Niki Lauda nos deixou há exatamente uma semana, aos 70 anos de idade. Foi-se um dos grandes, simplesmente – um tricampeão que, para nós, é um dos maiores heróis da Fórmula 1.
Precisamos explicar mesmo o motivo? Com seus dois títulos em 1974 e 1977, Lauda tirou a Scuderia Ferrari de uma fase terrível, conquistou o respeito do próprio Enzo, ficou entre a vida e a morte de pois de um acidente em Nürburgring, se aposentou, saiu da aposentadoria e ganhou mais um título. Ajudou Nelson Piquet no início de sua trajetória, protagonizou uma das rivalidades mais ferozes do esporte a motor com James Hunt, e permaneceu como uma figura proeminente na Fórmula 1 até os últimos dias de sua vida.
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Mas Niki Lauda também tinha uma personalidade incrível, com humor ácido, língua afiada e uma visão incrivelmente realista sobre a vida e o mundo. Era uma figura inconfundível, em muitos aspectos – e cheio de histórias para contar.
Em outubro de 2017, Niki Lauda participou de um episódio do programa esportivo In Depth with Graham Besinger, da Fox Sports/NBC. No programa, Lauda falou abertamente sobre vários assuntos: o início de sua carreira, a primeira vez que falou com Enzo Ferrari, as cicatrizes do acidente em Nürburgring, a amizade com James Hunt e o filme que conta a história – entre várias outras coisas.
O programa está no Youtube, dividido em tópicos – mais de vinte clipes, todos ótimos. Nós separamos alguns deles e comentamos a respeito, transcrevendo algumas partes. Se você arranha um pouco o inglês, vale a pena assistir tudo. Fique, a seguir, com alguns trechos comentados – uma forma excelente de entender porque Niki Lauda era mais do que um grande piloto. Era um grande ser humano.
Sobre abandonar os estudos para ser piloto
“Eu era muito burro, ia mal em todas as provas”. Lauda nasceu para ser piloto, mas quando ainda não sabia disto, passou algum tempo procurando algo em que fosse bom. Com notas péssimas nas provas – especialmente em matemática e religião – ele acabou deixando a escola por influência do pai, que decidiu colocá-lo em uma escola de mecânica. No entanto, em seus três primeiros meses como aprendiz de mecânico em uma oficina, Lauda fez tanta besteira que decidiu voltar aos estudos. “Preciso aprender alguma coisa, e preciso aprender direito”. Então, arrependido, ele voltou a estudar até completar o ensino médio.
“Eu não consegui terminar as duas últimas questões, então um rapaz sentado atrás de mim decidiu me ajudar – ele me disse: ‘por que você não pega minha prova, coloca seu nome e mostra para a sua família? Assim você finalmente vai ter paz.”
E foi exatamente isto o que ele fez: chegou em casa mostrou a prova e disse “passei!”, guardando no bolso logo em seguida. “Eu era tão estúpido que dava para ver a 100 metros de distância que aquela prova estava adulterada. Mas todos ficaram felizes, aliviados e me beijando e abraçando, porque finalmente tinha feito algo direito. E então eu pude finalmente fazer outras coisas, me dedicar às corridas de Mini Cooper e tudo o mais.”
Sobre a falta de apoio da família
Lauda nasceu em uma família importante em Viena, na Áustria, e não é segredo para ninguém que eles não o apoiavam – eles achavam que era perigoso demais. E seu avô era o pior de todos. Extremamente teimoso, ele achava que Lauda deveria assumir o negócio da família. “Eu quero ver nosso sobrenome no caderno de economia dos jornais, não no caderno de esportes”, foi o que o avô de Niki Lauda disse, de acordo com ele. Foi por isto que o avô agiu para cancelar o contrato de patrocínio que o piloto havia conseguido para assinar com a equipe March. “E foi ali que eu encerrei qualquer tipo de relação com meu avô”.
Por outro lado, de certa forma Lauda era grato por tudo o que havia ocorrido. “Minha família era muito poderosa, e os Lauda nunca tiveram que lutar para conseguir nada na vida. Eu quebrei esta regra, e tive que brigar com meu avô para defender minhas próprias ideias. Isto me ajudou a me desenvolver como pessoa, me desvencilhar da família, onde tudo era seguro e garantido. Me deu liberdade para fazer o que eu queria fazer, e me deu mais incentivo para ser bem sucedido [nas pistas].”
