Se há algo que define a identidade de uma fabricante de automóveis, este algo são os seus motores. Pense na Honda, e você lembrará de seus motores giradores e do “Vtec kick”. O que seriam dos italianos sem a sonoridade de seus V6, V8 e V12? Como se identifica um Subaru de olhos fechados? A famosa robustez das marcas alemãs, vem das chapas da carroceria ou da durabilidade de seus motores?
Tudo isso talvez tenha sido verdade em um passado distante, anterior à globalização, em que as fabricantes mantinham suas características próprias e uma identidade nacional. Os modelos suecos são o melhor exemplo disso: eles ficaram mundialmente conhecidos por sua robustez e proteção contra corrosão porque tinham de ser reforçados para resistir ao atropelamento de alces e rodavam na maior parte do tempo sobre a corrosiva mistura de sal e neve nas estradas.
Nos últimos 30 anos, contudo, as joint-ventures resultaram em parcerias inusitadas entre rivais. Veja o câmbio de dez marchas do Mustang, por exemplo, que foi desenvolvido em parceria com a Chevrolet e também equipa o Camaro. Até aí tudo bem, porque um câmbio geralmente não afeta a “personalidade” de um carro — a menos que você esteja falando de um CVT no Subaru WRX. Mas chegamos a situações em que a BMW usou motores Peugeot, a Fiat era equipada com motores Chevrolet e a Mercedes é movida por motores Renault. Ou seriam os Renault embalados por motores Mercedes?
Na maioria dos casos tudo isso é conhecido pelo consumidor, visto que estas parcerias costumam ser noticiadas largamente. Mas há algumas situações em que as parcerias são desfeitas e cada parte desenvolve as evoluções do projeto do seu jeito. Nesses casos, a origem do projeto se perde nos rodapés da história da parceria. Às vezes alguns projetos antigos são desengavetados e chegam ao mercado sem o menor indício de que a origem deste motor é bem diferente do que parece. Imagine a Ferrari assinando motores desenvolvidos pela Mercedes. Ou o Mini Cooper usando o motor de seu clone chinês — que tem tudo a ver com o motor e.torq, usado pela Fiat até semana retrasada.
Sim, o motor e.torq, apesar de ter sido lançado em 2011, tem suas origens em um motor mais antigo, que foi idealizado pela Chrysler e pelo Rover Group em 1997. Esse motor foi desenvolvido por encomenda das duas marcas aos austríacos da AVL e começou a ser produzido em 1999 no Brasil pela joint-venture Tritec, formada pela BMW (que acabara de desmembrar o Rover Group) e pela Chrysler. Esses motores foram usados nos Chrysler Neon e nos PT Cruiser exportados para a Europa e nos Mini Hatch e Cabriolet lançados pela BMW.
A BMW, contudo, não ficou satisfeita com o resultado, e chegou a dizer publicamente que o motor era antiquado em termos de funcionamento, desempenho e consumo e, durante o projeto da segunda geração do Mini, encerrou o contrato com a Tritec e vendeu sua metade à DaimlerChrysler em 2007, levando ao encerramento da produção do motor, visto que ela era a única que ainda o utilizava.
No ano seguinte a Fiat Powertrain Techcnologies, subsidiária da Fiat responsável pelo desenvolvimento e fabricação de motores, adquiriu a fábrica e os direitos de uso do motor Tritec. O projeto foi modernizado e acabou dando origem ao motor e.torq. Coincidentemente, depois da compra da Chrysler pela Fiat e a a formação da FCA, o motor foi adotado em modelos Chrysler — caso do Jeep Renegade e do Dodge Neon mexicano, que era um Tipo sedã rebatizado.
