Há uma divisão bastante clara entre os entusiastas: aqueles que apreciam a brutalidade, o barulho e a potência dos esportivos americanos; e aqueles que preferem o refinamento, a elegância e o design dos carros europeus. Você já deve ter-nos visto dizer algumas vezes que as rixas, desde que levadas com maturidade, são até saudáveis para a comunidade entusiasta – afinal, se todos gostassem do mesmo tipo de carro, todos seriam iguais. E isto seria péssimo.
Isto dito, lembramos que existem alguns carros bem especiais que misturam as formas, o refinamento e a elegância dos europeus com a brutalidade e o barulho dos americanos. Carros projetados no velho mundo que, por alguma razão (que normalmente envolvia dinheiro), acabavam buscando a mecânica do outro lado do oceano Atlântico. Foi por isso que decidimos chamá-los de “híbridos transatlânticos” – não tem nada ver com navios ou motores elétricos.
Separamos alguns – vários deles, actually – em uma lista, cuja primeira parte você confere agora!
Ford GT40
Não foi à toa que, ao contar sua história (já faz um tempo), dissemos que o Ford GT40 era um carro de corrida anglo-americano: ele foi projetado na Inglaterra, mas utilizava motores totalmente ianques. E, ainda por cima, só se tornou um carro vencedor por causa do texano Carroll Shelby, que foi convocado para participar ativamente do projeto.
Um breve resumo: o GT40 era a arma da Ford para enfrentar a Scuderia Ferrari. Para desenvolvê-lo, em 1963, a companhia contratou ninguém menos que a Lola Cars, principal fornecedora de protótipos e motores de corrida na década de 1960 – que, veja só, era baseada em Huntingdon, Reino Unido.
A Lola já tinha um protótipo que seria a base perfeita para o GT40: o Lola Mk6, carro de corrida que já utilizava um V8 Ford de 4,7 litros naquela época. O time de engenharia da Ford europeia pegou o monobloco do Mk6 e o tornou mais rígido, mas aproveitou as linhas gerais da carroceria e o sistema de suspensão por braços sobrepostos. Oito meses depois do início do projeto, em maio de 1964, o GT40 estava pronto para estrear em Le Mans. Três exemplares foram inscritos, mas nenhum deles terminou a prova. No entanto, um deles havia conseguido largar em segundo. Não restava dúvida de sua capacidade – bastava torná-lo um carro mais confiável. O que, eventualmente, acabou acontecendo.
Tanto que, em 1966, o GT40 conseguiu um feito histórico: uma vitória tripla nas 24 Horas de Le Mans de 1966, enquanto a Ferrari melhor classificada terminou a prova em oitavo lugar. Nos três anos seguintes, o GT40 também venceu – sendo que, em 1969 e 1969, o motor era um V8 big block de sete litros vindo dos Ford Galaxie que disputavam a Nascar. A ideia foi, claro, de Carroll Shelby – que andava fazendo bastante sucesso com seus Musgang GT350 e GT500 nos EUA, e sabia muito bem o que estava dizendo. Ainda bem que os britânicos escutaram.
Não deixe de ler a história completa do Ford GT aqui e aqui!
De Tomaso Mangusta, Pantera e Longchamp
Tudo bem, Alejandro De Tomaso nasceu na Argentina, mas mudou-se para a Itália em 1955 e lá abriu a fabricante de esportivos que levava seu sobrenome. Seu primeiro modelo, o Vallelunga, foi lançado em 1964 tinha chassi do tipo espinha-dorsal projetado pela Lotus e um quatro-cilindros Ford de 1,2 litro e 104 cv.
Seu sucessor, o Mangusta, foi o primeiro De Tomaso equipado com um V8 americano. Lançado em 1967, ele era feito sobre o mesmo chassi do Vallelunga, porém uma carroceria mais moderna e angulosa, projetada pelo genial Giorgetto Giugiaro. O nome Mangusta vem de mangusto, um pequeno carnívoro cuja dieta inclui répteis como as cobras. Dizem que o nome foi escolhido porque Alejandro De Tomaso havia contratado Carroll Shelby para o projeto, mas o texano havia sido convocado para trabalhar no GT40. Com raiva, De Tomaso batizou seu carro com o nome de um animal que come cobras – no caso, o Shelby Cobra. Mas nada disso jamais foi confirmado oficialmente.
