos do Grupo 4 e para 5 litros nos esportes-protótipo do Grupo 4.

Ford e sua esposa entre Foyt e Gurney

Isso acabou banindo os Ford GT de 7 litros, os Chaparral, os protótipos da Ferrari e os novos Mirage, que haviam estreado em 1967 na equipe de John Wyer (a JW Automotive), uma das independentes que correram com o GT40 nos anos anteriores. Além de reduzir o desempenho dos carros, a intenção também era baratear os custos, permitindo que os motores fossem compartilhados com os carros da F1.

Só que em vez de atrair os fabricantes, eles acabaram desistindo da categoria. Ferrari, Chaparral e Ford abriram mão de seus programas de protótipos, abrindo o caminho para o domínio da Porsche que aconteceria a partir de 1970. O principal motivo da desistência foi o fato de os fabricantes acreditarem que um esportivo de 5 litros poderia superar facilmente um protótipo de três litros, o que não justificaria o investimento na produção de 50 unidades.

A mudança no regulamento e a desistência da Ford, contudo, não significou o fim da linha para o GT40. Como você deve lembrar, o GT40 tinha uma versão equipada com o motor V8 302, de 4,9 litros, e com quatro anos de desenvolvimento, ele ainda era um carro competitivo e confiável para as 24 Horas de Le Mans.

Foi por isso que John Wyer negociou com a Ford para correr novamente com os GT40 e ainda assumir a operação da Ford Advanced Vehicles — a divisão inglesa que fez os primeiros GT40. Assim, mesmo sem a Ford, três exemplares do Ford GT40 foram inscritos pela JW Automotive, e outros dois foram inscritos por pilotos independentes.

Os três GT40 da JW Automotive foram pilotados por Pedro Rodriguez e Lucien Bianchi (caso você esteja se perguntando, ele era tio-avô de Jules Bianchi), Paul Hawkins e David Hobbs, e Brian Muir e Jackie Oliver. As duplas independentes foram Willy Mairesse e Jean “Beurlys” Blaton, Mike Salmo e Eric Lidell.

 

1968 – A terceira vitória

A edição de 1968 foi a primeira com a largada realizada às 15 horas do horário local — até então a corrida começava e terminava às 10 horas. A largada começou debaixo de chuva, e o primeiro incidente aconteceu antes da primeira volta terminar — e não teve relação alguma com a pista molhada.

Willy Mairesse, na euforia da antiga largada de Le Mans, não fechou corretamente a porta de seu GT40. Ao chegar na Hunaudières, quando o carro estava a cerca de 200 km/h a porta se abriu. Ele tentou fechar a porta em movimento, mas acabou perdendo o controle do carro, saiu da pista e bateu nas árvores. Mairesse teve concussões na cabeça que o deixaram em coma por duas semanas e o impediram de retornar as pistas após a recuperação.

O ano de 1968 viu o primeiro grande desempenho dos Porsche em Le Mans. A fabricante alemã levou quatro 908 (três “langheck” e um com traseira curta) com sua equipe própria, e ainda tinha um 907LH, um 906, um 910 e um 911 T com equipes independentes. Ao final da primeira hora os quatro 908 lideravam a prova, com Jo Siffert na dianteira em um 908 de traseira curta (#31).

Na quinta hora foi a vez do Ford de Brian Muir abandonar a prova com a embreagem quebrada depois de sair da pista na curva Mulsanne. Àquela altura o líder da prova, Jo Siffert, já havia aberto uma volta de vantagem sobre todos os outros carros. Seu companheiro de equipe, Vic Elford, vinha em segundo uma volta atrás com o 908 #32, e era seguido pelos Ford da JW Automotive em terceiro e em quarto e por outro 908 em quinto (#34). Três Porsche e dois Ford nas cinco primeiras posições.

Brian Muir tentando tirar seu GT40 do banco de areia

Foi quando a Porsche começou a ter problemas: tanto Rolf Stolmellen (908 #33) quanto Elford tiveram problemas elétricos e perderam posições enquanto os carros eram consertados. Depois foi a vez de Siffert: sua embreagem quebrou logo no início da noite, ele não conseguiu voltar para os boxes e sua prova acabou ali mesmo.

Com isso, a noite caiu em Le Mans com o Ford GT de Pedro Rodriguez e Lucien Bianchi na dianteira e o Ford GT de Hawkins e Hobbs na segunda posição. Por volta das 21:00, o GT40 de Hobbs apresentou problemas na embreagem e ficou quase duas horas nos boxes. Quando ele finalmente voltou à pista, seu motor quebrou na Hunaudières. Fim da prova para mais um Ford. Restavam apenas dois na pista.

