Se você já lia revistas de carros em 1995, certamente se lembra quando a Quatro Rodas sorteou uma Ferrari F355 para comemorar seu aniversário de 35 anos. É bem provável que você tenha enviado o cupom e torcido como um louco para ser sorteado, sonhando com a vida a bordo de um supercarro daqueles. Nessa mesma época, além da Ferrari F355 outro supercarro habitava meus sonhos: o McLaren F1.
Lembro perfeitamente de imaginar como seria passear pela cidade com meu pai ao volante de uma Ferrari ou McLaren (eu só tinha 11 anos na época) e entrar nos shoppings e supermercados e acelerar nas estradas entre Santa Catarina e São Paulo (um caminho que ainda hoje fazemos várias vezes ao ano).
Obviamente eu não ganhei o carro, mas cresci vendo supercarros nas praias de Santa Catarina depois disso e descobri que a vida com um superesportivo não é tão simples quanto eu imaginava. Olhos de gato e tachões são verdadeiros problemas para uma Ferrari, e algumas valetas de canalização de águas pluviais exigem um certo planejamento do seu trajeto. Lembro perfeitamente da primeira vez que vi um Corvette superaquecido, parado em uma rua estreita aguardando o V8 esfriar, mas também lembro da facilidade com que aquele vizinho do bairro dirigia seu Cayman pelas ruas irregulares da cidade.
O que eu nunca descobri, contudo, foi como é a vida com o McLaren F1. Sempre imaginei como seria pagar o pedágio ou pedir um milk shake no drive thru sentado no meio do carro. Como seria viajar com os passageiros atrás de mim, e onde raios eu colocaria a mochila com minhas roupas. Ao contrário das Ferrari 355 (e depois 360, 430 e 612), dos Porsche 911, Boxster e Cayman, dos Corvette e Lamborghini, o McLaren F1 não é exatamente o supercarro que você encontra em um verão no litoral catarinense, muito menos no inverno de Campos do Jordão. O F1 está em um outro nível — e não estou falando só do desempenho.
Felizmente, dez anos mais tarde alguém inventou o YouTube e tornou popular o compartilhamento de vídeos pela internet. Finalmente pude descobrir como é o convívio com o McLaren F1. Algum felizardo que conseguiu uma carona em um dos 106 McLaren F1 produzidos publicou este vídeo esclarecedor sobre a vida a bordo do supercarro dos sonhos dos moleques dos anos 1990, encontrado por Maté Pétrány do Jalopnik US. O carro — um F1 1994 — pertence ao britânico Simon Kidston, um colecionador e também um dos mais renomados vendedores de clássicos e raridades do planeta, que usa o supercarro com certa frequência para ir ao trabalho e aos seus compromissos sociais. O vídeo foi gravado há três anos, mas é tão atual quanto o desempenho do Macca.
As acelerações brutais embaladas pelo ronco que invade a cabine certamente impressionam, mas isso é o que todos esperavam deste carro. O que surpreende realmente é nos momentos em que Simon Kidston fica atrás de outros veículos mortais, aguardando a oportunidade de ultrapassá-los. O monstro se torna um carro pacato, quase silencioso, e roda com docilidade, sem parecer uma fera enjaulada louca para estourar as grades que a prendem e correr livre por aí. Não. Ele se comporta como um gentleman aguardando o momento exato para um golpe certeiro.
Ainda em velocidade baixa, eles passam por um trecho irregular onde o carro balança visivelmente, mas diferentemente de outros supercarro que teriam que parar o trânsito para não destruir o assoalho do carro, o F1 reduz e segue em frente graças à sua altura livre do solo.
Questionado sobre a dificuldade de guiar o carro, Sir Kidston responde que ele é fácil de lidar apesar de não ter direção hidráulica, nem ABS e muito menos controle de tração. A direção sem assistência tende a ser mais precisa e direta pois não há nenhum intermediário entre o volante e a caixa de direção como um motor elétrico ou o óleo do sistema hidráulico. Como o carro tem tração traseira, a dianteira e o conjunto de suspensão são mais leves, aliviando também o peso do volante. Os Lotus também usam direção sem assistência pela mesma razão: precisão e rapidez.
