Cara… já faz 20 anos. Vinte anos que George Harrison deixou o mundo material, segundo suas próprias crenças e convicções. Ele era o mais novo dos Beatles e também era o mais introspectivo daqueles quatro rapazes de Liverpool, o que o levou a ficar conhecido como “o Beatle quieto”. Eu sou um cara quieto, apesar de falar muito quando necessário, então o fato de ele ser considerado o “Beatle quieto” não fazia muito sentido para mim. Quem não está falando está ouvindo ou refletindo. Faz sentido ser “quieto”. Nunca pensei em George Harrison como “o Beatle quieto”. Pra mim, ele era “o Beatle que gosta de carros”.
Isso, porque eu descobri os Beatles muito cedo. Eu lembro da fita que meu pai ouvia no carro no caminho para a minha pré-escola, e lembro dos discos que meu pai tinha e atraíam meus primos para a minha casa, sempre com uma fita cassete virgem, pronta para copiar as músicas. E um destes discos era esse aqui:
Não é das fotos mais legais para um garoto de 6 ou 7 anos, mas ela é intrigante, porque ele está sentado em um carro com um chapéu. “Será que ele tá fingindo ser um caipira, com esse chapéu e o trator?”, eu pensava. Mais tarde, descobri que este era um de seus carros, um hot rod criado com inspiração no Deuce Coupe do filme “American Graffiti”. Ou seja: ele gostava tanto dos carros que até fazia capas de discos com eles.
O que pouca gente sabe, contudo, é que a paixão de George Harrison pelos automóveis nasceu juntamente de sua paixão pelo rock ‘n’ roll, porque tudo aconteceu praticamente ao mesmo tempo.
George Harrison nasceu em fevereiro de 1943, oito meses depois de Paul McCartney. Os dois se conheceram no ônibus, indo para o Liverpool Institute, a escola onde ambos estudavam, juntamente com Neil Aspinall, que se tornaria um faz-tudo dos Beatles e diretor da Apple Music (a gravadora dos Beatles, não o serviço de streaming da Apple). O ano era 1957 — George tinha 14 anos e Paul tinha 15 — e eles acabaram se falando porque gostavam de rock ‘n’ roll, a grande novidade do momento, especialmente no Reino Unido, onde as coisas demoraram algum tempo para chegar.
Mas as guitarras eram apenas uma das paixões de George na época. Ele já tinha seu violão Rosetti 276, um violão barato, vendido em lojas de departamentos, e que tocava fingindo ser Carl Perkins. Sua outra paixão era proibida para um garoto de 14 anos como ele: os automóveis. O gosto pelo volante tem a ver com o pai, não por ser um motorista de ônibus (ou talvez sim, quem saberá?), mas porque em 1955 o GP do Reino Unido foi realizado no circuito de Aintree, que fica em um povoado vizinho de Liverpool, no mesmo condado de Merseyside.
Seu pai, que gostava de dirigir também nas horas vagas, pegou a família inteira, enfiou em um dos ônibus que dirigia e levou todos para ver o GP de Fórmula 1 daquele ano. O jovem Harrison viu pessoalmente ninguém menos que Juan Manuel Fangio e Stirling Moss brigando pela vitória praticamente ao lado de sua casa. Lembre-se: o ano era 1955, então Fangio e Moss estavam com o lendário Mercedes W196 e seu oito-em-linha. Não poderia ter sido diferente. Harrison tinha uma nova paixão.
Mas as circunstâncias da vida — e o fato de saber tocar o grande hit do momento, Raunchy, impecavelmente — o colocaram em um trio de skiffle (uma versão simplificada e acelerada do country-blues que baseou o rock) chamado Quarry Men, ao lado de Paul McCartney e John Lennon. O resto é história.
