Onde nasceu o automobilismo? Há quem diga que foi na Alemanha, berço do próprio automóvel — ao menos o berço “oficial”, visto que o primeiro automóvel patenteado foi criado pelo alemão Karl Benz. Acontece que a maioria dos historiadores concorda que as corridas de automóveis começaram na França, quando uma revista parisiese chamada Le Petit Journal organizou aquela que provavelmente foi a primeira competição automobilística do planeta: uma corrida de automóveis entre as cidades de Paris e Rouen.
Ilustração: Daniel Picot
A ideia por trás da corrida, que foi anunciada como a “Competição ‘Le Petit Journal’ para Carruagens sem Cavalos”, era provar que aquele novo meio de transporte que não usava animais, mas sim propulsão mecânica para se mover, não era perigos — pelo contrário: era fácil de usar, confiável em longas viagens e veloz. Foram 102 inscritos, com automóveis fabricados em diversas partes da europa, dos quais 21 conseguiram se classificar em uma prévia de 50 km. Destes, apenas quatro não chegaram ao final da prova, enquanto os primeiros cinco colocados levaram para casa prêmios em dinheiro. Foi um saldo muito bom para a primeira corrida de carros realizada no mundo, não é?
Sabendo disso, não fica difícil entender porque uma das corridas mais importantes do mundo (se não for a mais importante), as 24 Horas de Le Mans, acontece justamente na França. E é um tanto irônico que também seja uma das mais perigosas e desafiadoras que existem, marcada por acidentes impressionantes — afinal, o automobilismo não surgiu apenas porque o homem precisa de velocidade, mas para provar que os carros eram seguros.
O fato é que o automobilismo percorreu um longo caminho entre seu surgimento e a primeira edição das 24 Horas de Le Mans. Para se ter uma ideia, o vencedor da corrida Paris-Rouen foi Jules-Albert de Dion, cujo carro a vapor levou seis horas e 48 minutos para percorrer os 126 km da rota. Em 1923, os carros já eram bem mais velozes. Mas nós também estamos nos adiantando um pouco.
Eram assim os carros de corrida nos primeiros Grand Prix da história / Foto: The Old Motor
As primeiras corridas verdadeiramente competitivas organizadas no mundo não se chamam Grand Prix por acaso. Grand prix significa “grande prêmio” em francês, e foram necessários apenas seis anos para que o primeiro Grand Prix da história fosse realizado — curiosamente, idealizado por um americano. James Gordon Bennett Jr. era o milionário dono do New York Herald, jornal fundado por seu pai e, como boa parte dos milionários da época, um verdadeiro entusiasta daquela novidade chamada automóvel.
Para incentivar fabricantes de todo o planeta a aperfeiçoar seus carros, James idelizou a Gordon Bennett Cup, corrida de automóveis que aconteceria, novamente, na França, e seria uma vitrine para a tecnologia automotiva, que avançava rapidamente naqueles primeiros anos. Como já contamos aqui, foi neste evento que se estabeleceram as cores nacionais do automobilismo — os carros de cada país foram pintados de cores diferentes.
Ao todo foram seis edições da Gordon Bennett Cup, que aconteceram entre 1900 e 1905 na França, na Irlanda e na Alemanha. As corridas foram organizadas pelo ACF, ou Automobile Club de France, fundado em 1895 por Jules-Albert de Dion (sim o cara que venceu a primeira corrida organizada disputada no mundo). Porém, para 1906, o ACF tinha algo diferente em mente.
Em vez de organizar a corrida sozinho, o clube decidiu pedir a ajuda do governo do departamento de Sarthe, no noroeste da França. A razão era simples: James Gordon Bennett limitava o número de carros inscritos por país a apenas três, o que não era considerado justo pelo Automobile Club de France, afinal a França tinha a maior indústria automotiva do planeta na época. Este limite não fazia sentido.
O governo de Sarthe cedeu as estradas ao redor do vilarejo de Le Mans para a corrida que seria uma alternativa à Gordon Bennett Cup e permitiria que cada país inscrevesse quantos carros quisesse — ainda que, no fim das contas, a maioria esmagadora dos inscritos fosse francesa, com apenas duas marcas italianas (Fiat e Itala) e uma alemã (Mercedes-Benz). Vias públicas foram fechadas para formar o circuito de pouco mais 103 km no qual os competidores deram 12 voltas, totalizando 1.238 km — a uma média de uma volta por hora. Aquela foi, oficialmente, a primeira corrida a ser chamada de Grand Prix e, de fato, o prêmio era grande: 45 mil francos, o equivalente na época a 13 kg de ouro.
