A história da humanidade tem vários marcos, e um deles é a Segunda Guerra Mundial. Muitas coisas mudaram depois do conflito entre as Forças Aliadas e o Eixo, e com Bonneville não foi diferente: se antes as disputas de recordes aconteciam entre carros ultra-aerodinâmicos com motores de avião, depois da guerra o grande deserto de sal foi “invadido” por hot rods e carros a jato.
Acredita-se que o termo “hot rod” surgiu no fim da década de 30 no sul da Califórnia. Por lá, uma organização chamada Southern California Timing Association (SCTA) promovia justamente eventos de velocidade em terra em lagos secos nos arredores de Los Angeles desde 1937, sendo considerada a organização automobilística mais antiga ainda em atividade nos EUA.
Em 1949 a SCTA decidiu expandir sua atuação e encontrou no estado quase-vizinho de Utah o lugar perfeito — sim, as planícies de sal de Bonneville. A presença de hot rods durante os eventos realizados em Bonneville já era notável — vários deles, inclusive, pertenciam a moonshiners, os contrabandistas de bebidas que ajudaram a fundar a NASCAR (leia toda a história aqui!), enquanto outros eram levados por soldados que haviam voltado da guerra. Fascinante como as coisas se interligam, não?
Com o fim da guerra, os pilotos profissionais e amadores passaram a focar-se em quebrar recordes com carros que qualquer um podia comprar — ou fabricar com peças de vários carros diferentes. Os hot rods seguiam a receita consagrada até hoje: modelos dos anos 20, 30 e 40 com carrocerias depenadas, equipados com motores V8 — especialmente o Ford “flathead” — preparados com comandos mais agressivos e carburadores maiores.
Nem todos, contudo, se contentavam com os velozes automóveis que se tornariam uma vertente absurdamente popular da customização. Alguns queriam seguir os passos dos britânicos e seus carros aerodinâmicos, mas raramente possuíam os mesmos recursos. Sendo assim, soluções engenhosas surgiam.
A mais famosa delas são os chamados belly tank lakester: carros cuja carroceria era feita com o tanque de combustível reaproveitado de um caça. Os belly tanks ficavam presos abaixo das asas dos aviões e, por isto, tinham formato bastante aerodinâmico. O primeiro a perceber que eles poderiam dar boas carrocerias para carros recordistas foi um preparador de hot rods chamado Bill Burke. Ele comprou o tanque de um P-51 Mustang por 35 dólares e usou peças de Ford Modelo T e Modelo A para montar seu carro.
Ele foi o primeiro, mas quem conseguiu fama com um belly tank foi outro cara, chamado Alex Xydias. Seu lakester também era feito com um tanque de P-51 Mustang, mas tinha um canopi em forma de bolha e um motor V8 de 156 pol³ (2,5 litros). Com ele, Xydias atingiu a velocidade recorde de 233 km/h em 1951. Na mesma noite, trocou o motor por um V8 Mercury 259 (4,2 litros) e, na manhã seguinte, superou seu próprio recorde chegando aos 291 km/h!
Àquela altura a SCTA já havia estabelecido suas regras — considerando que apenas roadsters, lakesters e os carros aerodinâmicos (streamliners) podiam disputar na categoria hot rod. Cupês estavam de fora — o que era um absurdo, visto que muitos hot rods nas ruas eram cupês!
Um dos mais famosos roadsters era o Edelbrock Special, construído e preparado pelo próprio Vic Edelbrock, que correu em Bonneville em 1950 e foi o mais rápido em sua categoria naquele ano, chegando aos 235,54 km/h.
Coube aos irmãos Bob e Dick Pierson provar à organização que os cupês eram, sim, hot rods. Eles compraram um Ford 1934 por apenas 25 dólares para restaurar e usar diariamente, mas decidiram transformá-lo em um recordista de Bonneville — e, para isto, procuraram Bobby Meeks, que trabalhava na Edelbrock.
