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Car Culture

O nascimento, o auge e o declínio da cultura trucker dos EUA

No século 19, os cowboys eram figuras onipresentes nos Estados Unidos. Embora fossem, por definição, os trabalhadores responsáveis por cuidar do gado nas fazendas, eles faziam um pouco de tudo – e sua constante busca por um trabalho melhor, as longas viagens que eles faziam, acabaram tornando-os importantíssimos para a ocupação do território americano. Cowboys eram admirados pelas crianças, desejados pelas mulheres, e olhados com um misto de inveja e desaprovação das pessoas que optavam por serviços mais comuns, cuidando da colheita ou vendendo coisas nas mercearias.

Mas existe outro personagem cultural americano que, por um breve período, foi tão importante para a construção da sociedade americana moderna quanto os peregrinos foram para sua colonização e os cowboys para a expansão de seu território no Velho Oeste.

Os caminhoneiros surgiram assim que o primeiro caminhão colocou os pneus na primeira rodovia – e, como os trens antes deles, ajudaram a transportar matéria-prima e bens de consumo de costa a costa, norte a sul. O que demorou um pouco mais para aparecer foi a cultura dos caminhoneiros (ou trucker culture em inglês), que surgiu na virada dos anos 1940 e teve seu auge na década de 1970, quando os caminhoneiros eram vistos como símbolos de liberdade e rebeldia – caras que não se conformavam com a vida tediosa de um funcionário engravatado, trabalhando de segunda a sexta atrás de uma escrivaninha para enriquecer os bolsos de outras pessoas.

Kris Kristofferson em “Convoy” (1977)

Na época, os caminhoneiros eram considerados os cowboys do mundo moderno – heróis que simbolizavam força, independência e liberdade. As crianças se impressionavam com os caminhões e pediam para que eles buzinassem nas estradas. As mulheres viam neles figuras viris e desejáveis justamente por passarem tanto tempo longe de casa, sem família e sem raízes.

Foi em 1939 que a primeira manifestação cultural sobre caminhoneiros apareceu: uma música chamada “Truck Drivin’ Blues”, do artista country Cliff Burner. A canção foi composta especificamente para tocar em postos de gasolina, hotéis e restaurantes de beira de estrada e paradas de caminhão, e falava justamente sobre a vida itinerante dos caminhoneiros.

Foi a primeira de várias canções com esta temática a fazer sucesso nos Estados Unidos. Da mesma forma, o filme “Dentro da Noite” (They Drive by Night, 1940), que trazia o lendário Humphrey Bogart no papel de um caminhoneiro solitário tentando ganhar a vida nos EUA pós-Grande Depressão, ajudou a fomentar a imagem dos motoristas de caminhão como personagens à margem da sociedade que, em vez de se incomodarem com esta condição, a abraçavam e faziam dela seu estilo de vida.

Outras músicas e filmes sobre caminhoneiros fizeram com que esta noção se solidificasse no imaginário popular dos EUA. Na década de 1950, eles eram conhecidos como “cavaleiros do asfalto” – pois, assim como os cavaleiros errantes da era medieval, os caminhoneiros também tinham fama de parar para ajudar a qualquer pessoa que parecesse estar em apuros na estrada, sem pedir nada em troca, e depois seguir viagem. Era como se o caminhoneiro fosse o oposto do infeliz funcionário de escritório que via a vida passar diante de seus olhos, deprimido e desmotivado.

Este processo seguiu ao longo dos anos 1960, com cada vez mais obras de ficção retratando a vida dos caminhoneiros – músicas como “Six Days on the Road” (lançada pela SUN Records, a mesma gravadora de Elvis Presley), de Dave Dudley, que ficou famosa por capturar perfeitamente o senso de solidão e aventura da profissão de caminhoneiro, ajudaram a cimentar ainda mais a imagem dos motoristas de caminhão.

A imagem não-conformista e rebelde dos caminhoneiros era cultivada por eles próprios, talvez até de forma inconsciente. O uso do rádio PX para comunicação entre caminhoneiros, para informar os colegas de acidentes, bloqueios na estrada e blitze, era um dos motivos para isto – bem como o fato de os caminhoneiros trabalharem como queriam e no ritmo que achavam melhor, pois não havia como fiscalizar paradas e rotas. Mesmo quando as empresas de transporte tentravam instalar tacógrafos e outras medidas para tentar controlar seus motoristas, não demorava muito para que os sistemas fossem sabotados e eles tivessem sua liberdade restaurada.

