No último final de semana ocorreu algo histórico para a Nascar: pela primeira vez em mais de 50 anos a categoria principal da competição, a Cup Series, teve uma corrida realizada em um oval de terra – ou dirt track em inglês.
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A última vez em que os carros da Nascar Cup Series se sujaram de terra aconteceu em 1970. Depois disto, por questões de segurança, as corridas na terra foram acontecendo com cada vez menos frequência, sempre entre as categorias menores. Com isto, obviamente rolava certo saudosismo nos fãs, especialmente os das antigas. Mas a saudade foi saciada no oval de Bristol Motor Speedway, no estado americano do Tennessee. Foi a Food City Dirt Race, ou “Dirt Weekend”, e o evento fez tanto sucesso que a Nascar já confirmou seu retorno em 2022.
Construído em 1960, o oval de Bristol é uma pista curta, com apenas 858 metros de extensão e a sétima maior arquibancada entre os autódromos de todo o mundo – cabem 162.000 espectadores. Por conta da pandemia, apenas uma fração dos lugares foram ocupados, mas os presentes puderam assistir um verdadeiro retorno às origens por parte da Nascar.
Para isto, já no dia 7 de janeiro – três meses antes da data marcada para a corrida – começou o processo de conversão. A superfície de concreto de Bristol foi coberta com 30.000 toneladas de terra. Dá uns 2.300 caminhões.
E não pense que foi só sair cavando por aí e levar qualquer tipo de terra para a pista. A organização da corrida realizou testes com amostras de 20 locações diferentes para determinar o melhor tipo de terra – o que oferecesse uma superfície estável, lidasse bem com a chuva e não acelerasse o desgaste dos pneus. Idealmente, a pista seria capaz de reter umidade e não levantasse muita poeira. Por sorte, Bristol já foi convertida em oval de terra outras vezes e, com isto, parte do solo empregado antes pode ser reaproveitada. Antes de tudo, porém, foi depositada uma camada de serragem sobre toda a extensão da pista, para isolar o concreto e facilitar a limpeza. A serragem também foi usada para reduzir a inclinação das curvas do oval de 28° para 19°.
Mesmo com o solo ideal, porém, a corrida foi adiada do domingo (28) para a segunda-feira por causa das fortes chuvas previstas para aquele dia – qualquer dano mais severo à integridade do solo exigiria tempo para a restauração.
Todo este trabalho foi realizado, e a Nascar voltou a colocar a Cup Series para correr na terra, por um motivo. A Nascar queria acenar com carinho aos fãs de antigamente, que lembram das corridas na terra realizadas antes de 1970; e também aos saudosistas que podem não ter vivido a era dos dirt weekends, mas conhece a história da Nascar e acha que a categoria mudou demais.
A Nascar começou, ora, nos ovais de terra. A categoria só existe por causa dos traficantes de bebidas espalhados pelos Estados Unidos na época da Lei Seca, que proibiu a venda de álcool em todo o território americano entre 1920 e 1933. Quando não estavam levando moonshine de um canto a outro, os contrabandistas usavam seus carros para disputar corridas em ovais de terra improvisados. Havia dezenas deles espalhados pelos EUA, e eles logo começaram a atrair público. O que, inevitavelmente, transformou aquelas corridas em um esporte a motor organizado.
Em 1948, quando Bill France Sr. fundou a National Association for Stock Car Auto Racing, a sede foi instalada perto do circuito de Daytona Beach usava parte das vias de asfalto perto da praia e também um trecho de 3,2 km sobre a areia da praia. Na primeira temporada, todas as 52 corridas foram disputadas em ovais de terra. Quando a Cup Series foi disputada pela primeira vez, em 1949, sete dos oito ovais que receberam corridas eram de terra. No total, 489 etapas da Nascar foram disputadas na terra entre 1948 e 1970.
À medida em que novos ovais de asfalto e concreto foram construídos, porém, o número foi diminuindo. Em 1970, o último ano das provas de terra na Cup Series, foram apenas três: duas no oval de meia-milha de Columbia Speedway, na Carolina do Sul; e a última delas em Raleigh, na Carolina do Norte, no oval de uma milha usado em corridas de cavalos. Richard Petty venceu a última corrida.
Petty já disse que, em sua concepção, um circuito de terra representa um desafio muito maior, e faz com que a habilidade do piloto para lidar com a falta de aderência e as imperfeições do piso faz mais diferença no resultado de uma corrida. E ele tem boas lembranças.
“Era divertido demais. No asfalto sempre há aquele mesmo traçado, talvez no meio, talvez mais por fora. Mas na terra você podia ir para qualquer lugar na pista que fosse o mais rápido. Por fora, no meio, bem no fim da inclinação”, disse Petty em 2013 ao Nascar.com. “Era mais desafiador. O melhor era mesmo correr na terra.”
Curiosamente, Richard Petty foi um dos que se pronunciaram contra a conversão de Bristol em um oval de terra temporário. Em outubro de 2020, quando a corrida já estava confirmada, Petty chamou as corridas na terra de “anti-profissionais”.
“Acho que estou olhando para a situação de uma perspectiva ultrapassada, porque passamos anos e anos tentando nos tornar um esporte profissional. Anos e anos tentando abandonar aquele estigma”, Petty declarou ao site Autoweek. “Mas corridas na terra não são profissionais, então é como se a gente estivesse retrocedendo. Seria como levar um time profissional de futebol para jogar no campo de um colégio.”
Petty não negou que o espetáculo pudesse ser divertido, todavia. “Acho que vai ser um dia empolgante em Bristol. Pode ser só mais um maneirismo. Pode ser o que a Nascar precisa para manter a base de fãs crescendo. Mas não vai ser como a corrida em Raleigh. Naquela vez, tinha buracos enormes na pista e era difícil, você precisava desviar deles. Hoje os ovais de terra viram pistas de asfalto; é só dar uma volta nelas para que virem pistas de asfalto liso. Mas os carros vão andar de lado nas curvas, e é isso que o povo quer ver.”
À parte a indisposição de Richard Petty, a corrida em Raleigh foi mesmo interessante – o povo realmente queria ver os carros andando de lado nas curvas, e não estranharemos se novas corridas de terra forem adicionadas ao calendário nos próximos anos.