Lancia Martini Racing. Para a maioria dos entusiastas, estas três palavras tem um significado simples e poderoso: supremacia nos ralis. Entre 1987 e 1992, todas as edições do WRC, o Campeonato Mundial de Rali, foram vencidas pelos Lancia Delta HF pintados de branco, vermelho e azul – seis títulos consecutivos. Somando as conquistas do Lancia Stratos entre 1974 e 1976, e ao triunfo do Lancia 037 em 1983 (já com as cores da Martini), a Lancia tem dez títulos no WRC, e é a fabricante mais bem sucedida na história da competição. A Citroën, que dominou a elite dos ralis nos anos 2000 com Sébastien Loeb ao volante, clamou para si oito títulos entre 2003 e 2012.
Mas antes do Delta (e do 037, falando nisso), a Lancia Martini Racing tentou a sorte em outra modalidade automobilística: as provas de longa duração Campeonato Mundial de Protótipos-Esporte – o World Sportscar Championship, ou simplesmente WSC. Não foi, nem de longe, uma incursão feliz como o que aconteceu no WRC. Mas é uma história interessante, que merece ser contada.
Depois de sua associação com a Porsche na década de 1970, a Martini começou a patrocinar a Lancia em 1981, quando a fabricante italiana começou a disputar provas de longa duração com um novo bólido: o Lancia Montecarlo Turbo. Feito com base no modelo de rua de mesmo nome – um bonito cupê com motor central-traseiro que foi fabricado entre 1975 e 1978, saiu de linha em 1979 e voltou a ser produzido em 1980 e 1981.
Criado para o Grupo 5 da FIA, para carros de produção com modificações extremas, o Lancia Montecarlo Turbo usava uma versão sobrealimentada do motor de 1,4 litro (na verdade, 1.425 cm³) com comando duplo no cabeçote, capaz de entregar 480 cv. Apenas a porção central do monobloco do Montecarlo de rua permanecia – o restante da carroceria era montado sobre estruturas tubulares, com para-lamas bem mais largos e tomadas de ar enormes para o motor na traseira. A receita do Lancia 037 era semelhante – aliás, os dois carros se pareciam muito, mas no projeto de rali o motor era um 2.0 (ou 2.1) com supercharger e montado na longitudinal.
Com o Montecarlo Turbo, a Lancia conquistou títulos em 1980 e 1981 no WSC, e também no Deutsche Rennsport Meisterschaft, ou DRM, campeonato precursor do DTM, em 1980.
Mas o Lancia Montecarlo não era um bom carro de rua – na época, ele foi duramente criticado pelo desempenho do motor, que não correspondia ao belo visual, e também pela fraca qualidade de construção e acabamento. Com isto, o esportivo saiu de linha em 1981.
O problema era que, de acordo com o regulamento da FIA para o Grupo 5, era preciso que existisse uma versão de rua à venda para que um carro de competição pudesse ser homologado.
A solução encontrada foi migrar para o Grupo 6, que era a categoria para protótipos abertos de dois lugares – dispensando a necessidade de homologação e, teoricamente, permitindo que a Lancia mostrasse sua capacidade de criar um carro de corrida dedicado.
Este primeiro protótipo foi batizado Lancia LC1. A Lancia contratou a italiana Dallara para ajudar no desenvolvimento do monocoque de alumínio e da carroceria. Já o motor seria o mesmo 1.4 turbo usado pelo Montecarlo, calibrado para entregar 430 cv e acoplado a uma transmissão manual Hewland de cinco marchas.
A ideia era que o carro começasse a competir no Grupo 6 de protótipos em 1982, brigando por um título para a Lancia. Mas… o regulamento não permitiu. Em 1982, a FIA decidiu extinguir os Grupos 5 e 6, substituindo-os por uma única classe, o Grupo C, com carros de cockpit fechado e novas regras para o deslocamento dos motores e, principalmente, consumo de combustível. De repente, o Lancia LC1 se tornou um carro de corrida sem futuro.