Paralelamente, em uma linha do tempo alternativa na trajetória do motor Tritec, a AVL foi contratada pelos chineses para desenvolver um motor e usou como base o projeto vendido à Tritec em 1999. Esse projeto deu origem aos motores LF479 e LF481 da Lifan, usados no 620 e no 320, e ao motor SQR481F da Chery, usado no Cielo e na primeira geração do Tiggo. O bloco e o projeto básico (espaçamento de cilindros, posição dos acessórios, dimensões básicas etc) são os mesmos do Tritec do Mini, porém com bloco de alumínio e comando duplo de válvulas. Foi assim que o Mini e seu clone mal-copiado, o Lifan 320, acabaram usando “o mesmo” motor — que o motor e.torq da Fiat teve a ver com o Mini.
Se essa relação parece improvável, que tal Mercedes e Ferrari — duas rivais ferrenhas na Fórmula 1 — dividindo um motor?
O Mercedes-Ferrari dos Maserati
Pois foi o que aconteceu com o motor M276 dos alemães e o F160 dos italianos. São dois motores bem diferentes, mas que têm uma origem comum. E a culpada de tudo isso é, mais uma vez, a Chrysler.
Entre 1998 e 2007 a Chrysler e a Daimler-Benz foram uma única empresa, unidas por participação acionária que formou a DaimlerChrysler. Na época a Mercedes tinha um V6 não muito germânico em termos de confiabilidade e a Chrysler tinha quatro modelos de V6 diferentes, todos antiquados não muito eficientes. A joint-venture então desenvolveu uma nova família de motores V6, com ângulo de 60 graus entre as bancadas, mas a parceria foi encerrada antes que esta nova família fosse adotada pelas duas fabricantes.
Como resultado, cada uma finalizou o projeto separadamente, dando origem a dois motores diferentes, mas muito semelhantes entre si: o Chrysler Pentastar e o Mercedes-Benz M276. O primeiro é usado até hoje nos modelos do grupo FCA, enquanto o segundo está, aos poucos, dando lugar ao novo seis-em-linha M256.
Você deve lembrar que dois anos depois do fim da DaimlerChrysler, a fabricante americana faliu e foi comprada pela Fiat, formando a Fiat Chrysler Automobiles, ou FCA. Com a fusão, Ferrari, Alfa Romeo, Maserati, Lancia, Fiat, Chrysler, Dodge, Ram e Jeep acabaram todos sob o mesmo telhado. No fim das contas, um motor Chrysler compartilhado com a Mercedes ganhou o nome da Ferrari.
Causos da Chrysler – parte 3
A Chrysler ainda se meteu em mais uma: por causa dela o Hyundai Genesis, o Jeep Compass e o Mitsubishi Lancer têm “o mesmo motor”.
Entre aspas, porque não dá pra chamar de “mesmo motor” três motores que tiveram evoluções distintas, em fabricantes diferentes, com propostas e objetivos diferentes. Pode chamar de trigêmeos que foram criados em famílias distintas. Ou melhor: quadrigêmeos, pois há um quarto motor.
Essa história começou em 2002, quando Chrysler, Hyundai e Mitsubishi formaram uma joint-venture chamada Global Engine Alliance para desenvolver uma família de motores que seria construída em cinco fábricas espalhada pelo mundo (duas nos EUA, duas na Coreia e uma no Japão).
O resultado desta aliança resultou nos motores Chrysler World, Mitsubishi 4B1e Hyundai Theta. O projeto básico do bloco e cabeçote foi feito pela Hyundai, e usava fundição de alumínio, cilindros siameses e camisas de ferro fundido, que poderiam ser substituídas para aumentar ou diminuir o deslocamento de acordo com a necessidade de cada fabricante.
Os motores foram adotados em vinte modelos diferentes das três fabricantes, dentre os quais o Jeep Compass da primeira geração, o Dodge Caliber, a atual geração do Mitsubishi Lancer e ASX, e todos os modelos Kia e Hyundai com motores 2.0 e 2.4 desde 2005 — sendo os mais atuais modernizados com injeção direta de combustível.
A joint venture foi encerrada em 2009 quando a Chrysler comprou as duas fábricas americanas. O projeto do motor, contudo, sobrevive até hoje com o nome Tigershark, que é basicamente uma versão do World Engine com um novo trem de válvulas e novo sistema de admissão.
