Como você deve saber se acompanha o FlatOut, estamos contando em uma série especial de posts sobre a história de Enzo Ferrari — e acabamos falando brevemente de algumas das Ferrari que venceram as 24 Horas de Le Mans. Coincidentemente, chegou a hora de falar exatamente destas Ferrari em nossa outra série, sobre as lendas de Le Mans. Eis aqui a história da 166MM e da 375 Plus, os primeiros carros da Scuderia a vencer no lendário circuito de La Sarthe.
Em 1947, oito anos depois de deixar a Alfa Romeo, Enzo Ferrari decidiu que era hora de começar a construir seus próprios carros usando seu sobrenome (algo que havia sido proibido de fazer por quatro anos por uma cláusula em seu contrato com a Alfa). O primeiro fruto da “nova” Scuderia Ferrari foi a Ferrari 125S, que também foi o primeiro carro a usar o novo motor V12 projetado por Gioacchino Colombo — uma brilhante obra de engenharia, com duas bancadas de cilindros separadas por um ângulo de 60°, comandos de válvulas nos cabeçotes, três carburadores Weber e 118 cv a 6.800 rpm.
A 125S venceu seis das 14 corridas que disputou naquele ano, incluindo a primeira vitória na história da equipe ao vencer o Grand Prix de Roma, com Franco Cortese ao volante. Sua sucessora, a 159S — cujo motor agora deslocava 1,9 litro (graças a um aumento no diâmetro dos cilindros e no curso dos pistões, de 55×52,5 mm para 59×58 mm respectivamente) e entregava 125 cv — também obteve sucesso razoável, vencendo o Grand Prix de Turim, também em 1947.
Foi nesta época que Enzo tomou outra grande decisão: deixar o orgulho de lado e começar a construir carros de rua para financiar sua equipe no automobilismo. O resultado foi a Ferrari 166, primeiro modelo da marca a ser produzido em série — limitada a 39 unidades, claro, mas isto já era um avanço em relação às anteriores, pois foram feitas duas unidades da 125S, e só uma unidade da 159S.
No novo carro, o V12 projetado por Colombo passou a deslocar dois litros (com diâmetro e curso de 60×58,8 mm) e a entregar entre 110 e 150 cv, dependendo da configuração. A primeira versão da 166 foi a chamada 166S, apresentada no Salão de Turim de 1948 e produzida em duas unidades: uma berlinetta e uma spider, ambas bem sucedidas nas pistas: a primeira venceu a Mille Miglia daquele ano, enquanto a segunda ficou com a vitória da Targa Florio, ambas com Clemente Biondetti ao volante.
O sucesso levou à criação de um protótipo de um modelo para as ruas: a Ferrari 166 Inter. Podemos dizer que a Inter foi o primeiro grand tourer de verdade fabricado pela Ferrari, com carroceria cupê, o V12 de dois litros calibrado para entregar 110 cv, entre-eixos mais longo (de 2.420 para 2.500 mm) e, como de costume, a possibilidade de escolher entre diversas fabricantes de carrocerias.
Os exemplares mais famosos foram feitos pela Carrozzeria Touring, mas também existem 166 Inter com carrocerias Ghia, Pininfarina, Vignale e Bertone. Contudo, o modelo que realmente nos interessa veio no ano seguinte.
Esta é a Ferrari 166MM. Seu nome vem de Mille Miglia, visto que o carro foi feito pensando em vencer a edição de 1949 da famosa corrida italiana. Seu maior diferencial era a carroceria, construída usando o método superleggera (ou “super leve”), no qual os painéis da carroceria, feitos de uma liga de magnésio e alumínio, são colocados sobre uma fina estrutura tubular e também atuam como componente estrutural, reduzindo peso e aumentando a rigidez da carroceria. O entre-eixos também era mais curto, com 2.200 mm, e a velocidade máxima era de 220 km/h.
Nas mãos, novamente, de Clemente Biondetti, a 166MM conseguiu cumprir seu objetivo, em uma dobradinha com outra 166MM sob o comando de Felice Bonetto.
Se você procurar informações no site da Ferrari, só encontrará referência às vitórias na Mille Miglia — como se a Ferrari nem se importasse com o fato de a 166MM também ter vencido as 24 Horas de Le Mans em 1949, com Luigi Chinetti e Peter Mitchell-Thomson ao volante. Foi a primeira edição das 24 Horas de Le Mans depois da Segunda Guerra, visto que as sequelas do conflito levaram algum tempo para abrandarem, e uma corrida de automóveis não era exatamente prioridade para a França na época.
Por outro lado, nos anos seguintes a competição foi ficando cada vez mais feroz, com uma equipe diferente vencendo a cada ano. A Ferrari só tornaria a levantar a taça no circuito de La Sarthe em 1954, com José Froilán González e Maurice Trintignant ao volante da Ferrari 375 Plus.
As coisas mudaram muito dentro da Ferrari em cinco anos. Àquela altura, a companhia sediada em Maranello já havia apresentado uma quantidade razoável de modelos de rua e de pista — a 195S, de 1950, com seu V12 de 2,3 litros; a 212 que, nas versões Export e Inter, substituía a 166 nas pistas e nas ruas; e até a primeira versão da Ferrari 250, cujo V12 de três litros entregava 230 cv e ajudou o carro a vencer a Mille Miglia de 1952.
O que todos estes carros têm em comum é o uso do motor V12 projetado por Gioacchino Colombo. A Ferrari que venceu as 24 Horas de Le Mans em 1954, porém, tinha outro V12 — um motor maior e mais potente, projetado por Aurelio Lampredi. Se a maior versão do motor Colombo deslocava 3,3 litros, o motor de Lampredi começava aos 3,3 litros — e, como já vimos aqui, foi essencial para que a Ferrari vencesse nas pistas em meados da década de 50, além de mover os mais potentes carros de rua da marca.
A Ferrari 375 Plus era equipada com uma versão de 4,9 litros deste motor, que tinha cabeçotes com comando simples e três carburadores Weber 46 DCF3 enfileirados entre as bancadas de cilindros. Era o bastante para entregar 330 cv — potência muito alta para e época, garantindo que José Froilán Gonzalez e Maurice Trintignant, revezando ao volante, conquistassem a segunda vitória da Ferrari nas 24 Horas de Le Mans, vencendo o Jaguar D-Type de Duncan Hamilton e Tony Rolt com uma volta de vantagem.
Agora, o que aconteceu nos quatro anos entre as duas vitórias da Ferrari? É o que veremos nos próximos posts da série Lendas de Le Mans!