Em 2010, a Polícia Federal apreendeu dois carros bastante desejáveis pelos entusiastas: um Porsche Carrera GT e um Lamborghini Murciélago. Na época, ambos ainda eram relativamente contemporâneos e representavam o auge da engenharia de suas respectivas fabricantes. As coisas eram bem diferentes naquele tempo: o Jalopnik Brasil estava começando, ninguém falava em carros híbridos e elétricos dominando a indústria, achávamos que veículos semi-autônomos ainda eram uma realidade distante e fóruns de internet ainda eram muito populares. E o dólar custava menos de R$ 2, o que favorecia as importadoras independentes.
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Falamos sobre estes dois carros em 2016, decifrando boa parte de sua história com a ajuda da comunidade de entusiastas – membros dos grupos Exotics Brazil e Carros Exóticos MT nos forneceram alguns documentos relacionados aos carros. Mas o que aconteceu com eles de lá para cá?
Vamos refrescar um pouco a sua memória. Quando falamos sobre os carros pela primeira vez, fazia mais de seis anos que eles haviam sido apreendidos pela Polícia Federal. Alguém havia tentado importá-los junto com outros modelos, em um lote que também incluía um Chevrolet Corvette fabricado em 2008, um Toyota FJ Cruiser, dois Porsche 911 997, um Ford Mustang GT conversível e dois SUVs Infiniti. O catch: na época da importação, todos os carros foram declarados como zero-quilômetro – e, como você sabe, só podem entrar no Brasil carros novos e clássicos com mais de 30 anos de fabricação. Isto é, legalmente.
Evidentemente, foram o Porsche Carrera GT e o Lamborghini Murciélago os carros que mais chamaram a atenção da mídia – o que inclui a gente, claro – e da Receita Federal. Inicialmente, pelo fato de ambos terem sido importados alguns anos depois de produzidos. E, depois, pela falta de informações claras a respeito da negociação. Conforme falamos em 2016, ambos eram pouquíssimo rodados – 103 km no Porsche e 332 km no Lamborghini –, mas não o suficiente para serem considerados novos. E ainda havia outras questões:
No caso do Porsche Carrera GT, apesar da baixíssima quilometragem (na verdade, trata-se de um dos exemplares mais novos de que se tem conhecimento) e de uma vistoria que constatou o estado impecável do veículo, havia em sua documentação outros seis registros de propriedade — ou seja, seis donos anteriores. Para a Receita, por mais novo que um carro esteja, o que classifica um carro como novo não é a quilometragem, tampouco o estado de conservação, mas sim as condições jurídicas de compra e venda.
No caso do Lamborghini Murciélag, a questão foi outra: o carro também é pouquíssimo rodado e, aparentemente, não teve donos anteriores. No entanto, o importador não pode apresentar dois documentos que comprovariam que o carro era novo: o Certificate of Origin for a Vehicle (Certificado de Origem para Veículos), que é emitido na primeira transferência do veículo; e o Certificate of Title, documento equivalente ao Renavam no Brasil, no qual constaria a informação que o carro não teve nenhum dono anterior.
O resultado disto foi a apreensão em 2010 – o que nos leva à conclusão lógica que que os outros automóveis apreendidos estavam em condições semelhantes. A partir daí, deu-se início a um processo judicial para viabilizar o leilão dos carros pela Receita Federal. Os trâmites administrativos se desenrolaram até 2012, quando enfim foi marcado o leilão e os lances mínimos foram estabelecidos: R$ 371.000 pelo Lamborghini Murciélago e R$ 187.000 pelo Porsche Carrera GT.
Parecia uma excelente oportunidade para quem quisesse colocar um ou dois carros exóticos na garagem por um preço bem abaixo do mercado – exceto que o leilão jamais aconteceu: a empresa responsável pela importação, que não teve seu nome revelado, recorreu da decisão.
Isto levou a outro processo judicial que correu por mais dois anos. Em 2014 foi anunciada a sentença: sem que a documentação de importação pudesse ser apresentada, a situação dos carros em solo brasileiro foi mesmo definida como ilegal. E todos eles continuaram presos no pátio da Receita Federal em Cuiabá (MT).
Na época, dissemos que a situação dos carros era incerta, e que o leilão ainda demoraria algum tempo para acontecer – entre alguns meses e alguns anos.
Foi exatamente este o caso: apenas em maio de 2019 foi que a Receita Federal divulgou uma data para o leilão: o dia 18 de junho. Também foram anunciados novos lances mínimos: R$ 147.536 para o Carrera GT, R$ 249.041 para o Murciélago, e R$ 61.983 para o Corvette. Três pechinchas, hein?
No meio-tempo, outros dados a respeito dos carros foram levantados. Soube-se, por exemplo, que a revenda que negociou o Porsche Carrera GT, o Lamborghini Murciélago e o Chevrolet Corvette ficava na Flórida, e que os três eram o que se chama nos EUA de salvage cars – carros recuperados de seguradoras, geralmente após envolver-se em acidentes ou apresentarem problemas graves, cujo valor de indenização ao proprietário era menor que o valor do conserto. Estes carros são vendidos normalmente nos Estados Unidos – o problema é que um veículo nesta situação simplesmente não pode entrar no Brasil.
Outra reviravolta, porém, não tardaria a ocorrer. Como reportou o site TDS Leilões, o leilão não ocorreu no dia 18 de junho. O motivo: uma queda no servidor de internet para o sistema do governo do Mato Grosso. A Receita Federal apressou-se em remarcar o leilão para o dia seguinte, 19 de junho.
O leilão, de fato, ocorreu – mas com uma surpresa: nem o Porsche Carrera GT, nem o Lamborghini Murciélago, e nem o Chevrolet Corvette estavam entre os lotes. O site da Receita Federal exibia a seguinte mensagem:
“Em cumprimento de decisão judicial, bem como orientação do Serviço de Controle e Acompanhamento Tributário e da Procuradoria da Fazenda Nacional, os veículos dos Lotes 4, 5 e 6, foram excluídos do Leilão Eletrônico 130100/3/2019.”
No mínimo curioso – os três carros mais interessantes, e que certamente estavam na mira de muitos colecionadores, foram excluídos do leilão.
Paralelamente, algumas informações sobre o Porsche Carrera GT foram divulgadas. O site da Receita Federal dizia que o carro só estava com resquícios de cola na carroceria, ocasionados pela remoção da película – mesmo caso do Lamborghini.
Contudo, consultas no site Carfax feitas pelo Jornal de Brasília revelaram outra história: além dos seis proprietários anteriores, uma vistoria datada de 2007 e validada pelo DMV (Department of Motor Vehicles, equivalente ao DETRAN no Brasil) determinou que o carro tinha “problemas severos”, sem identificar quais.
Além disso, a quilometragem informada divergia do hodômetro – consta que o carro rodou pelo menos 901 milhas (cerca de 1.450 km). Nada impede que o Lamborghini e o Corvette apresentem questões semelhantes, que colocam em xeque o pouco que se sabe a seu respeito.
O resumo da ópera, porém, é simples: os três carros continuam no pátio da Receita Federal em Cuiabá, pegando poeira e, provavelmente, sem funcionar. Nos resta formular hipóteses – alguém pode estar de olho neles e garantindo que eles não sejam leiloados; ou um novo recurso pode ter sido aberto pela importadora a fim de reaver os veículos, como já ocorreu em 2012. Em todo caso, conhecendo o ritmo da Justiça brasileira, novos desdobramentos do caso ainda podem demorar para acontecer.
Sugestão do FlatOuter Heitor Gilberti