Sobre Enzo Ferrari
“Enzo Ferrari foi o cara mais carismático que eu conheci na minha vida”, diz Lauda. “Por quê? Porque ele era linha dura com a equipe, com o carro e consigo mesmo mas, ao mesmo tempo, ele era um italiano com um enorme coração. Era sempre uma combinação das duas coisas com ele. E, se ele te respeitasse – e no final ele me respeitava – ele podia não admitir para as outras pessoas, mas dava para perceber que ele gostava de você. E, quando você tinha um relacionamento assim com Enzo, ele era uma pessoa fantástica de se trabalhar.”
É fascinante ouvi-lo falar sobre seu primeiro encontro com Enzo – quando Lauda ainda estava na BRM, a equipe onde trabalhou antes da Ferrari, e que definitivamente não estava à altura de seu talento. Lauda tinha uma piada recorrente com sua secretária. Lauda dizia: “se alguém me ligar, diga que eu não estou. A não ser que seja Enzo Ferrari.” Então, no fim da temporada de 1973, Enzo Ferrari ligou.
Fui ver o Sr. Ferrari. Ele me falou ‘Você está fazendo um bom trabalho, você andou na frente do meu carro em Montecarlo. Eu quero te contratar”.
Eu falei “Sr. Commendatore, eu tenho um probleminha. Porque ontem mesmo eu renovei o contrato com a BRM e tenho que continuar pilotando para eles.” O velho olhou para o seu assistente, olhou para mim e disse: “nós vamos dar um jeito nisso.”
“Você vai dar um jeito nisso?”
“Nós vamos dar um jeito nisso. Assine aqui.”
Eu perguntei de novo: “Você vai dar um jeito nisso? Olha aqui, eu tenho um contrato, não tem jeito, eu preciso continuar com eles.”
E ele respondeu: “Não se preocupe, nós vamos dar um jeito nisso. A gente tem advogados na Inglaterra, podemos fazer qualquer coisa.”
Apesar disto, o primeiro contato com uma Ferrari não foi tão bom assim. Lauda contou que, ainda em 1973, ele fez um teste com a Ferrari em Fiorano e achou a 312B3 uma bela porcaria. Mas ele não podia dizer isto a Enzo. Foi quando aconteceu o famoso episódio com Piero Ferrari, filho de Enzo, que lhe servia como intérprete. Nas palavras do próprio Lauda:
O velho disse “Pergunte a ele sobre o carro.” E eu respondi: “O carro é uma m3rda, sai de frente o tempo inteiro, não funciona”, do meu jeito normal e sincero. E Piero me disse: “Você não pode falar que o carro é uma m3rda.” E eu respondi: “por que não, se o carro é uma m3rda?”, eu disse em inglês. O velho estava ouvindo.
“Por que ele eu nao posso falar isso pro meu pai. Fale que o carro não é bom.” E então ele falou isso pro pai dele, pelo que eu entendi.
E aí o velho perguntou: “O que ele falou? Que uma Ferrari não é boa?” E aí eu falei, direto pra ele. “É, não é boa, é uma m3rda!” E imediatamente percebi que havia cometido um erro. E não aconteceu absolutamente nada por trinta segundos, os trinta segundos mais longos da minha vida.
Então, Enzo perguntou: “o que é uma m3rda, exatamente?”
E eu expliquei: “Ele subesterça. O acerto da dianteira está errado. O BRM que eu dirigia era perfeito, rápido para entrar e para sair das curvas, mas esse carro aí não é bom.” E ele disse: “OK. Se arrumarmos este carro, o quão mais rápido você consegue ir?”
Respondi: “Três décimos de segundo. Talvez cinco.” E Enzo respondeu: “Certo. Então nós vamos consertar o carro. E se você não for cinco décimos de segundo mais rápido, você está demitido.”
Eu perguntei: “Por quê?” E ele me respondeu: “Porque se você diz que o carro é uma m3rda, e nós consertarmos, e você não for mais rápido… então o problema é com você, e não com o carro.”
Sobre sair da Ferrari
Lauda conseguiu cumprir a promessa de ser mais rápido e, como sabemos, conquistou dois títulos pela Ferrari – em 1975 e 1977. Mas no fim de 1976, Carlos Reutemann foi contratado como seu novo colega de equipe. Lauda não gostou de saber que seria o piloto nº 2 a partir dali, pois Enzo achava que ele não se recuperaria ao mesmo nível de antes do acidente.
Então, Lauda decidiu pedir as contas, mas Enzo conseguiu convencê-lo a ficar mais um ano. Em 1977, Lauda conquistou seu segundo e último título com a Scuderia.