Àquela altura a briga era entre o Ford de Rodriguez/Bianchi e o Porsche 908 de Vic Elford e Gerhard Mitter, que estavam novamente na mesma volta. Não durou muito: a correia do alternador do Porsche quebrou, a equipe trocou o alternador e acabou desclassificada por fazer uma substituição mecânica irregular. Em seguida foi a vez do Porsche 908 #34 abandonar com um problema no alternador.

Às 2:30 a chuva voltou, engrossou e ficou até raiar o dia, e foi sob o aguaceiro que o Ford de Bianchi e Rodriguez abriu uma vantagem de quatro voltas sobre os demais corredores. À medida em que a noite avançava, o Ford mantinha seu ritmo constante e seus rivais perdiam tempo nos boxes com problemas variados. Às 6:30, quando clareou, a chuva parou e o Ford de Rodriguez/Bianchi estava sete voltas à frente do segundo e do terceiro colocados. Com novos incidentes envolvendo o resto do pelotão, Bianchi e Rodriguez só precisaram conservar o carro — eles até mesmo diminuíram o ritmo, o que diminuiu sua vantagem de sete para cinco voltas.

Pedro Rodriguez e Lucien Bianchi

Depois de 13 participações, Lucien Bianchi finalmente conquistava as 24 Horas de Le Mans. Depois de 11 participações, Pedro Rodriguez finalmente conquistava as 24 Horas de Le Mans. Pela terceira vez a Ford vencia as 24 Horas de Le Mans, com uma nova configuração, com uma nova equipe e com novos pilotos.

 

1969 – a vitória por 120 metros

No ano seguinte John Wyer manteve seu acordo com a Ford e inscreveu carros idênticos aos de 1968. O que mudou foram os pilotos e a quantidade de carros inscritos: a equipe inscreveu dois Ford GT40, um deles pilotados por Jacky Ickx e Jackie Oliver, o outro pilotado por David Hobbs e Mike Hailwood. Havia ainda outros três GT40 inscritos por equipes independentes, um deles pilotado por Helmut Kelleners e Reinhold Joest, que mais tarde fundou a Joest Racing.

Como no ano anterior, a principal rival dos Ford foi a Porsche, que desta vez compareceu com quatro 908, pilotados por Jo Siffert e Brian Redman, Hans Herrmann e Gérard Larousse, Rudi Lins e Willy Khausen, e Udo Schütz e Gerhard Mitter, e três exemplares do novo 917LH, pilotados por Rolf Stommelen e Kurt Ahrens, John Woolfe e Herberg Linge, e Vic Elford e Richard Attwood. A Ferrari inscreveu apenas duas 312P, uma com Pedro Rodriguez e David Piper, outra com Chris Amon e Peter Schelty.

A largada daquela edição se tornaria a última no estilo clássico de Le Mans, com os pilotos correndo até os carros estacionados no outro lado da pista. Rolf Stommelen já estava fritando a borracha quando Jacky Ickx ainda atravessava a pista caminhando em um protesto solitário contra aquele tipo de largada depois do acidente de Mairesse no ano anterior.

Ickx sabia dos problemas daquele tipo de largada – e sua preocupação foi justificada logo na primeira volta:   o comportamento arisco do Porsche 917 e a inexperiência de um de seus pilotos resultou em um acidente gravíssimo que tirou a vida do britânico John Woolfe. Ele havia comprado o Porsche na véspera da prova e, na ocasião, disse que ficou assustado com a potência. Na aproximação da Maison Blanche, Woolfe passou com duas rodas na grama, o carro rodou, bateu em uma rampa e pegou fogo. Ele chegou a ser levado ao hospital de helicóptero, mas morreu ao dar entrada na emergência.

O acidente também afetou a Ferrari: Chris Amon literalmente atropelou o tanque de combustível do Porsche, que acabou preso em sua 312P e acendeu como um fósforo riscando a caixa. Amon saiu ileso, mas sua corrida acabou ali mesmo.

Stommelen havia saído na dianteira e manteve a liderança seguido por outros quatro Porsche (Stommelen, Elford, Siffert, Mitter e Herrmann). Em seu primeiro pit stop, um vazamento na transmissão fez o alemão perder tempo nos boxes e reordenou a classificação parcial. O 917 de Elford e Attwood foi para o topo, à frente dos 908 de Mitter, Herrmann e Lins. Na quinta posição vinha Piers Courage com um Matra e Ickx aparecia em sexto com seu Ford GT.

No início da noite os três Porsche lideravam a prova, mas por volta das 2:45 o 908 de Schütz (que estava em terceiro) e o 908 de Larrousse (que vinha em oitavo) bateram e o carro de Schulz pegou fogo. O piloto escapou ileso, mas sua corrida acabou ali mesmo. O outro 908, de Larrousse, conseguiu voltar aos pits para ser consertado.

