Na noite desta última quinta-feira (24), logo depois da publicação de nosso texto explicativo sobre a crise do transporte/combustíveis, o governo federal anunciou que havia chegado a um acordo com as lideranças do movimento para normalizar a situação e assumiu como certo o fim da paralisação. Não foi o que aconteceu.
Ao amanhecer as rodovias continuaram parcialmente ocupadas e nenhum caminhoneiro voltou à rotina normal. Apesar da assinatura de 11 entidades representantes dos caminhoneiros, os caminhões continuavam estacionados nos acostamentos em faixas das rodovias de forma que o fluxo de automóveis e veículos não fosse interrompido.
As entidades signatárias do acordo com o governo se isentam da continuidade da paralisação, dizendo que não têm como obrigar os caminhoneiros a saírem das estradas — o que pode indicar que suas lideranças não são realmente lideranças, ou que o governo se reuniu com entidades não envolvidas com os manifestantes para justificar uma ação mais severa. Além disso, os motoristas autônomos rejeitam a representatividade destas entidades e, portanto, o acordo firmado.
Entre as entidades que rejeitaram o acordo estão a União Nacional dos Caminhoneiros, que participou da negociação mas não assinou o acordo, e a Associação Brasileira dos Caminhoneiros (Abcam) — responsável pelo ofício que deu origem à greve — cujo representante se retirou da reunião e, mais tarde, repudiou o discurso do presidente Michel Temer.
O governo federal, por sua vez, insiste que os caminhoneiros que resistem são apenas “uma minoria radical”, embora a situação de desabastecimento (e o volume de caminhões parados) diga o contrário. Diante da situação de descumprimento do acordo, o governo federal autorizou a ação do exército para liberar as rodovias — removendo os caminhões do acostamento se necessário — e solicitou que os governadores instruam as polícias militares a fazer o mesmo.
No início desta noite, o presidente Michel Temer decretou Garantia da Lei e da Ordem (GLO) em âmbito nacional até o dia 1º de junho. O decreto dá mais autoridade ao exército para atuar no desbloqueio e na normalização da situação, com direito ao poder de polícia e de requisição de bens, isto é: os militares estão autorizados a requisitar caminhões para garantir o abastecimento de medicamentos, combustíveis e alimentos. O decreto da GLO foi uma medida solicitada pelo exército para amparar a atuação dos militares na normalização da situação.
O lado dos caminhoneiros
Depois que o governo federal anunciou a atuação dos militares para normalizar a situação, as associações de caminhoneiros solicitaram que os manifestantes removessem seus caminhões das estradas. Contudo, o desbloqueio não significa que eles voltarão às atividades, bastando manter os caminhões estacionados nos pátios e garagens.
A tolerância dos empresários com a situação, levou os governo federal a suspeitar da prática de lockout/locaute, uma situação na qual o patronato deixa de oferecer as condições de trabalho para os trabalhadores, de forma que a paralisação atenda os interesses das empresas. Por se tratar de uma greve forçada que beneficia o lado forte da relação trabalhador-empresa, esta prática é proibida, daí a intenção do governo em investigar se há interferência das transportadoras na greve. Segundo esta hipótese do governo, as empresas supostamente formaram conluio com transportadores autônomos e sindicatos para forçar a redução dos preços do diesel.
Os recentes aumentos no diesel por outro lado, foram apenas o estopim de uma crise que se arrasta há alguns anos. Em 2015 o país viu a primeira grande paralisação dos caminhoneiros, que já reivindicavam preços mais baixos dos combustíveis, reajuste nos preços dos fretes, pedágios mais baratos para caminhões, revisão da lei que regulamentava as horas de descanso compulsório dos caminhoneiros, e aumento no período de carência do programa Procaminhoneiro do BNDES.