Em todo caso, o Mangusta usava motores V8 Ford de 289 e 302 pol³, ou 4,7 e cinco litros, respectivamente. Em ambos os casos, o câmbio era manual de cinco marchas, fornecido pela ZF. Contudo, dizem que seu comportamento dinâmico era apenas mediano, especialmente por causa da péssima distribuição de peso (32/68, frente/traseira) e da estrutura, que pecava pela pouca rigidez. Ao menos ele era bonito, e 401 unidades foram fabricadas até 1971.
O De Tomaso Pantera, seu sucessor, era um carro bem melhor. Seu desenvolvimento começou enquanto o Mangusta ainda era produzido, e a principal mudança foi a adoção de um monobloco de alumínio, muito mais leve e rígido. A carroceria também era belíssima, projetada por Tom Tjaarda no estúdio italiano Ghia.
Os motores continuavam sendo fornecidos pela Ford: o V8 Cleveland, de cinco ou 5,8 litros, e o V8 Windsor, também de 5,8 litros. Havia uma boa razão para a escolha: além do bom desempenho e do custo acessível dos motores, a Ford planejava importar o Pantera para os EUA e vendê-lo através de sua própria rede de concessionárias. Tanto que a apresentação oficial do modelo de produção não foi na Europa, e sim no Salão de Nova York, em 1970. Em 1971, o Pantera começou a ser vendido.
E agora sim o carro fez sucesso: sua versão mais potente, que usava o mesmíssimo motor Windsor de 5,8 litros e 390 cv (brutos) do Mustang Mach 1, era capaz de chegar aos 100 km/h em 5,5 segundos, com máxima de 240 km/h. O desenho italiano e a mecânica conhecida eram seus principais atrativos.
Tanto que, com diversas atualizações na carroceria (desenhadas por Marcello Gandini, aka o pai do Lamborghini Countach), o Pantera foi fabricado de 1971 a 1992. Nada mau para um supercarro “alternativo”.
Na verdade o sucesso do Pantera fez com que a Alejandro De Tomaso criasse coragem e se aventurasse além dos superesportivos. Ainda em 1971 foi lançado o De Tomaso Deauvile e, no ano seguinte, o De Tomaso Longchamp.
O primeiro, um sedã e o segundo, um cupê; ambos feitos sobre a mesma plataforma, e ambos equipados com o V8 302 Cleveland de 300 cv utilizado no Pantera. Além de muito bonitos, tinham suspensão traseira independente. O Deauvile foi fabricado até 1985 e o Longchamp, até 1989.
Jensen Interceptor
O Jensen Interceptor é um grand tourer britânico típico, com dianteira longa, traseira curta, tração “nas rodas certas” sempre foi uma alternativa aos britânicos mais conhecidos, como o Jaguar E-Type e o Aston Martin DB5. Como eles, o Interceptor trazia um visual elegante, proporções típicas de grand tourer e carroceria construída pela famosa firma italiana Carrozzeria Touring — dizem, com inspiração no nosso Brasinca Uirapuru. Mas o V8 Mopar debaixo do capô era seu grande diferencial.
O Interceptor passou por duas atualizações ao longo de sua vida. Isto significa que há três versões diferentes, conhecidas como Mark I, II e III. A primeira versão usava um V8 de 383 pol³ (6,2 litros) com potência que variava entre 250 e 270 cv. O câmbio era manual de quatro marchas ou o automático TorqueFlite da Chrysler, que tinha três marchas. Não parece a descrição de um legítimo muscle car?
As atualizações promovidas pela Jensen incluíam ligeiras mudanças estéticas na dianteira e na traseira, novas rodas e a ocasional solução de “bugs”, pequenos problemas elétricos e de construção que eram tão comuns na indústria automotiva britânica da época — coisas que, para os admiradores destes carros, estão mais para “excentricidades” que para defeitos.
De qualquer forma, o Mark III, produzido a partir de 1971, é considerado o melhor modelo. Além de estar no auge em termos de conforto, acabamento e estilo — graças às novas molduras nos faróis, grade redesenhada, bancos mais macios e envolventes e ar-condicionado de série —, o Interceptor III também recebeu um novo motor V8 de 440 pol³ (7,2 litros) que, alimentado por um carburador de corpo quádruplo, entregava 284 cv. Dados de fábrica apontam um o-100 km/h de 7,8 segundos com máxima de 217 km/h. Tá vendo só? Muscle car, cara!
