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Car Culture

O piloto negro que mudou a cultura com carros de arrancada

Nos anos 1960 os EUA estavam realmente em chamas com as tensões raciais por todo o país. Foi o auge de um caos social iniciado nas décadas anteriores por leis de segregação racial, que motivaram a migração da população negra para outras regiões supostamente mais tolerantes, como o meio-oeste e o noroeste, mas que apresentaram forte resistência a essa migração em massa. Havia, além das leis de segregação, exploração comercial da população negra, usando o racismo como ferramenta.

Em Los Angeles, por exemplo, havia restrições legais de venda e aluguel de imóveis para determinados grupos étnicos — hispânicos, asiáticos e negros, mais especificamente — em alguns bairros da cidade. Nos anos 1940, estima-se que 95% das casas da cidade tinham alguma variação destas restrições. Era um claro problema social que começou a ser resolvido pela proibição destas leis no setor imobiliário. O problema é que as leis são apenas consequência da cultura local, e não o contrário. Não se muda a cultura derrubando uma lei.

Na prática, o que aconteceu foi a marginalização e o isolamento da população negra e demais grupos étnicos diferentes do que os americanos chamam (equivocadamente) de “caucasiano”. Os negros passaram a poder alugar casas em bairros brancos, mas eles não eram bem-vistos ou aceitos pelos vizinhos.

O preconceito racial era forte a ponto de desvalorizar casas vizinhas a famílias negras. Isso foi até mesmo explorado pelo mercado imobiliário, em uma prática conhecida como “blockbusting” – algo como “arrasa-quarteirão”. Os especuladores imobiliários alugavam ou vendiam casas para famílias negras em vizinhanças predominantemente brancas para desvalorizar as casas, comprá-las a preço baixo e revendê-las a preços acima do mercado para as famílias negras.

É claro que a divisão social em grupos não tem como dar certo. Cultura é um conjunto de práticas comuns que beneficiam um grupo social. Quando se segrega esse grupo em grupos menores, não há práticas comuns a eles, resultando em um forte choque cultural.

E esse choque cultural explodiu na virada dos anos 1950 para os anos 1960, quando os movimentos civis americanos se fortaleceram em busca de direitos iguais para os cidadãos americanos. Os anos 1960, em especial, foram marcados por esta tensão, que também resultou em uma série de revoltas populares em todos os EUA. Uma delas, ocorrida em Los Angeles durante agosto de 1965, durou seis dias e ajudou a dar origem a um improvável clube de corridas de rua estimulado pela própria polícia, mas idealizado por um piloto chamado “Big Willie” Robinson.

Big Willie era um daqueles migrantes negros que se estabeleceram em Los Angeles vindo do sul dos EUA. Ele era o mais velho de cinco filhos de uma família originalmente de Nova Orleans, no estado sulista Louisiana. Sua realidade era diferente da maioria dos jovens negros da região. Sua família era bem estruturada financeiramente, e ele teve todas as oportunidades que os jovens americanos brancos poderiam ter, incluindo a possibilidade de cursar uma faculdade e ganhar um carro de presente dos pais.

Mas… a realidade da época não se importava com a condição econômica de Big Willie. Ele era negro. Um negro da classe média, mas ainda um negro. Foi por isso que, certo dia, ao sair da aula na Universidade Estadual da Louisiana, ele encontrou seu Oldsmobile 98 1953 vandalizado. Um grupo de estudantes racistas contrários à presença de negros na instituição, furaram os pneus e quebraram os faróis e vidros do carro.

Nova Orleans estava ficando perigosa demais, mesmo para um gigante como Big Willie — que também era um fisiculturista de  1,98 m e 130 kg. Foi assim que ele acabou mudando-se para Los Angeles, visando continuar seus estudos na UCLA, o campus de Los Angeles da Universidade da Califórnia. Logo após a mudança, seus pais se separaram e ele acabou indo trabalhar em uma oficina de funilaria para se bancar na Califórnia. E foi ali que se envolveu com as corridas de rua.

Big Willie acabou convocado para a guerra do Vietnã, mas acabou dispensado por problemas médicos. Ao retornar para Los Angeles, ele pôde pegar seu carro e voltar a disputar os rachas pelas ruas inflamadas de Los Angeles. Não demorou para que ele ganhasse notoriedade entre os corredores.

Àquela altura, contudo, a cidade já se encontrava na situação narrada no início desta história. Segregação nos bairros, exploração imobiliária, tensão racial por todos os lados e revoltas populares eram frequentes. Uma delas, a revolta de Watts (aquela de seis dias em agosto de 1965), ganhou uma enorme proporção depois que a polícia parou um motorista negro que dirigia bêbado e, ao tentar prendê-lo, acabou dando início a uma briga com a família do motorista, que tentou impedir a prisão. Com a tensão em seu auge, as versões sobre o ocorrido começaram a divergir da realidade e uma grande revolta se iniciou.

