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História

O brasileiro que “tirou gasolina de pedra” há quase 100 anos

Há alguns anos, contamos aqui no FlatOut a saga do escritor Monteiro Lobato para dar ao Brasil a capacidade de extrair petróleo por conta própria. Resumindo: na década de 1930, Lobato suspeitava de que havia reservas de petróleo em nosso país. Ele iniciou a prospecção por conta própria, abrindo algumas empresas no processo, e conseguiu confirmar seu palpite. Contudo, jamais obteve apoio do governo federal – pelo contrário: a classe política negava a existência de petróleo no Brasil.

O embate de Lobato não era apenas técnico, mas político. Ele denunciava que o governo brasileiro, pressionado por empresas estrangeiras como a Standard Oil, sabotava qualquer tentativa de exploração nacional. Esse discurso, que misturava nacionalismo econômico e crítica cultural, antecipava a ideia que mais tarde desembocaria no slogan “O petróleo é nosso”.

Lobato criticou duramente as autoridades diante deste cenário – e, obviamente, sofreu represálias, chegando a passar três meses preso após enviar uma carta nada amistosa ao então presidente Getúlio Vargas em 1935. Três anos depois, em 1938, o governo decide procurar petróleo em Lobato, na Bahia (uma ironia quase cruel)… e encontra.

Paralelamente a tudo isso, a população aceitava a ideia de que não havia petróleo em nosso país, e buscava alternativas à importação do recurso através de empresas estrangeiras. Uma dessas pessoas foi Roberto Angewitz, considerado o pioneiro na exploração brasileira do xisto betuminoso.


Petróleo, o óleo da pedra

O xisto betuminoso é um mineral sedimentar de grão fino, composto em boa parte por um material orgânico chamado querogênio – que, por sua vez, é formado a partir dos lipídios (gorduras), proteínas e carboidratos de seres vivos mortos há milhares de anos. Ao aquecer o xisto betuminoso na temperatura adequada, é possível extrair gás combustível, enxofre e, mais importante, um hidrocarboneto líquido chamado petróleo de xisto.

O petróleo de xisto foi um dos primeiros óleos minerais usados pelo homem – seu método de extração já era conhecido no século 14, na Suíça e na Áustria, e até mesmo propriedades medicinais lhe eram atribuídas. Nos séculos seguintes, o petróleo de xisto foi usado como combustível para iluminação pública, fabricação de asfalto e também como combustível direto. A indústria moderna do óleo de xisto estabeleceu-se na França, no início do século 19, coincidindo com a Revolução Industrial.

Praticamente idêntico ao petróleo fóssil encontrado em poços, o petróleo de xisto pode ser usado para produzir gasolina. E foi justamente por isso que ele começou a ser explorado por Angewitz.

Nascido em São Bento do Sul/SC em 1878, Roberto Angewitz era filho dos imigrantes poloneses Maximiliano Andziewicz (que aportuguesou seu sobrenome ao batizar Roberto, como era comum entre imigrantes, na época) e Nathalia Cyms. Aos oito anos de idade, Roberto foi picado na perna direita por uma cobra peçonhenta, o que lhe causou uma infecção grave e exigiu a amputação do membro, substituído por uma prótese de madeira. Apesar da deficiência adquirida, começou a trabalhar ainda muito jovem como ferreiro, ajudando o pai em sua oficina.

Já adulto, mudou-se para Curitiba/PR, onde abriu uma empresa de fundição de metais em 1905. A empresa durou apenas dez anos: em 1915, a Primeira Guerra Mundial dificultou a obtenção de matéria-prima. Roberto faliu e, com o que restou de seu patrimônio, comprou um carro e começou a trabalhar como taxista. Pouco depois, quando voltou a prosperar, abriu uma oficina mecânica.

Foi em 1932 que Roberto pegou uma corrida para a cidade de São Mateus do Sul, a cerca de 150 km de Curitiba, onde há uma das maiores reservas de xisto do Brasil. Na época, já se falava muito sobre as propriedades do xisto betuminoso, e Roberto ficou muito interessado.