Nos anos que se seguiram, os Grand Prix se tornaram a principal competição automobilística do mundo. Com até oito eventos por ano, em uma seleção que incluía corridas como a famosa Targa Florio e competições no autódromo oval de Brooklands — o primeiro circuito fechado do mundo — os Grand Prix eram a motivação das fabricantes de automóveis para criar carros cada vez mais rápidos. Acontece que, com o tempo, os entusiastas das corridas perceberam que dava para tornar as coisas ainda mais interessantes.
A corrida que aconteceu em 1906 foi um marco por duas coisas: foi o primeiro Grand Prix oficial, lançando a pedra fundamental que daria origem às corridas de monopostos que ficariam conhecidas como Fórmula 1; e também foi a primeira corrida realizada no Circuito de La Sarthe, nos arredores de Le Mans.
Os organizadores foram os membros do Automobile Club de l’Ouest, o primeiro clube automotivo de Sarthe, a pedido do Automobile Club de France. O circuito compreendia as cidades de Le Mans, Saint-Calais e La Ferté-Bernard, e se tornou palco de diversas corridas na época — até 1914, quando estourou a Primeira Guerra Mundial, que durou até 1918. O automobilismo só tornou a receber atenção após 1920, já com clima menos tenso.
As coisas, porém, eram diferentes: os automóveis já haviam evoluído consideravelmente e, em vez de meras carruagens sem cavalos, eram máquinas com motores grandes e barulhentos — normalmente com quatro, seis ou oito cilindros e deslocamento de pelo menos três litros, embora existissem exceções, claro. Também nesta época os fabricantes começaram a dedicar mais atenção ao design dos carros, preocupando-se com os efeitos da aerodinâmica sobre o desempenho e consumo de combustível.
Sabendo disso, os membros do ACO tiveram uma ideia: em vez de organizar uma corrida para descobrir quem era o mais rápido, criar uma prova de longa duração em que os competidores disputassem quem aguentaria mais tempo na pista, percorrendo a maior distância em 24 horas — período definido pelo secretário-chefe do clube, Georges Durand, ao lado de Charles Faroux editor da revista La Vie Automobile e do fabricante de pneus Emile Coquille.
O circuito agora era bem mais curto, com cerca de 13 km de extensão, e compreendia vias públicas e fechadas entre as vilas de Le Mans, Arnage e Mulsanne. As estradas eram ruins e maltratavam os carros, o que reforçava a necessidade por um carro confiável e robusto.
Ao todo, foram 33 equipes inscritas, boa parte delas por entusiastas independentes dirigindo carros de fabricantes pequenas, que não sobreviveram ao teste das décadas — Brasier, Salmson, Delage e Berliet, para citar alguns. Os nomes mais conhecidos eram os britânicos da Bentley e os franceses da Bugatti, que conseguiriam destaque nos anos seguintes, mas não naquela primeira corrida.
A primeira prova, que aconteceu entre os dias 26 e 27 de maio de 1923, foi vencida por um pequeno carro com motor de quatro cilindros e três litros com comando duplo no cabeçote chamado Chenard & Walcker Sport. Estes eram os sobrenomes dos franceses que fundaram a companhia em 1895, construindo triciclos e, nos anos 20, eram capazes de fabricar cerca de 100 carros por dia.
De qualquer forma, uma das peculiaridades dos primeiros anos das 24 Horas de Le Mans era que, para levar o troféu para casa, não bastava vencer uma corrida — era preciso percorrer a maior distância em três edições consecutivas, ideia que foi abandonada em 1928 por ser complicada demais.
A uma velocidade média de 92 km/h, os franceses André Lagache e René Léonard completaram 128 voltas no circuito em 1923, percorrendo nada menos que 2.209,5 km. Com outro Chenard & Walcker Sport, a dupla francesa Raoul Bachmann e Christian d’Auvergne completou 124 voltas, ficando com a segunda colocação.
Chenard & Walcker Sport 3-Litre #9, o carro que venceu a primeira edição das 24 Horas de Le Mans
Bentley e Bugatti não foram tão bem — naquele ano, ao menos: o Bentley 3-Litre do canadense John F. Duff e do britânico Frank Clement completou 120 voltas e foi o quinto colocado, enquanto os Bugatti ficaram em 10º e 22º. De qualquer forma, o desempenho destes melhoraria em poucos anos e ganharia a companhia de outros, como Alfa Romeo e Ferrari, só para citar alguns.
Nós vamos entrar em detalhes sobre estes vencedores durante as próximas semanas, enquanto esperamos pela edição 2015 das 24 Horas de Le Mans. Você não vai perder, vai?