A FIA ainda permitiu que carros do Grupo 6 competissem em 1982, sob a condição de que eles não tivessem direito a pontos pelo campeonato das fabricantes, ainda que fossem permitidos no campeonato dos pilotos. Era um consolo: enquanto dava início ao desenvolvimento de um novo carro, a Lancia podia correr com o LC1 e usá-lo como plataforma de testes aerodinâmicos.
A participação do LC1 no WSC, com Riccardo Patrese, Teo Fabi, Piercarlo Ghinzani e Michele Alboreto ao volante, mostrou-se bem sucedida: a Patrese venceu duas corridas, em Silverstone e Nürburgring, e foi vice-campeão – ele ficou apenas oito pontos atrás de Jacky Ickx no Porsche 956.
Mas, no fim do ano, o projeto foi abandonado imediatamente para que a Lancia pudesse se concentrar no novo protótipo.
Aptamente batizado LC2, o carro foi novamente projetado com a ajuda da Dallara, contando também com a ajuda da Abarth – que já era a preparadora de fábrica da Fiat havia mais de uma década, e cedeu seus equipamentos de teste para a criação do protótipo.
O Lancia LC2 tinha uma dianteira parecida com a do LC1, apostando em uma entrada de ar retangular no bico e para-lamas dianteiros bastante inclinados. O regulamento do Grupo C exigia que o carro tivesse faróis, e que o cockpit fosse fechado. Na traseira, os para-lamas eram destacados e ligados apenas pela asa, enquanto a porção central era inteiramente ocupada por um enorme difusor. O assoalho era plano, como mandavam as especificações da FIA. A suspensão trazia braços triangulares sobrepostos com amortecedores do tipo coilover nos quatro cantos.
A diferença mais radical entre o LC1 e o LC2 (além, obviamente, da carroceria), era o motor. O quatro-cilindros do LC1 era um projeto antiquado, que remetia aos Fiat do fim da década de 1960, e não havia milagre de engenharia capaz de torná-lo potente e econômico o bastante para disputar o Grupo C.
A Lancia precisou procurar outro motor, e queria manter as coisas dentro de casa. Assim, a melhor alternativa vinha da Ferrari: o V8 de 2,9 litros da 308, lançada em 1975. Especialmente porque, em 1982, a Ferrari introduziu a 308 GTBi Quattrovalvole (ou QV), que adotou um cabeçote de quatro válvulas por cilindro – daí seu nome. A 308 QV dispunha de 240 cv, enquanto a versão anterior, de duas válvulas por cilindro, tinha 214 cv.
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Com deslocamento reduzido para 2,6 litros, um sistema de injeção eletrônica desenvolvido pela Weber, e a adição de dois turbocompressores KKK, o V8 Ferrari entregava 650 cv – número que seria impossível de atingir no motor quatro-cilindros sem comprometer seriamente sua durabilidade. O motor, como no LC1, era acoplado a uma caixa manual de cinco marchas da Hewland.
Foi com este conjunto que o Lancia LC2 fez sua estreia no início da temporada de 1983, nos 1.000 Km de Monza. Competindo em casa, o protótipo mostrou-se mais rápido que o Porsche 956 da equipe Joest, conquistando a pole position com quase um segundo de vantagem – uma eternidade para o Grupo C. E a corrida foi bem… até a oitava volta, quando um dos Pirelli traseiro explodiu e danificou a carroceria, forçando o LC2 a abandonar a prova.
Os problemas com pneus acompanharam a Lancia ao longo de toda a temporada, bem como defeitos recorrentes no motor, que superaquecia com facilidade. Nenhum dos três LC2 que competiram naquele ano conseguiu terminar uma corrida até a quinta etapa – os 1.000 Km de Spa. E, ainda assim, o desempenho do LC2 foi comprometido. A vitória só veio nos 1.000 Km de Imola, antepenúltima prova do campeonato, com Teo Fabi e o alemão Hans Heyer revezando ao volante. Dois segundos lugares em Mugello, na Itália, e Kyalami, na África do Sul, garantiram que a Lancia fosse vice-campeã no WSC em 1983. Mas os italianos só marcaram 32 pontos – a Porsche, que ficou com o título, marcou 100 pontos.