Big Willie mudara para Los Angeles justamente para evitar esse tipo de problema. Mas àquela altura ficou claro que ele não escaparia do problema. Seria preciso enfrentá-lo.

Um jovem negro de quase dois metros de altura não conseguiria se destacar na cena de corridas de rua sem chamar a atenção dos tiras. Ainda que a polícia de Los Angeles estivesse ocupada tentando conter as revoltas populares, eles arrumaram um tempo para se infiltrar nas gangues e descobrir que o grande organizador das corridas era Big Willie.

Com uma educação acima da média e uma base familiar sólida, Big Willie convenceu a polícia de que as corridas de rua eram algo positivo para aliviar a tensão racial, pois elas integravam as diversas etnias locais e serviam de distração para os jovens. Para ele, “quem está acelerando, não está matando” — uma referência nua e crua às mortes resultantes das revoltas populares. A revolta de Watts, por exemplo, deixou nada menos que 34 mortos e mais de 1.000 feridos.

E foi assim que, em 1968, em parceria com a polícia de Los Angeles, Big Willie criou a “International and National Brotherhood of Street Racers”, nome que pode ser traduzido como “Irmandade Nacional e Internacional dos Corredores de Rua”. O objetivo era promover provas de arrancada abertas a qualquer pessoa, independentemente de cor, credo ou classe social. O próprio Willie, aliás, era casado com uma descendente de japoneses chamada Tomiko, que o acompanhava tanto na academia quanto nas oficinas e pistas.

“Preto, branco, amarelo, marrom, skinheads, nazistas, muçulmanos, pegamos todos. Eles estão todos aqui na pista e estão se falando. E quando começam a se falar, eles começam a gostar uns dos outros. E uma vez que eles começam a se gostar, eles esquecem o ódio.” — Big Willie em uma entrevista à revista Sports Illustrated em 1994.

A Irmandade deu certo e começou a atrair cada vez mais corredores no esquema “run what you brung” (algo como “correr com o que tiver”). O sucesso o colocou nas revistas automobilísticas e levou sua mensagem para todos os cantos do país e abriu portas para Big Willie, que acabou fazendo amizade com Paul Newman e com o produtor de cinema Gary Kurtz, responsável pelo filme “Corrida Sem Fim” (Two Lane Blacktop, 1971), “Loucuras de Verão” (American Graffiti, 1973) e “Guerra nas Estrelas” (Star Wars, 1977).

Ele chegou a fazer uma ponta em “Corrida Sem Fim” e, dizem, foi convidado para interpretar Darth Vader, mas gentilmente recusou o convite — embora tenha conseguido uma ajuda do próprio Darth Vader em seus eventos.

Em seu auge, o grupo chegou a agrupar nada menos que 80.000 membros em 38 estados dos EUA e nove países e teve até mesmo sua própria pista de arrancada, a Brotherhood Raceway Park, inaugurada em 1974 e ativa até 1994. Algo que ajudou muito Big Willie, foi a amizade com Tom Bradley, o primeiro prefeito negro de Los Angeles, e com Otis Chandler,  na época editor do jornal LA Times, que o ajudou a organizar eventos, colaborou com a divulgação no jornal e frequentemente aparecia para as corridas.

O prefeito, Tomiko e Willie

A morte de Otis, em 2006, contudo, causou um baque em Big Willie, mas ele manteve-se na ativa por mais alguns anos até outra perda lhe tirar o chão de vez: sua esposa, Tomiko, morreu de câncer em 2010. Os dois eram inseparáveis, e Tomiko atuava como sua mecânica assistente, ajudando-o a preparar o motor de seu Dodge Charger Daytona. Não por acaso eles ficaram conhecidos como “The Duke and Duchess Daytona”, como era conhecido.

Após a morte da esposa, Big Willie decidiu disputar uma última corrida antes de aposentar-se, e sua saúde foi definhando até 25 de maio de 2012, quando sucumbiu às complicações de seus problemas circulatórios, pouco antes do seu aniversário de 70 anos.

Sua vida certamente daria um filme, mas de onde você acha que “Velozes e Furiosos” tirou a ideia de misturar negros, asiáticos, brancos, homens e mulheres em uma gangue de corridas de rua pelas noites de Los Angeles?

Muito mais que combater o racismo, Big Willie mudou a cultura para sempre. Não se muda a cultura criando ou derrubando uma lei, afinal…


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