E foi essa história que permitiu George Harrison acender e embalar sua outra paixão. Em 1962, depois de voltar da Alemanha e de começar a fazer sucesso com os Beatles, Harrison comprou seu primeiro carro, um Ford Anglia 105E 1959. Consta que ele pegou uma carona com Ringo Starr, recém-admitido nos Beatles, até a revenda Hawthorn Engineering Company, em Warrington, uma cidade entre Liverpool e Manchester.
Na época, Ringo Starr era o único beatle que tinha um carro — um Ford Zephir que acabou danificado na volta de Warrington, quando Ringo desviou de um animal que pulou na frente do carro, enquanto Harrison estava mais adiante, curtindo seu primeiro carro. O Anglia 105E era o modelo de entrada da Ford na Inglaterra na época — imagine, era como comprar um Ka 2018 atualmente. O modelo de Harrison, especificamente, usava o motor OHV de 997 cm³, com 40 cv e velocidade máxima de 118 km/h.
Apesar de não parecer o carro mais entusiasta do mundo, Harrison ficou com ele até 1963, quando os Beatles estouraram de verdade em todo o Reino Unido e Europa e já começavam a conquistar os EUA. Naquele ano, George comprou um Jaguar Mk2 novinho — seu primeiro carro zero-quilômetro.
Infelizmente não há muitos detalhes sobre a motorização do carro, que, naquele ano, era oferecido com os motores 2.5, 3.4 e 3.8, todos seis-em-linha.
O terceiro carro de Harrison veio três dias após seu 21º aniversário: em 28 de fevereiro de 1964, ele colocou na garagem um Jaguar E-Type novinho em folha. O carro, ao que consta, foi um presente do empresário Brian Epstein, um cara pouco mais velho que eles e que profissionalizou aqueles moleques talentosos.
Sendo um modelo do início de 1964 (ou do final de 1963), sabemos que se trata de um Series 1 com o motor seis-em-linha 3.8 (o 4.2 viria somente em outubro daquele ano). E pelas fotos, fica evidente que era um fastback de dois lugares. O toque de personalidade do carro é que ele tinha um toca-discos no painel, um acessório um tanto raro (afinal, não funcionava tão bem quanto deveria).
No início de 1965 George comprou outro ícone britânico — um carro tão famoso quanto ele próprio, na época: um Aston Martin DB5 branco. Na época o Aston havia se tornado o carro do James Bond — ele estreou no filme “007 Contra Goldfinger” no ano anterior — e era equipado com uma evolução do clássico seis-em-linha de alumínio que já vinha sendo usado no DB4, mas agora com quatro litros em vez de 3,7 litros. A alimentação ficava ao cargo do trio de carburadores SU e, juntos, o deslocamento e a tripla carburação desenvolviam 282 cv, suficientes para levar o Beatle aos 233 km/h, se ele desejasse.
Sendo um ícone na Londres dos swingin’ sixties, Harrison não poderia terminar os anos 1960 sem o carro que era a cara da capital britânica naquela época: o Mini Cooper.
Ainda em 1965, Brian Epstein fez um acordo com um concessionário da Mini para comprar quatro exemplares a preço de custo. Cada beatle ganhou o seu — e Ringo Starr tinha um dos poucos Mini hatchback feitos nos anos 1960, para que pudesse levar sua bateria no carro. Harrison ganhou um vermelho com lanternas de Fusca instaladas na horizontal e faróis auxiliares no capô, como se fosse um Mini de rali — se foi intencional ou não, nunca saberemos.
Harrison manteve esta garagem por toda a década – o Aston, o Jag e o Mini. Ele só foi comprar um carro novo de novo em 1967, já no auge dos Beatles e na mesma época em que George “virou indiano”, como diria Ringo Starr em 1995. Foi nessa época, por exemplo, que Harrison pintou seu Mini Cooper com uma pintura psicodélica inspirada nos Tantras Sutras — que foi como o carro apareceu no filme “Magical Mistery Tour”.