Para tentar um resultado melhor em 1984, a Lancia modificou a dianteira do LC2 para incorporar duas entradas de ar auxiliares para os freios dianteiros, abaixo dos faróis. Além disso, modificou-se a suspensão e foram adotados novos pneus, da Dunlop.
As mudanças surtiram efeito. Em Monza, Mauro Baldi e Paolo Barilla conquistaram um terceiro lugar. Em Silverstone, um dos LC2 largou na pole position e terminou na quarta posição. Mas a verdadeira provação seria a terceira corrida da temporada: as 24 Horas de Le Mans. No ano anterior, um par de Lancia LC1 inscrito de forma independente havia participado da corrida na França, mas nenhum dos carros chegou ao final da prova.
Em 1984, porém, a situação melhorou consideravelmente: os dois Lancia LC2 da Martini Racing abocanharam as duas primeiras posições no grid: o carro nº 4, com Bob Wollek e Alessandro Nannini, em primeiro; e o carro nº5, de Mauro Baldi, Paolo Barilla e Hans Heyer, em segundo. O problema era que a Porsche estava impossível em 1984: nada menos que os sete primeiros colocados na prova eram da fabricante alemã. Mas o LC2 de Wollek e Nannini foi o oitavo – o que, considerando a situação, tem seu mérito. O outro carro não chegou a concluir a corrida por problemas com o câmbio.
No restante da temporada, o Lancia LC2 ainda conquistou uma dobradinha em Kyalami, na África do Sul, e encerrou a temporada novamente na segunda posição, com 57 pontos. A Porsche, por outro lado, acumulou 120 pontos. O desempenho do LC2 foi considerado apenas razoável, e a Lancia precisava dar um jeito de acabar com os problemas mecânicos persistentes.
Assim, para 1985, novas modificações foram realizadas. O motor V8 teve o deslocamento ampliado para três litros e recebeu um novo sistema de injeção eletrônica Magneti Marelli, mais eficiente, que levou a potência do motor a mais de 800 cv – passando dos 850 cv em acerto de classificação. O câmbio passou a ser fornecido pela Abarth, com uma transmissão que já estava em testes desde o ano anterior. Além disso, o LC2 passou a usar pneus Michelin.
O desempenho do carro de fato melhorou, mas a maré de azar seguiu acompanhando a Lancia. Em Mugello, depois de conquistar a pole position, um dos carros abandonou a corrida por problemas no motor. Nos 1.000 Km de Monza, uma árvore caiu no meio da pista enquanto o LC2 de Alessandro Nannini liderava, abreviando a corrida. Em Le Mans, depois de liderar pelas primeiras voltas, os dois LC2 da Martini Racing tiveram problemas no motor, e acabaram terminando em sexto e sétimo. E a única vitória da Lancia naquele ano, em Spa, foi marcada pela morte de Stefan Bellof em um acidente com seu Porsche 956 – ou seja, não havia muito o que comemorar.
No fim do ano, o padrão se repetiu: a Porsche foi campeã com 107 pontos, e a Lancia ficou na segunda colocação com 58 pontos.
Àquela altura, a Lancia já estava quase jogando a toalha, mas decidiu dar uma última chance ao LC2 em 1986 – com um carro só, para não perder tantos recursos. Com Andrea de Cesaris e Alessandro Nannini ao volante, o LC2 foi o segundo colocado no primeiro evento da temporada, os 360 km de Monza, ficando atrás da Porsche com seu 956.
Na segunda etapa, os 1.000 Km de Silverstone, o LC2 ficou sem combustível na volta 140, depois de largar na segunda posição. Soube-se, mais tarde que a Lancia decidiu empregar o acerto de classificação durante a corrida, a fim de tentar quebrar o recorde do circuito britânico, o que acabou aumentando demais o consumo do V8.
Já estava mais do que claro que o Lancia LC2 não ficaria melhor do que aquilo, e os italianos decidiram abandonar o campeonato imediatamente depois do fiasco em Silverstone.
Às vezes, é melhor dar o braço a torcer. A parceria da Lancia com a Martini Racing continuou com a equipe de rali – que, em 1987, conquistou o primeiro de seus seis títulos consecutivos com o Lancia Delta HF.