A Harley-Davidson é certamente uma das mais emblemáticas fabricantes de motocicletas. Seus modelos são sinônimo de motores grandes, de baixo giro e alto torque; visual clássico, repleto de elementos cromados; e tamanho avantajado. Quem não manja muito de motocicletas, aliás, costuma chamar toda moto cruiser de Harley, mesmo que seja uma Honda Shadow.
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A questão é que este tipo de moto não parece agradar muito às gerações mais novas – não é preciso procurar muito para encontrar artigos culpando os millenials pela derrocada da Harley-Davidson, que vem sofrendo nas vendas já há alguns anos. E, de fato, uma Harley pode ter sido sonho de consumo de nossos pais, ou até mesmo avós, mas os jovens de hoje em dia não assistiram Easy Rider e não ouvem Motörhead.
Generalizações à parte, de fato a Harley-Davidson busca um novo público para tentar sobreviver. Seu esforço mais recente e ousado se chama Livewire, uma motocicleta elétrica diferente de tudo o que a H-D já fez até hoje, com pegada mais esportiva e design moderno (ainda que traga alguma semelhança com as Harley menores, como a 883).
Isto posto, até agora a Livewire tem se mostrado uma moto problemática – em outubro, correu a notícia de que a produção da moto foi interrompidas por problemas no equipamento de recarga. Ela já voltou a ser fabricada, mas ainda é preciso esperar para ver se a estratégia da Harley-Davidson, que consiste em complementar sua linha tradicional com uma linha de motos elétricas, renderá frutos.
O caso é que a Livewire não é a primeira ruptura da Harley-Davidson com sua fórmula tradicional. Na década de 1990, a fabricante investiu no desenvolvimento de uma superbike voltada para as pistas – e ela era também era totalmente diferente de qualquer outra moto que a marca já havia feito. Quase uma anti-Harley.
Seu nome era VR1000, e ela tinha a missão de mudar a imagem da Harley aos olhos do público – exatamente como a Livewire. A motivação também era parecida: desde a segunda metade da década de 1980, as Harley estavam em declínio, sofrendo com o desinteresse do público. Para os executivos e engenheiros da empresa, a chave para reverter este quadro estava em obter sucesso nas corridas, competindo de igual para igual com as fabricantes japonesas e europeias.
Na época, a Harley já havia ensaiado uma mudança na forma da família XR, com motos mais compactas e ágeis, mas ainda assim movidas por seus motores V-twin tradicionais, com comando pushrod e arrefecimento a ar – resumidamente, foi o que deu origem à atual família 883.
Mas era preciso ir além para vencer corridas, e inovar de verdade. Foi por isso que a Harley-Davidson convocou um time de engenheiros – entre eles, Erik Buell, que já havia trabalhado na H-D entre 1979 e 1983 e, anos mais tarde, veio a fundar sua própria fabricante, a Buell, que foi uma divisão da Harley 1983 e 2009 – para criar um novo projeto a partir do zero. Um novo quadro, um novo motor e uma nova estética para uma nova missão.
Buell foi quem insistiu para que, a exemplo das motos italianas, como a Ducati, a nova motocicleta tivesse um motor moderno e girador – ele não acreditava que um V-twin grande e pesado, de curso longo, comando no bloco e arrefecimento a ar fosse competitivo na categoria Superbike da American Motorcycle Association (AMA).
O novo motor era um V-twin de ângulo mais estreito, 60° contra os 90° costumeiros, e trazia comando duplo nos cabeçotes. As medidas de diâmetro e curso de 98×66 mm resultavam em um deslocamento de 996 cm³ (um cisco abaixo do teto de 1.000 cm³ da categoria) e capacidade para girar a até 9.000 rpm. O sistema de injeção da Weber garantia potência na casa dos 140 cv, e o arrefecimento líquido tinha eficiência de sobra para garantir que o motor não superaquecesse – o que, de fato, não seria o caso sem um radiador. O câmbio era de cinco marchas, modificado a partir da transmissão da H-D XL 1200.
O motor ficava ajolado em um chassi perimetral de liga de alumínio, e contava com suspensão Öhlins na dianteira, com garfo ajustável; e um sistema monobraço da Penske na traseira. Os freios eram da AP Racing, com pinças de seis pistões. A carenagem era toda de fibra de carbono.
Considerando que a Harley-Davidson era uma iniciante nas superbikes, o desenvolvimento da VR1000 levou mais do que o esperado: se as previsões mais otimistas falavam em uma estreia na temporada de 1991, na prática só foi possível colocá-la para correr em 1994.
A VR1000 participou do Campeonato Mundial d Superbike até 2001, em uma trajetória marcada por abandonos de prova por problemas mecânicos – ainda que, quando funcionava bem, a moto brigasse constantemente pelas primeiras posições do grid. Mesmo com potência ligeiramente inferior às rivais, a H-D de corrida compensava no excelente acerto de suspensão.
E havia, ainda, as unidades de rua, feitas para homologação. No total, 55 delas foram feitas em 1994, de acordo com a maioria das informações disponíveis atualmente, mas o número exato de motos que foram feitas é desconhecido – especialmente porque muitas delas acabaram indo parar nas pistas, nas mãos de pilotos independentes.
Após sete anos anos sem vitórias, porém, a Harley-Davidson decidiu cancelar o programa de competição da VR1000. Mas não foi o fim para seu motor com comando duplo nos cabeçotes: em parceria com a Porsche, o projeto foi transformado no motor Revolution, um V-twin de 1.131 cm³ com 135 cv no virabrequim (115 cv na roda, segundo testes da época) que foi usado na Harley-Davidson V-Rod, produzida entre 2001 e 2017.