O carro novo de George em 1967, contudo, não era um ícone britânico, mas algo que remonta à origem dos Beatles e seu tempo na zona portuária de Hamburgo: um Mercedes 600 Grosser de entre-eixos curto. O modelo era o topo de linha da Mercedes e, na época, o único equipado com um motor V8 na época — o hoje lendário M100, de 6,3 litros e 250 cv. George ficou com esse carro ao menos até 1970, quando provavelmente o trocou por outro Mercedes V8.
Esse carro foi visto em algumas ocasiões, mas aparece no clipe de “Free as a Bird” e no documentário Anthology, quando George estaciona em frente à sede da Apple em Saville Row, onde haveria o lendário “rooftop concert”, e sai do carro usando um chapéu preto.
O 600 “Grosser” fez Harrison pegar gosto pelos modelos Mercedes, aparentemente. Em 1970, já no fim dos Beatles, ele comprou outros dois modelos da marca: um 300SEL 6.3 e um 250CE. Os dois carros foram usados por ele nos anos 1970. O 250CE foi leiloado recentemente, mas o 300SEL acabou destruído depois que Harrison o bateu em um poste de luz, a caminho de uma festa.
Além do Grosser 67, Harrison ainda teve um 600 Pullman, uma limousine que foi comprada originalmente por John Lennon. Lennon a vendeu a Harrison em 1971 quando foi embora da Inglaterra para Nova York.
Harrison, contudo, ficou pouco tempo com a limousine: em 1976 ele a vendeu para Mary Wilson, das Supremes, que a levou para os EUA e a usou na turnê do grupo em 1979.
Na mesma época em que comprou os Mercedes, Harrison também colocou na garagem sua primeira Ferrari. Em 1969 ele arrematou uma raríssima 365 GTC 1969 – uma das 168 produzidas entre 1968 e 1970. O modelo era uma evolução da 330 GTC que, por acaso, foi o primeiro carro de John Lennon. Era equipada com o V12 Colombo em uma variação de 4,390 cm³ (daí o 365 no nome; sendo 365 o deslocamento por cilindro) alimentada por três Weber 40 DFI de corpo duplo para produzir 320 cv a 6.600 rpm.
Segundo a a autobiografia de Eric Clapton, que é um grande amigo de Harrison, foi este carro que despertou seu interesse pelas Ferrari. “Foi como ver a mulher mais bonita do mundo”, disse no livro. Apesar de ser um modelo tão especial, Harrison ficou somente um ano com ela, e a vendeu em meados de 1970.
Harrison voltaria a comprar uma Ferrari em 1975, quando escolheu uma Dino 246GT amarela, comprada usada. Ele a manteve por quatro anos antes de colocá-la a venda.
Aparentemente ele não se deu muito bem com as Ferrari, porque em 1979 ele comprou um Porsche 930 novinho e, mais tarde, o trocou por um 928S.
Ainda nos anos 1980 Harrison teve um Mercedes 500SEL AMG, que foi o carro que usou por mais tempo. Comprado em 1984 de uma AMG inda independente, ele rodou 30.000 milhas (48.000 km) ao longo de 15 anos, tendo-a vendido apenas dois anos antes de sua morte, quando já estava tratando a doença que o levou.
Além do Mercedes, Harrison também teve um outros dois esportivos em sua garagem no final de sua vida — um deles, ao que consta, até hoje pertence à sua família (Dhani é um cara de sorte: herdou as guitarras e o carro do pai…).
O primeiro é o Light Car Company Rocket, esportivo de apenas 380 kg com motor Yamaha do qual a empresa de Murray produziu apenas 55 unidades. Harrison recebeu um dos primeiros exemplares em 1992.
Dois anos depois, em 1994, Harrison foi um dos compradores do McLaren F1. Essa é a parte que a maioria dos beatlemaníacos (com todo respeito a estes verdadeiros estudiosos dos Beatles) acaba confusa por não conhecer muito bem os automóveis a fundo. Normalmente você vê um McLaren F1 verde com Olivia Harrison (a segunda esposa de Harrison) a bordo do carro ou em um vídeo no qual os três beatles vivos na época chegam à casa de Harrison em Friar Park, para a gravação do documentário “Beatles Anthology”.
