Transformar sedãs familiares em monstros devoradores de asfalto era apenas um dos atributos da casa de Colin Chapman, que continuaram valendo mesmo depois de sua morte – Lotus Omega (ou Carlton, para os britânicos) que o diga. E para isso, há muitas receitas e caminhos possíveis. Se o Lotus Omega foi pela receita autobahner por meio de um kit que ampliou seu deslocamento para 3,6 litros (o curso do virabrequim cresceu de 69,8 mm para 85 mm), dois turbos Garrett T25, uma velocidade máxima assombrosa de 285 km/h e um zero a 100 km/h mais rápido que uma Ferrari Testarossa, o Lotus Cortina ia pelo completo antagonismo. Apresentava uma receita fiel à filosofia essencial de Chapman: “simplifique, e aí adicione leveza”.
Ver o Lotus Cortina em ação, levando os pneus de competição de época ao limite de seus generosos ângulos de deriva, é um puro deleite – a demonstração gráfica do balanço dinâmico que todo piloto de turismo sonha com seu carro. Apenas assista:
Eixo dianteiro e traseiro sendo usados muito próximos à equidade, dianteira ágil, traseira que abre um leque cúmplice, deslizando sobre o asfalto apenas o suficiente para manter uma dinâmica neutra, pouco uso do volante em curvas de alta. Baixíssima sensação de inércia, graças ao peso-pena (905 kg) e a um centro de gravidade particularmente baixo. Seu balé é o mais próximo de um Porsche 911 de época que se pode chegar com um motor dianteiro.
Começamos este 2 de janeiro falando do Lotus Cortina porque o que estamos vendo nestas fotos é o mítico E14 LS (chassis BA74FY59148), registrado como PHK 614 D, provavelmente o mais importante de todos os 3.306 Mark I fabricados – e ele será leiloado no Autosport International Sale 2019 no fim de semana que vem.
Trata-se de uma das três únicas unidades que a Lotus construiu do Cortina de Grupo 5 (Special Touring Cars), uma versão nada menos que 70% mais potente que o Lotus Cortina mk1 (180 cv a 7.750 rpm, contra 106 cv a 5.500 rpm), com um cabeçote ainda mais preparado e comando bem mais bravo, injeção mecânica Lucas calibrada pela BRM (apenas o E14 LS possui este recurso), braços de suspensão com geometria refeita para gerar mais cáster e cambagem e cargas de molas e amortecedores revistas.
Este Cortina das fotos recebeu em seu cockpit nomes como Jim Clark, Graham Hill, Jacky Ickx e Piers Courage entre 1966 e 1967. Sua última prova como carro oficial do Team Lotus foi o Race of Champions em Brands Hatch, na qual Graham Hill venceu em sua categoria e ficou em 2º na classificação geral. Depois disso, o carro competiu mais dois anos de forma independente no Reino Unido e foi finalmente vendido para Dave Hannaford, que o emigrou para a Zâmbia, sul da África.
Algum tempo depois, o Cortina trocou de mãos mais três vezes, com Nevile Halberg até 1983, Jannie Van Aswegan até 1997 e finalmente para Cedric Selzer, o preparador de Jim Clark, que o trouxe de volta para o Reino Unido e o restaurou totalmente.
Como surgiu o Lotus Cortina?
O Lotus Cortina nasceu por consequência de dois acontecimentos, um indireto e outro direto. O indireto aconteceu em 1961, dois anos antes do primeiro Lotus Cortina sair do forno. Chapman queria fabricar seus próprios motores porque os Coventry Climax FWE empregados no Lotus Elite (foto abaixo) eram muito caros.
Para isso, Colin convocou seu amigo Harry Mundy, que não por coincidência era designer na Coventry Climax, para projetar uma versão de duplo comando do motor Ford Kent, com um cabeçote muito mais sofisticado, com direito a câmaras de combustão hemisféricas. O projeto ficou tão parecido em termos de fluxo que Harry Mundy usou a mesma geometria do comando de válvulas do Coventry Climax FWE. Não temos dúvida de que isso também não foi coincidência.
Na fase final do projeto, ninguém menos que Keith Duckworth (junto com Mike Costin, fundaram a Cosworth em 1958) se juntou ao time. Seis anos depois, Duckworth seria o principal responsável pelo projeto do Ford DFV, o motor mais vitorioso e longevo da história da Fórmula 1.