Outra característica de carros muito potentes é o peso da embreagem, geralmente proporcional ao torque do motor, o que exige rotações mais elevadas e alguma precisão na sincronização de acelerador e embreagem, mas aparentemente isso não é necessário no McLaren F1. Em certo momento o motorista para o carro e arranca apenas com a velocidade da marcha lenta, sem pisar no acelerador — exatamente como conseguimos fazer em nossos carros comuns em estacionamentos apertados. Em seguida a escalada das marchas é tão suave como em um sedã clássico. Mais à frente ele chega a usar a sexta marcha a 50 km/h (!) para mostrar a versatilidade do carro e também a elasticidade do motor assim que afunda o pé com o conta-giros marcando pouco mais de 1.000 rpm.
Em seguida outra revelação surpreendente: no F1 você não precisa se preocupar demasiadamente com as dimensões do carro. Ele é compacto como qualquer Porsche 911, e simples de lidar como o cupê alemão. Outro trunfo é seu visual limpo e discreto sem asas, spoilers ou faixas. Além de não atrair atenção do mundo no trânsito, ele é funcional, proporcionando boa visibilidade à frente e para os lados — embora não possa se dizer o mesmo da vista traseira — o que certamente influenciou Sir Kidston em seu veredito sobre a facilidade de guiar este supercarro no trânsito urbano.
A maior curiosidade a respeito do F1 sem dúvida diz respeito à posição central do motorista. Como é sentar-se no meio do carro, com distâncias iguais das extremidades laterais? Aparentemente é algo fácil de assimilar, assim como assimilamos a pilotagem em um kart, guardadas às devidas proporções. Logicamente, os primeiros minutos ao volante do F1 devem ser um pouco estranhos se você tiver acabado de sair de um carro comum, e as ultrapassagens certamente exigem ainda mais distância do carro da frente, mas, segundo o proprietário ele é realmente simples de guiar.
Um supercarro para três pessoas e com porta-malas. Três, na verdade: esse aí de cima, outro igual no lado direito e outro menor na dianteira.
Na estrada aberta vemos o carro finalmente mais solto, com possibilidade de acelerações mais intensas, frenagens mais fortes e uma pilotagem casual e tranquila. É quando Sir Kidston sintetiza o carro de modo muito esclarecedor:
As mudanças de marcha transmitem realmente uma mudança de engrenagens, não parecem um comando de computador fazendo as coisas para você. é como um rifle de ferrolho (N.E. no qual você carrega e engatilha manualmente).A direção é firme e não muito pesada, quase orgânica e também muito precisa. A sensibilidade é boa. Os freios são firmes também, porém tendem a chiar quando você os usa moderadamente, sem muita pressão no pedal — afinal, eles foram feitos para desacelerar o F1 vindo a 350 km/h — uma característica comum a muitos supercarros, como a Ferrari F40. A atuação do acelerador é sempre imediata mesmo com o carro levando três pessoas”.
Quem assiste Top Gear o Fifth Gear já ouviu diversas vezes comentários nada positivos sobre o acabamento dos supercarro artesanais e de produção baixa como o McLaren F1. Segundo Clarkson, Needell e companhia, esse tipo de carro parece sempre prestes a desmontar quando se chega a velocidades altas. Mas o F1 se mostra bem executado, todo feito à mão usando componentes bem acabados e montados. As peças e os reparos são obviamente caros, mas o que você esperava de um dos maiores e melhores carros já fabricados? Sir Kidston envia seu F1 todos os anos, no inverno, para Woking e conta que gasta uma boa grana com isso — não pela complexidade do carro, mas sim pela qualidade dos componentes, que ele considera praticamente “aeronáuticos” nesse quesito. Mas se você tem dinheiro para comprar o carro, tem que ter dinheiro para mantê-lo também, não é?
[ Fotos: Sellerie Cimes (abertura), Acervo Digital Quatro Rodas (Ferrari) ]