São Mateus do Sul já era conhecida desde o século XIX pelas rochas negras de cheiro forte, usadas pela população local para iluminação rústica. A viagem de Angewitz coincidiu com um momento em que o preço do petróleo importado disparava no Brasil, pressionado pela restrição cambial da crise de 1929 e pelo clima de instabilidade que antecedia a Segunda Guerra Mundial. Roberto, então, decidiu investir tudo o que tinha para abrir uma usina de xisto em São Mateus do Sul, a fim de extrair dele o petróleo de xisto e produzir gasolina.


Por algum tempo, Roberto Angewitz foi o único brasileiro capaz de produzir petróleo (e, consequentemente, gasolina) em território nacional, ficando conhecido como “o homem que tirava gasolina de pedra”. Na época, o petróleo normal simplesmente “não existia” por aqui, e ninguém levava a sério a ideia de procurar por ele – ninguém além de Monteiro Lobato e seus sócios.

A usina de Angewitz era rudimentar, baseada em fornos de alvenaria onde o xisto era aquecido até cerca de 500 °C em ausência de oxigênio — processo chamado pirólise. O vapor resultante era condensado em tanques improvisados, gerando um líquido escuro e pesado que, após destilação, rendia gasolina. Testemunhas da época relatam que a fumaça e o cheiro de enxofre impregnavam toda a cidade.

Por conta disso, Roberto prosperou por alguns anos. Mas não durou muito: com a descoberta do petróleo fóssil no Brasil em 1938, era questão de tempo até que a demanda pelo petróleo de xisto caísse drasticamente. Em 1942, o governo brasileiro, por meio do Conselho Nacional do Petróleo CNP) — que estabeleceu o monopólio estatal da exploração de petróleo – tomou a usina de Roberto sob o pretexto de impedir que iniciativas privadas fragmentassem o controle do petróleo em plena guerra, quando o recurso era estratégico. Roberto recebeu uma compensação simbólica e voltou a Curitiba.

Angewitz é o segundo da direita para a esquerda

No entanto, inadvertidamente, o trabalho em sua usina lhe causou intoxicação pelos gases liberados no refino do xisto. Como ele havia sido um dos primeiros a explorar o mineral, os procedimentos de segurança em seu manuseio ainda não haviam sido estabelecidos. Roberto Angewitz morreu em 1947, na capital paranaense.


Você deve estar se perguntando por que o xisto betuminoso não começou a ser mais explorado depois destes acontecimentos. É simples: com o início da exploração do petróleo fóssil, a aplicação do mineral orgânico tornou-se desnecessária para a produção de gasolina.

A Usina de São Mateus, já sob o comando da Petrobras

Mas há outra boa razão: a exploração e o refino do xisto para fabricar combustíveis é mais caro e trabalhoso do que no caso do petróleo. Os impactos ambientais são maiores, pois a extração do petróleo de xisto emite poluentes na atmosfera, além de comprometer também os recursos hídricos da região. Em São Mateus do Sul, até hoje há polêmica sobre a contaminação do Rio Iguaçu e o impacto da queima do xisto na qualidade do ar. A Petrosix foi obrigada a desenvolver filtros especiais para reduzir material particulado e enxofre, mas críticos ainda apontam que o custo ambiental do xisto supera seu benefício econômico.

Isto posto, o Brasil possui uma das maiores reservas mundiais de xisto. De acordo com a Superintendência Industrial de Xisto da Petrobrás (Petrosix), sob o solo brasileiro há uma reserva de 12 bilhões de barris de óleo equivalente recuperáveis em reservas de xisto no Brasil. Sozinha, a Petrobrás processa diariamente, na usina de São Mateus do Sul, 7.800 toneladas de xisto betuminoso, resultando em 3.870 barris de petróleo de xisto, 120 toneladas de gás combustível, 45 toneladas de gás liquefeito e 75 toneladas de enxofre.

Enquanto a extração do petróleo fóssil ainda é viável, o xisto betuminoso acaba tendo outros usos. Há quem acredite que Roberto Angewitz estava certo e que, quando o petróleo se tornar realmente escasso, o xisto será uma alternativa — os EUA que o digam: sua produção de petróleo a partir do xisto atingiu níveis recorde no início deste século, afetando significativamente a Opep.

Assim como Monteiro Lobato sonhava com o petróleo nacional, Roberto Angewitz acreditava que a solução estava no xisto. Ambos estavam certos, cada um a seu modo — e ambos foram pioneiros que pagaram o preço de acreditar antes do tempo.