Em novembro, no fim da temporada, em uma reunião com toda a equipe, Enzo perguntou a a Lauda quanto ele queria para continuar com a Ferrari. Lauda conta:
Respondi: “Nada, já tomei minha decisão. Vou sair, e ano que vem vou pilotar para Bernie Ecclestone”. O velho não ficou feliz, começou a esbravejar e gritar com seus colegas. Mas o que nunca vou me esquecer: quando saí da reunião, me senti leve como uma pluma. Toda aquela pressão que eu sofria, e nem sabia que sofria, de repente havia sumido.
Foi quando Lauda migrou para a Brabham, onde conheceu Nelson Piquet. Ele manteve pelo resto de sua vida a amizade com o brasileiro e com Ecclestone, mas em retrospecto, percebeu que foi um erro deixar a Scuderia. Seu desempenho com a Brabham foi fraco, em boa parte por causa dos carros. Mas, na época, pareceu a decisão correta.
Sobre sua imagem
No acidente em Nürburgring, em 1976, Lauda perdeu boa parte do couro cabeludo, a orelha direita e as pálpebras. Ao longo de seis semanas, fez várias cirurgias de reconstrução, usando pele das pernas, recuperou-se e voltou a correr. A sequela foram as cicatrizes no rosto e na cabeça.
“Tenho esta aparência chocante para as pessoas, mas desde o primeiro instante, coloquei na minha cabeça: esta é minha aparência, eu sou assim, e isto não vai mudar”, disse Lauda. “Não posso colocar um novo rosto. E vou tocar minha vida. Não me incomoda nem um pouco.”
Mas ainda assim, no início o tricampeão ficou inseguro. “Não gostava muito e falar com as pessoas por causa da minha aparência. Eu usava o boné porque ele me protegia de pessoas idiotas me olhando como idiotas, querendo saber o que diabos havia debaixo do boné. Elas me olhavam torto, e eu dizia ‘pode me olhar nos olhos?’ Porque às vezes o único interesse que as pessoas tinham em mim era o que havia debaixo do boné.”
Com o passar dos anos, Lauda começou a encarar com bom humor. “Eu sempre digo uma coisa: eu sou feio, mas eu tenho um bom motivo para isto. Mas muitas pessoas só nasceram feias, mesmo.”
Sobre James Hunt
Lauda costumava dizer que havia poucas pessoas de que ele gostava, menos ainda que ele respeitava, e apenas uma que ele invejava: James Hunt. Os dois foram amigos no início da carreira mas, com a rivalidade entre os dois em 1976, a relação se tornou um pouco mais distante – embora os dois ainda tivessem certa camaradagem.
“Quando ele me venceu por apenas um ponto, eu fui e lhe disse: ‘fico feliz que você tenha sido o campeão entre todos os outros pilotos’. Acho que isso mostra como nossa relação era boa.” Ao explicar por que James Hunt era a única pessoa no mundo que ele invejava, Lauda não economiza em elogios:
James tinha uma personalidade e tanto, do tipo que você conhece e nunca mais esquece. James é uma das poucas pessoas que considero que ainda estão vivas, mesmo que tenham morrido há muitos anos. Se eu posso falar isso de James, é porque ele era mesmo excepcional. As pessoas que você esquece, você esquece. Eu nunca vou esquecer James, porque ele foi uma parte muito importante da minha vida e para mim, ele ainda está vivo.
Sobre “Rush – No limite da emoção”
Curiosamente, no começo Lauda não gostou muito do filme que retrata sua rivalidade com Hunt – mesmo tendo participado ativamente do projeto como consultor, explicando os procedimentos de uma corrida e contando detalhes sobre sua vida. “O diretor me leu parte do script, que dizia ‘Lauda foi até o carro, colocou o cinto de segurança, virou a chave e partiu. Estava tudo errado, primeiro porque a Ferrari não tinha chave, e segundo porque eu não conseguia colocar meu cinto de segurança sozinho!” E depois, ao ver uma versão crua do filme, sem edição e sem trilha sonora, ele achou sua representação na telona muito fria e seca. “Eu devia ser o maior c*zão do mundo naquela época”, em suas próprias palavras.
Mas era só impressão. No final, ele se tornou amigo de Daniel Brühl, o ator alemão que o interpretou, e lhe ajudou a “entrar” no personagem. Na première do filme foi diferente.
“Eu vi o filme pronto, ao lado de Bernie Ecclestone, e vi as pessoas rindo, vi as pessoas chorando, e percebi que o filme era bom pela reação das pessoas. Assim que acabou, Bernie levantou e disse: ‘ficou muito bom, quero ver de novo.”
Quando indagado sobre sua parte favorita, Lauda não teve dúvidas: “Gostei do final, que mostra James Hunt e eu voltando a ser amigos. Foi assim mesmo: éramos amigos no começo, depois nos tornamos rivais, e depois ficamos amigos de novo.”