Depois de quase dois anos ininterruptos de desenvolvimento, do Ford Kent sobraram apenas o bloco, virabrequim e bielas no projeto. O rendimento saltou de 60 cv a 4.600 rpm do motor original para 100 cv a 5.700 rpm. O Lotus TwinCam estreou em 1962 no Lotus 23 de Jim Clark, numa prova de Grupo 4 em Nürburgring, para pouco tempo depois surgir no primeiro carro de produção a utilizá-lo, o Lotus Elan (foto abaixo), numa versão de 1.557 cc em vez de 1.499 cc, por meio de cilindros mais largos (82,55 mm) para tirar proveito dos regulamentos de sua categoria. Com o nascimento do Elan, o Elite acabou saindo de linha em 1963 sem receber o motor TwinCam.
E qual foi o acontecimento direto? Aconteceu próximo à reta final do desenvolvimento do Lotus TwinCam, quando o relações-públicas da Ford Walter Hayes perguntou à Colin Chapman se ele não instalaria o Lotus TwinCam em 1.000 unidades do Ford Cortina com o fim de homologá-lo para competir na categoria Grupo 2. Apesar de bastante sobrecarregado com o lançamento do Elan, Chapman aceitou a empreitada – e assim nasceu o Lotus Cortina, ou Cortina Lotus (como a Ford o chamava) ou Lotus Type 28 (código interno da fábrica).
A receita do Lotus Cortina
O esquema foi bastante parecido com o que a Ford faria dois anos mais tarde com os Shelby GT350: a empresa forneceu à Lotus os monoblocos e era responsável pelas propagandas e pela venda dos veículos, enquanto a casa de Chapman cuidaria de toda a preparação e alterações visuais.
Além do motor Lotus TwinCam, o carro recebia a transmissão adotada no Elan, com escalonamento do tipo close-ratio, com a primeira marcha longa e todas as outras empilhadas mais próximas umas das outras.
Em termos de alívio e redistribuição de massas, o Lotus Cortina recebia carcaças de câmbio e de diferencial de alumínio, painéis de alumínio nas portas, capô (que também tinha sua estrutura depenada) e tampa do porta-malas e bateria movida para o porta-malas. Sua estrutura foi reforçada em diversos pontos, tanto nos locais de fixação da suspensão quanto diversos tubos e brackets conectando longarinas e pontos estratégicos para redução da torção.
A suspensão traseira deixou de usar feixes de mola para utilizar coil overs e um sistema “A-frame” derivado do Lotus Seven, que combina braços arrastados a um localizador transversal remotamente parecido com uma barra Panhard mas instalado bem adiante do eixo. Já a suspensão dianteira empregava molas mais curtas, bandejas forjadas mais longas, uma barra estabilizadora bem mais grossa e por fim, braço auxiliar reprojetado e caixa de direção com relação mais direta.
Para fechar o pacote mecânico, rodas 15×5,5″, pneus diagonais e freios Girling com discos de 241 mm na dianteira. Além, é claro, da cor Ermine White com a faixa-assinatura em British Race Green, bancos concha aliviados, volante Lotus com aro de madeira na versão de rua (mesmo material usado na manopla) e um painel revisto de forma quase gêmea ao Elan, apresentando um jogo Smiths com velocímetro de 140 mph (225 km/h), conta-giros de 8.000 rpm, medidor de combustível e outro que combinava pressão de óleo e temperatura d’água.
Não, o Cortina não tem a mesma beleza da Alfa Romeo GTA, o carisma unânime do Mini Cooper ou a atemporalidade histórica e currículo monstruoso como o Porsche 911. Mesmo com um ótimo currículo na Trans Am (na categoria abaixo de dois litros) e em campeonatos australianos, há quem diga que ele está muito ligado ao automobilismo regional, como o Skyline Hakosuka para os japoneses ou o DKW Malzoni para nós, brasileiros. Contudo, com um batalhão de elite internacional forjado em seu DNA como Colin Chapman, Keith Duckworth, Jim Clark, Roger Clark (sim, o carro também possui história nos ralis), Vic Elford, Jackie Stewart, Graham Hill e Jacky Ickx, não há contestação possível: este sedãzinho é um puro sangue dos mais nobres.
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