O parentesco entre o Volkswagen Logus e o Renault 5 Turbo
Além da Chrysler, outra marca que fez confusão com motores foi a Ford. O mais conhecido é o CHT, que nasceu como um motor Renault e, no fim, estabeleceu um parentesco improvável entre o Del Rey, VW Logus, o Volvo 340 e o Renault 5 Turbo.
Essa história é bem conhecida, ao menos no lado da Ford: o CHT nasceu na França, como moteur Cléon-Fonte, desenvolvido em 1962 pela Renault para substituir o motor Billancourt. Ele veio parar no Brasil no final dos anos 1960, quando Willys Overland começou a desenvolver o Projeto M em parceria com a Renault, mas acabou comprada pela Ford no meio do caminho. Com um projeto quase pronto a Ford transformou o Projeto M no Corcel e assim o CHT escreveu a história da marca por aqui.
Na Europa o Cléon-Fonte foi ainda mais além: na França ele equipou todos os modelos médios e compactos da marca até meados dos anos 1990 (já ouviu falar que o “Twingo usa motor de Escort”?), com direito a versões esportivas no Renault 8 Gordini, todos os Renault 5 Turbo e até no Alpine A110.
Em 1976, a Volvo adotou esse motor para o 340, que foi produzido até 1991. Indo mais para o leste, o Cléon-Fonte também foi usado pela Dacia em seus derivados do Renault 12. Como o último deles saiu de linha em 2004, a história do Cléon-Fonte se encerrou depois de 40 anos.
E é bom lembrar que o CHT foi permutado com a Volkswagen na Autolatina, o que significa que até mesmo o Gol CL tem uma gota de óleo da Renault. Quem diria?
O V6 Porsche que virou Duratec, depois V8, depois V12 e inspirou a Yamaha para equipar um Volvo
A outra derivação improvável e discreta feita pela Ford tem a ver com o Duratec, a Porsche e a Aston Martin. Antes que você pense em dizer que seu Focus tem motor de Aston ou Porsche, contudo, saiba que o motor que conhecemos como Duratec no Brasil não é realmente um Duratec e nem mesmo um Ford.
O motor que chamamos de Duratec é a versão Ford do motor Mazda L. Duratec é apenas seu nome comercial, derivado do verdadeiro motor Ford Duratec, que era um V6 de 2,5 litros criado nos anos 1990 pela Porsche para ser usado em todas as marcas da Ford na época — tanto nos EUA quanto na Europa.
Agora, antes de continuar, peço muita atenção para não se perder nos meandros criados pelo desenvolvimento do motor Duratec V6.
Esse motor foi desenvolvido pela Porsche, que vendeu o projeto à Ford e à Cosworth. Além de usá-lo em sua forma original, a Ford o desenvolveu ampliando seu deslocamento para 3 litros. Nessa configuração ele foi usado novamente pelas marcas da Ford, mas foi modificado pela Jaguar para se tornar o motor AJ-V6 dos anos 1990 — mas não o AJ-V6 que a Jag usou até alguns anos atrás (aquele V8 que pode ser um V6).
Além do V6 Jaguar, a Ford também enviou o Duratec V6 à Yamaha para desenvolver o motor V8 SHO, de 3,4 litros e 32 válvulas, que foi usado no Taurus SHO. Esse motor ainda deu origem ao projeto do V8 B444S da Volvo, que usa as mesmas dimensões básicas do SHO, embora tenha todo o restante muito diferente — do processo de formação do bloco até as características de construção.
Por úlitimo, se dá pra fazer um V8, dá pra fazer um V12 também, não? Aqui a Aston Martin entra na história: o antigo V12 de 5,9 litros, aspirado, foi feito pela Cosworth basicamente “unindo” dois blocos do Duratec V6. Evidentemente não eram blocos soldados ou parafusados, mas fundidos como se fossem dois V6 unidos e com mancais maiores.