No fim da madrugada a Porsche liderava a prova com o 917 de Elford/Attwood, seguido pelo 908 de Lins/Kauhsen, mas os Ford já apareciam na quarta e na quinta posições, à frente do 908 de Herrmann/Larrousse. A única Ferrari 312P remanescente resistia bravamente em oitavo com um vazamento irremediável no sistema de lubrificação, mas abandonou pouco depois das cinco da manhã. Quando o dia começou a clarear, um nevoeiro denso baixou sobre La Sarthe e os dois líderes tinham uma vantagem de cinco voltas.

Foi quando a história começou a mudar.

Por volta das 10 horas, os dois Porsche da ponta entraram nos boxes com algum problema não identificado pela equipe. Eles foram liberados, mas o carro de Lins/Kauhsen parou na Mulsanne com a embreagem quebrada. Fim da prova para eles. Meia hora depois foi a vez do 917 de de Elford/Attwood: uma solda no câmbio se abriu de forma irrecuperável. Às 11 horas da manhã Jacky Ickx e Jackie Oliver assumiam a liderança, seguidos pelo outro GT40 da John Wyer.

A prova se encaminhava para uma dobradinha da Ford, mas ainda no fim da manhã o GT40 de Hobbs/Hailwood teve que parar para trocar os freios traseiros e o Porsche 908 de Herrmann/Larrousse conseguiu passá-lo e assumiu a segunda posição e apertou o ritmo.

Na última hora, depois do último pit-stop, as duas equipes colocaram seus melhore pilotos nos carros: Ickx no Ford e Herrmann no Porsche. Os dois estavam na mesma volta — Ickx com uma vantagem de 10 segundos sobre Herrmann. Para colocar mais emoção nas últimas voltas, o 908 estava com freios desgastados e com o motor girando 400 rpm menos que no início da prova. O Ford tinha problemas no escape e estava perdendo potência. Os dois começaram a alternar posições repetidamente e Ickx sabia que se ele entrasse na Hunaudières na frente, Herrmann usaria o “vácuo” para ultrapassar antes do fim do retão, com tempo suficiente para fazer o mesmo e retomar a posição e segurar a dianteira na parte travada. E assim ele fez.

Só que… a volta foi completada com 23 horas de 59 minutos de prova. Eles teriam que dar mais uma volta. O GT40 já havia dado 23 voltas desde o último reabastecimento, e ele só havia feito isso uma vez. Ickx estava entrando na 24ª volta sem reabastecer, um território desconhecido para ele e para a equipe.

Na entrada da Hunaudières Ickx encenou uma falta de combustível e deixou Herrmann passar. Depois usou o vácuo para retomar a frente, entrou na Mulsanne antes do alemão e o segurou em segundo até receber a bandeirada, com uma vantagem de 120 metros.

Ickx e Oliver venceram a corrida. O Ford GT #1075, o “Old Lady” venceu as 24 Horas de Le Mans pela segunda vez (sim, era o mesmo carro vencedor de 1968) e a Ford completava sua saga de quatro vitórias consecutivas.

Foi a segunda vez na história que um mesmo chassi ganhou duas provas consecutivas (o outro foi um Bentley Speed Six em 1929 e 1930) e a terceira vez que uma fabricante vencia quatro vezes seguidas.

 

C’est fini

Jackie Ickx dedicou a vitória a Lucien Bianchi, o vencedor de 1968 que morreu pouco antes da edição de 1969 durante um teste com o Alfa Romeo 33. Em 1970, John Wyer negociou com a Porsche e trocou os agora defasados GT40 pelo novo Porsche 917K, dando início à era de domínio da fabricante em Le Mans.

Depois do protesto de Ickx, a largada das 24 Horas de Le Mans de 1970 foi feita com os pilotos dentro do carros, presos nos cintos e com as portas fechadas. Em 1971 a largada foi lançada — como é até hoje.

A Ferrari nunca mais venceu as 24 Horas de Le Mans, mas com as mudanças no regulamento seus modelos GT tiveram vitórias de classe (GT1, GT2, GTE Am ou Pro) em 2003, 2008, 2009, 2012, 2014, 2015, 2016, 2017 e 2019.

Quanto à Ford, ela voltou a Le Mans em 2016 com o Ford GT de terceira geração para comemorar os 50 anos da vitória de 1966. Eles conseguiram superar a Ferrari na GTE Pro, mas não conseguiram repetir o feito no ano seguinte, como fizeram nos anos 1960, e deixaram o Mundial de Endurance depois das 24 Horas de Le Mans de 2019.


 

Capítulos anteriores:

Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 1: Davi vs. Golias
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 2: o nascimento do GT40
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 3: a última derrota
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 4: enfim a vitória
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 5: o indomável Ken Miles
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte 6: a vitória totalmente americana
Ford vs. Ferrari: a guerra de Le Mans | Parte Final: quatro vezes Ford