O longo da década de 1970, um subgênero da música country cujas letras tratavam exclusivamente do estilo de vida dos caminhoneiros. Uma delas, “Convoy”, de C.W. McCall – que conta a história de um bando de caminhoneiros que usa o rádio PX para escapar de radares de velocidade e cabines de pedágio – até virou filme em 1975, com o cantor Kris Kristofferson no papel principal.

Mas Convoy, o filme, foi só uma das películas sobre caminhoneiros que fizeram sucesso nos anos 1970. Vários outras produções se aproveitaram desta moda, como “O Comboio da Carga Pesada” (Breaker! Breaker!, de 1977, estrelando Chuck Norris; e até mesmo o clássico “Agarra-me se Puderes”, que mesmo no Brasil é mais conhecido pelo título original Smokey and the Bandit, com Burt Reynolds.

Estes filmes retratavam bem não apenas a cultura dos caminhoneiro, mas também sua estética e seus hábitos – como os chapéus de cowboy, as camisas xadrez e o gosto por bebida, cigarros e mulheres. Tudo isto contribuía ainda mais para a percepção dos caminhoneiros como cowboys do século 20.

Naquela época, o trabalho de caminhoneiro era o mais bem pago dos chamados empregos de colarinho azul – em oposição aos cargos corporativos de colarinho branco. Parte disto se deve ao fato de os caminhoneiros, de fato, terem sido uma comunidade unida por um senso de igualdade e camaradagem, dando origem à criação de sindicatos que garantiam estabilidade, reajustes salariais regulares e outros benefícios.

Mas esta era de ouro não durou para sempre. O ponto de virada voi 1979, ano da crise de energia causada pela redução na produção petrolífera no Oriente Médio. A escassez de petróleo causou um efeito dominó que trouxe uma queda na demanda pelos transportes rodoviários, seguida da redução no pagamento pelo trabalho dos caminhoneiros e do fechamento de diversas empresas. Sindicatos foram desfeitos, empresas menores que ofereciam serviços a baixo custo – e naturalmente, pagamentos menores – proliferaram, e glamourização da vida na estrada desapareceu muito mais rápido do que veio. Ganhando menos e trabalhando mais, os motoristas de caminhão continuavam importantes. Mas eram trabalhadores braçais como qualquer outro, aos olhos do público.

Se tivesse parado por aí, esta matéria acabaria agora. Contudo, a desvalorização de seu trabalho levou alguns caminhoneiros a envolverem-se no submundo do crime organizado, tornando-se motoristas de fuga, contrabandistas ou transportadores de substâncias ilegais.

E isto também afetou a forma como os caminhoneiros eram retratados pela mídia. O truck driving country deixou o mainstream e tornou-se mais um entre vários gêneros musicais que as pessoas escutam para lembrar de uma época querida que ficou para trás. Os filmes que colocavam os caminhoneiros no papel principal pararam de ser produzidos, e o cinema passou a mostrar os caminhoneiros como personagens perturbados, serial killers, maníacos obsessivos e toda sorte de seres humanos com desvios graves de caráter. “O Comboio do Terror” (Maximum Overdrive, 1986) ia além de colocava os próprios caminhões como vilões – a história é baseada na obra de Stephen King e retrata um evento catastrófico no qual um cometa passa por perto da Terra e faz com que todas as máquinas ganhem vida. Os caminhões se rebelam e começam a matar todas as pessoas.

Apesar dos esforços da Associação Americana de Caminhoneiros para melhorar a imagem de seus membros, realizando eventos de caridade e campanhas publicitárias, esta imagem negativa continuou a ser explorada ocasionalmente – em filmes mais modernos, como “Perseguição” (Joy Ride, 2001), com Paul Walker, Steve Zahn e Leelee Sobieski. O filme retrata o caminhoneiro Rusty Nail (“Prego Enferrujado”) como um homem extremamente perturbado que persegue e tenta matar os protagonistas depois de levar um trote pelo rádio PX.

Não foi, claro, uma cruzada contra o caminhoneiro – esta mudança em sua percepção marcou o fim de um grande fenômeno e, como consequência, o declínio foi amplificado. Ou, como se diz, “quanto maior a altura, maior o tombo.” Mas, como qualquer fenômeno cultural, os dias de glória dos caminhoneiros nos EUA ainda são lembrados com carinho por quem viveu aquela época – uma geração de idade já avançada, saudosista, e também os que se interessam pelas tendências culturais do passado. As músicas, filmes e lembranças continuarão existindo para quem quiser conhecer esta fase intrigante da cultura americana.