O programa Procaminhoneiro, aliás, foi um dos fatores que contribuíram para a atual crise. Da mesma forma que os demais incentivos do governo federal no início desta década, o programa incentivou o mercado de caminhões (chassis, reboques, carretas e cavalos-mecânicos) para autônomos e transportadoras. Isso aumentou a oferta de transportes, mas a realidade (sempre ela) não correspondeu com o crescimento econômico necessário para sustentar o endividamento dos caminhoneiros. Isto é: não houve crescimento proporcional da demanda, o que resultou na queda dos preços do frete enquanto os custos operacionais aumentaram — aumentando também a insatisfação da categoria, que vinha tentando negociar com o governo, sem sucesso, desde o final de 2017.
Diante da ação do governo federal, a Abcam pediu que os caminhoneiros desbloqueassem voluntariamente as estradas em um comunicado publicado na noite desta sexta-feira (25):
Após o pronunciamento do presidente da República, Michel Temer, no início da tarde desta sexta-feira, 25, a Associação Brasileira dos Caminhoneiros – Abcam, preocupada com a segurança dos caminhoneiros envolvidos, vem publicamente pedir que retirem as interdições nas rodovias, mas, mantendo as manifestações de forma pacífica, sem obstrução das vias.
Já mostramos a nossa força ao Governo, que nos intitularam como minoria. Conseguimos parar 25 estados brasileiros com mais de 504 interdições.
Vale lembrar que a Abcam continua sem assinar qualquer acordo com o Governo e mantém o pedido de retirada do PIS/Cofins sobre o óleo diesel.
A culpa do caos que o país se encontra hoje é reflexo de uma manifestação tardia do presidente Michel Temer, que esperou cinco dias de paralisações intensas da categoria. Estamos desde outubro do ano passado na expectativa de sermos ouvidos pelo Governo. Emitimos novo alerta no dia 14 de maio, uma semana antes de iniciarmos os protestos.
É lamentável saber que mesmo após tanto atraso, o presidente da República preferiu ameaçar os caminhoneiros por meio do uso das forças de segurança ao invés de atender às necessidades da categoria.
Sendo assim, nos resta pedir a todos os companheiros que desobstruam as rodovias e respeitem o decreto presidencial.
JOSÉ DA FONSECA LOPES
Presidente da ABCAM
As consequências
O desabastecimento geral é apenas o primeiro efeito da paralisação — e o que será mais facilmente resolvido. Com a Garantia de Lei e Ordem o governo espera que a normalidade se reestabeleça a partir de segunda-feira, mas ainda haverá uma série de consequências posteriores.
A isenção dos impostos federais sobre o diesel irá custar aproximadamente R$ 14 bilhões até o fim do ano, mas isso não significa que o governo simplesmente deixará de arrecadar este valor. Com o orçamento todo comprometido, o governo será obrigado a arrecadar este valor de outra forma para não cometer o crime de responsabilidade fiscal. Assim, haverá a oneração de 28 setores da economia para garantir que a quantia entre nos cofres públicos. Entre os produtos e serviços que serão onerados estão os pneus, medicamentos, brinquedos e hotéis, que acabarão repassando ao menos parte do aumento de impostos aos consumidores. Teremos aumentos de preços, que, fatalmente, afetam a inflação. Além disso a paralisação da produção industrial afeta a arrecadação de impostos e, de forma mais sutil, o PIB.
Produtores descartam leite fresco na pista: sem transporte, produção pereceu
E ainda temos que considerar as perdas de safras e produtos perecíveis, que não são repostos apenas com a retomada da produção, e certamente irão encarecer para compensar os prejuízos acumulados em uma semana de paralisação. No fim, esta será uma conta que todos nós vamos pagar — caminhoneiros, inclusive. Os menos afetados, como sempre, serão a classe política, que não cogitou reduzir os gastos públicos e novamente irá repassar a conta para o povo; especialmente os governos estaduais, que ficam com a maior fatia dos impostos sobre os combustíveis e sequer foram lembrados pelas manifestações.