Acontece que este carro não é o McLaren F1 de Harrison. Este é um dos protótipos pertencentes à McLaren, como mostra a placa K8 MCL. Na sequência de fotos com Olivia Harrison a bordo do carro, aliás, quem está dirigindo o carro é ninguém menos que Gordon Murray, o criador do McLaren F1, levando Olivia e George nos bancos laterais do carro.
Infelizmente não encontrei muitas informações sobre este episódio, mas considerando que as gravações aconteceram em 1994, é possível que Murray tenha levado um dos exemplares da fábrica para Harrison durante as sessões de gravação. O McLaren F1 de Harrison era roxo com rodas pretas, e tinha placas M7 AUM.
Agora… por que Murray iria à casa de Harrison? Seria ele um representante especial da McLaren? Na verdade, os dois eram muito amigos — Murray também era amigo de Ringo Starr. Os dois beatles eram figurinha fácil no paddock da Fórmula 1 nos anos 1980, quando Harrison passou a levar o amigo baterista para as corridas.
Harrison, como contei no início, se tornou um fã da velocidade em 1955, quando foi assistir ao GP da Grã-Bretanha em Aintree, às margens do rio Mersey, que também corta Liverpool. Em 1969, os Beatles estavam em Mônaco durante o GP daquele ano. Foi quando Harrison se aproximou de Jackie Stewart e ambos se tornaram amigos. Em 1972, Harrison foi ao GP da Grã-Bretanha em Silverstone e conheceu seu outro grande amigo na Fórmula 1, Emerson Fittipaldi, então um ídolo no Reino Unido por estar disputando o título mundial pela Lotus.
A partir dali, Harrison se tornou um frequentador de autódromos. Ele foi o primeiro Beatle a pisar em solo brasileiro justamente por isso: Emerson o convidou para o GP do Brasil de 1979 e o hospedou em sua casa de praia em Guarujá/SP. Foi ali que Harrison descobriu as caipirinhas que menciona na homenagem que faria a Emerson em 1996, após o terrível acidente que encerrou a carreira de Emerson, no Michigan Speedway.
Ainda nos anos 1970, Harrison gravou uma música em homenagem à Fórmula 1, “Faster”, em homenagem a todo o circo e a Ronnie Peterson, que havia acabado de morrer após um acidente no GP da Itália de 1978. No vídeo da música, Jackie Stewart é o motorista de George Harrison.
Ainda durante as gravações de “Beatles Anthology”, em Friar Park (o mesmo lugar em que os Beatles chegam de McLaren F1), em certo momento eles vão para uma sala onde se vê um quadro de Ayrton Senna na McLaren ao fundo, atrás de Ringo Starr.
Harrison manteve seu (bom)gosto por carros e automobilismo até o fim de sua vida. Em 1997 ele foi diagnosticado com câncer de pulmão e passou por uma cirurgia para a remoção das células cancerosas e seguiu o tratamento com radioterapia. Dois anos depois, ele foi atacado em casa por um homem que sofria de esquizofrenia, sendo esfaqueado 40 vezes. Apesar de ter se recuperado, ele perdeu parte de um dos pulmões. Em 2001 ele foi submetido a outra cirurgia para remoção de novas células cancerosas do pulmão, mas naquele mesmo ano foi revelado que ele havia desenvolvido um tumor no cérebro e sua condição era irreversível.
George passou seus últimos dias em uma propriedade de Paul McCartney em Beverly Hills, escondido da imprensa e cercado por seus amigos e familiares. Ciente de estar diante da morte, ele deixou um pronunciamento que seria lido mais tarde por sua viúva Olivia e seu filho Dhani: “Tudo pode esperar exceto a busca por Deus e o amor ao próximo”.
Em 29 de novembro de 2001, há exatamente 20 anos, George Harrison partiu, aos 58 anos de idade.
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