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Car Culture

O carro para mulheres… que as mulheres não quiseram

Apesar dos estereótipos e da imagem masculinizada dos automóveis e da cultura automobilística, as mulheres estão ao volante desde que o primeiro carro foi criado — e aqui não falamos no sentido figurado: a primeira pessoa a viajar de carro foi uma mulher.

A complexidade mecânica dos primeiros automóveis, contudo, os tornava pouco atraente para elas — fora o fato de que eram máquinas acessíveis somente a pessoas muito ricas que, não raramente, sequer se preocupavam em aprender a operá-las, delegando o trabalho a um motorista/mecânico.

À medida em que o carro se popularizou, por volta dos anos 1920, eles se tornaram menos complexos e passaram a ser mais atraentes para as mulheres, que se interessaram na liberdade de locomoção e na praticidade que eles traziam à rotina diária.

O homem tinha prioridade de uso, mas as mulheres também os dirigiam na divisão do trabalho doméstico — em especial as mulheres da zona rural, que viram os automóveis uma forma de superar o isolamento: elas agora poderiam dirigir até a cidade para vender a produção da fazenda (foi assim que nasceram as picapes compactas) ou comprar insumos para a casa. Foi assim que o carro deixou de ser uma máquina do homem para se tornar um bem de família. E foi por isso que a mulher passou a participar da compra dos carros.

Por questões sócio-culturais da época, elas ainda não tinham renda nem autonomia para comprar seus próprios carros — somente as mulheres muito ricas podiam fazer isso —, mas muitas mulheres participavam da compra com seus maridos, ajudando-os a tomar decisões de compra, algo que persiste até hoje.

Isso fica evidente na publicidade automobilística do período entre-guerras, que deixou de exaltar as qualidades mecânicas e passou a exibir mulheres como passageiras ou mesmo motoristas, vendendo um estilo de vida, e não apenas uma máquina.

Essa participação da mulher se tornou ainda mais marcante após a Segunda Guerra Mundial, quando os EUA passaram por um período de prosperidade econômica que multiplicou o poder aquisitivo dos americanos. As cidades começaram a crescer, trazendo mais oportunidades de trabalho e salários maiores. A popularização dos carros criou os subúrbios, ligados às cidades por vias expressas e logo a noção de um carro por família começou a ficar obsoleta.

Para sair de casa, trabalhar, fazer compras e facilitar a vida da família, a ideia de um carro para o homem e outro para a mulher se tornou cada vez mais popular — bem como sua participação na compra dos carros. Agora, elas não influenciavam apenas os maridos na compra do carro da família: elas passariam a ter seu próprio carro.

A Chrysler percebeu esta tendência no começo dos anos 1950, e decidiu agir de acordo: por que não oferecer às mulheres um carro feito especialmente para elas? Um carro elegante, feminino e cheio de acessórios? A ideia foi explorada como conceito em 1954, quando foram apresentados os conceitos Le Comte e La Comtesse (“o conde” e “a condessa”, em português).

Ambos eram feitos com base no Chrysler Newport, porém tinham apelos diferentes. O Le Comte, feito para os homens, tinha pintura preta e bronze, enquanto o La Comtesse, sua versão feminina, era rosa com detalhes em cinza claro. A ideia foi bem recebida pelo público, e a Chrysler decidiu usar a Dodge para colocar um carro “de mulher” nas ruas.

Apresentado em 1955, o Dodge La Femme (“A Mulher”, em francês) usava como base o cupê Custom Royal Lancer. A carroceria do La Femme não trazia quaisquer alterações em relação ao Custom Royal Lancer – formas e detalhes de acabamento, como os cromados da grade, os pneus faixa-branca e os rabos de peixe, eram exatamente iguais. E o motor também era o mesmo: um V8 de 5,3 litros e 123 cv.

Na prática, o La Femme era um pacote de opcionais que custava US$ 143 (cerca de US$ 1.343 em 2019).

Do lado de fora, o pacote incluía uma pintura bicolor, com a parte superior em rosa “Heather Rose” e a parte inferior em branco “Sapphire White”; calotas cromadas exclusivas, com desenho mais delicado; e emblemas denominando a versão. É curioso porque, na década de 1950, o rosa era uma cor relativamente comum nos carros, especialmente os maiores e mais caros, e não era automaticamente associado a algo feminino.

O revestimento interno também era em tons de rosa, com vinil e uma tapeçaria com rosas bordadas. O carro acompanhava uma bolsa de mão feita de couro, e dentro dela vinham alguns acessórios: um pó facial, um isqueiro, uma cigarreira, um pente e um porta-moedas. A bolsa ficava guardada em um compartimento atrás do banco do carona. Atrás do banco do motorista, ficavam um guarda-chuva, uma capa de chuva tipo sobretudo e um chapéu de chuva, todos no mesmo tom de rosa que dominava o interior do carro.

Completando o tratamento exclusivo para mulheres, o catálogo de venda trazia a frase: By Special Appointment to Her Majesty… the American Woman – algo como “Indicado Especialmente para Sua Majestade… a Mulher Americana”.

Em 1956, o Dodge La Femme passou por algumas mudanças. As cores passaram a ser o lilás “Misty Orchid” e o branco “Regal Orchid”, e o interior ganhou um revestimento mais discreto, com tecido e couro em tons de marrom claro, lilás e lavanda, em um padrão mais simples – diz-se que os tecidos usados em 1955 eram de confecção muito mais trabalhosa. E a bolsa que acompanhava o carro deixou de ser oferecida – apenas o guarda-chuva, o chapéu e o sobretudo.

O La Femme deixou de ser oferecido na linha 1957, sem deixar um sucessor nem explicação. Um memorando chegou a ser enviado às concessionárias dizendo que o La Femme de 1955 foi um sucesso, mas seus números jamais foram divulgados. No entanto, acredita-se que cerca de 2.500 unidades foram vendidas em seus dois anos de venda. Considerando que, no mesmo período, foram fabricadas 30.500 unidades do Custom Royal Lancer, dá para dizer que o La Femme foi um fracasso.

Não é difícil entender o motivo: apesar da participação na compra dos carros, as mulheres nunca pediram um carro feminino, da mesma forma que nunca pediram uma casa feminina, ou uma televisão feminina. A leitura feita pela Chrysler sobre a participação feminina no mercado foi equivocada e, talvez, presunçosa (sexista?): o fato de as mulheres decidirem a compra do carro não significava necessariamente que elas quisessem um carro feito para elas — especialmente se ele fosse desenvolvido de forma tão estereotipada, com tonalidades femininas e acessórios femininos.

Não é difícil perceber que as mulheres simplesmente não viam a necessidade de expressar sua feminilidade em seus carros. Elas sempre tiveram outras formas de fazer isso.


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