Com cabeçotes, pistões e coletores fornecidos pela companhia, que se tornaria uma das maiores do ramo nos EUA, o motor V8 Mercury de 4,3 litros levou o carro, cujo teto foi rebaixado e a carroceria retrabalhada aerodinamicamente, a incríveis (para a época) 241 km/h — mais rápido do que qualquer roadster.
Pelo resto da década, Bonneville foi dominada por hot rodders, mas isto não significa que os grandes recordistas com motores aeronáuticos haviam desaparecido por completo — na verdade, eles passaram a quebrar a barreira das 300 mph (482 km/h) rotineiramente, mas não chegavam perto dos 394 mph de John Cobb em 1947.
O primeiro deles foi Mickey Thompson. O famoso fundador da Mickey Thompson Tires, que fornecia pneus para a Indy 500, também havia sido piloto de corrida e era ávido colecionador de recordes de velocidade, e em 1960 construiu um carro chamado Challenger com o objetivo de ultrapassar as 400 mph (643 km/h) em Bonneville.
O Challenger era movido por quatro motores Pontiac V8 415 (6,8 litros) e, em 1959, atingiu os 363 mph (584 km/h). Era impressionante, mas não o suficiente — que só veio no ano seguinte: depois de passar vários meses aperfeiçoando o carro, ele equipou os quatro motores com compressores mecânicos, e cada um deles passou a entregar cerca de 750 cv. Com 3.000 cv e aerodinâmica melhorada, o Challenger atingiu os 406,6 mph (654,35 km/h).
Ficou claro, porém, que os motores a combustão interna dificilmente seriam capazes de conseguir mais do que isto. Foi aí que os homens de Bonneville passaram a usar motores a jato.
O mais famoso deles, sem dúvida, é Craig Breedlove. Em 1963, com seu carro de três rodas chamado Spirit of America, movido por um motor a jato J47, ele atingiu os 655 km/h e superou o recorde de Mickey Thompson. Breedlove, então, partiu para uma acirrada disputa de recordes com os irmãos Art e Walt Arfons, que vinham das pistas de arrancada para Bonneville.
Os recordes de Breedlove e dos irmãos Arfons — que usavam dois carros — duravam apenas alguns dias pois, cada vez que algum deles estabelecia um recorde, os outros dois voltavam para suas garagens para trabalhar nos seus carros, voltavam ao deserto e superavam a velocidade anterior. Àquela altura, a competição por recordes organizada pela SCTA já era oficial e certificada pela FIA.
Foi assim por dois anos até que, em novembro de 1965, Craig Breedlove quebrou a barreira dos 600 mph (965 km/h) com um novo carro, o Spirit of America Sonic 1. O primeiro Spirit havia se acidentado no ano anterior durante uma de suas tentativas — os para-quedas rasgaram, a frenagem falhou, o carro bateu em um poste telefônico e caiu em um lago. A perda do carro, porém, foi compensada pelo recorde de 600,601 mph (966,57 km/h) que, desta vez, durou cinco anos.
Em 1970 outro nome entraria para a história: Gary Gabelich que, naquele ano, superaria o recorde de Breedlove ao atingir 630,478 mph (1.014,655 km/h) com o Blue Flame, um carro movido por um foguete que queimava gás natural liquefeito. Por treze anos este foi o recorde absoluto de velocidade em terra — até que foi quebrado em 1983 por Richard Noble em seu Thrust2. Contudo, a medição aconteceu no deserto de Nevada, portanto o recorde de Gabelich ainda é absoluto em Bonneville. Richard Noble hoje é um dos responsáveis pelo Bloodhound SSC, com o qual pretende ultrapassar os 1.000 mph — mais uma vez temos um exemplo fantástico de como as coisas se interligam.
Até hoje a SCTA promove, todos os anos, quatro eventos para que as pessoas tentem quebrar recordes de velocidade em Bonneville. O mais famoso deles é, sem dúvida, a Speed Week, que reúne centenas de pilotos que disputam pela velocidade mais alta. Os espectadores também podem entrar no deserto com seus carros, e dirigir pela mesma imensidão branca pela qual passaram tantos recordistas ao longo de quase um século.