O Jensen Interceptor virou uma espécie de clássico cult por seu visual e por sua combinação exótica de carroceria britânica e mecânica ianque – e, claro, devido ao seu desempenho. Tanto que um dos quadros mais engraçados de toda a história do Top Gear teve o Interceptor como principal astro, em uma paródia dos seriados de detetive que eram populares na Inglaterra dos anos 1970.
Chevrolet Corvette Scaglietti Coupe
Em 1958, um trio de pilotos texanos formado por Gary Laughlin, Jim Hall e Carroll Shelby (sempre ele!) decidiu transformar o Corvette em um carro de corrida. A ideia era construir três carros e levá-los até a Europa para competir contra as Ferrari.
Parte do processo envolvia convertê-los em cupês. Para isto, os três contrataram ninguém menos que a Carrozzeria Scaglietti, de Maranello (que ousadia!), e o resultado foi, bem, um belo carro. A semelhança com as Ferrari da época é notável, do formato da grade e dos faróis ao caimento do teto, mas aí você repara nas duas bandeirinhas cruzadas na ponta do capô. É um Corvette, cara – equipado com um V8 small block de 4,7 litros e 315 cv e tudo.
Os carros levaram um ano e meio para ficar prontos e, neste meio tempo, a Chevrolet desistiu de financiar a empreitada e o projeto foi cancelado. Os três carros foram enviados de volta aos EUA e, hoje em dia, costumam aparecer em eventos de clássicos por todo o país.
Koenigsegg CC8S e CCX
Hoje em dia, a Koenigsegg é uma das fabricante de automóveis mais inovadoras do planeta, criando seus próprios motores (e prometendo acabar com os comandos de válvula em um futuro não tão distante) e fabricando rodas de fibra de carbono. No entanto, seus primeiros supercarros eram bem mais tradicionais, ao menos mecanicamente: o motor era o Ford V8 Modular, com comando duplo no cabeçote e compressor mecânico. Seu visual, no entanto, já adiantava boa parte do que se tornaria a identidade visual da Koenigsegg nos anos seguintes. E, claro, eles já tinham as famosas portas diedrais.
No Koenigsegg CC8S, o motor desenvolvia 655 cv, que eram levados para as rodas traseiras através de uma caixa manual de seis marchas. Era o bastante para chegar aos 100 km/h em 3,5 segundos, com máxima de 390 km/h.
O CC8S teve seis unidades fabricadas entre 2002. Seu sucessor, o CCR, foi feito entre 2004 e 2006, em uma série de 14 unidades. A potência do motor foi elevada para nada menos que 817 cv, capazes de levar o CCR até os 100 km/h em 3,2 segundos e continuar acelerando até os 395 km/h – números que não devem nada aos hipercarros híbridos da atualidade.
Se a receita era boa, por que mudou? Porque, em 2006, as leis para emissões de poluentes europeias ficaram mais rígidas, e a solução encontrada por Christian von Koenigsegg foi desenvolver seus próprios motores, mais modernos e eficientes.
Hennessey Venom GT
Nem só de clássicos vive esta seleção. Quer dizer, pensando bem, o Hennessey Venom GT já é um clássico moderno. Há quem não o leve muito a sério, tamanha a ousadia de seu criador, John Hennessey: partindo de um Lotus Exige – cupê esportivo britânico que tem na leveza seu principal argumento –, ele esticou o monobloco e, no lugar do quatro-cilindros Toyota supercharged de 190 cv, colocou um V8 Chevrolet LSX de sete litros com dois turbos, 1.244 cv e 159,6 mkgf de torque. O câmbio é manual de seis marchas, e azar o seu se você quiser outro.
O Hennessey Venom GT é um belo exemplo do jeito americano de fazer supercarros. A ideia de John Hennessey sempre foi, desde o início, superar o Bugatti Veyron – um carro muito mais sofisticado, com seus dezesseis cilindros, dez radiadores e quatro turbos, capaz de chegar aos 431 km/h. Em 2014, o Venom GT chegou aos 435 m/h, mas o recorde não foi reconhecido pelo Guinness.
Sabe o que John Hennessey tem a dizer sobre isto? Dane-se! Mesmo que extra-oficialmente, para ele o Venom GT é o carro mais rápido do mundo. E a Hennessey já está preparando seu sucessor, que mira o Bugatti Chiron. ‘Murica!