Tudo parecia normal nas primeiras horas daquela manhã de sábado, 11 de junho de 1955. E esse foi o primeiro sinal de que algo terrível estava para acontecer.
O céu limpo. As arquibancadas cheias. Os carros alinhados de um lado da pista, pilotos alinhados no outro lado, apenas esperando o sinal de início da contagem de 24 horas. Estavam todos ali: os homens, as máquinas, as rivalidades. Jaguar contra Mercedes contra Ferrari contra Maserati. Moss, Fangio, Hawthorn, Castellotti. O silêncio antes da largada era uma tensão densa como óleo de motor — e ninguém percebia que ele escondia mais do que expectativa. Escondia destino.
Pierre Levegh, aos 49 anos, corria como se tivesse algo a provar. Talvez a si mesmo. Talvez à Mercedes-Benz, que lhe dera um lugar no cockpit do 300 SLR, a máquina mais avançada já vista em Le Mans até então. Ele conhecia aquele circuito como poucos, e sabia que nada ali era perdoável.
Na volta 35, a normalidade se rompeu. E tudo que veio depois não foi uma tragédia. Foi uma implosão. Um ruído surdo no tempo — daqueles que deixam cicatrizes invisíveis por gerações.
O piloto que correu 24 horas sozinho
Três anos antes, a Mercedes escolhera o circuito de La Sarthe como palco principal de seu retorno às pistas após a Segunda Guerra. A Mercedes já era uma potência do automobilismo nos anos 1930, com suas Flechas de Prata dominando as corridas de Grand Prix. Mas Le Mans oferecia algo diferente: apenas uma corrida. Uma oportunidade. Um risco calculado.
Foi nesse cenário que o francês Pierre Levegh quase venceu a corrida — pilotando sozinho! Nascido em 22 de dezembro de 1905, era um talentoso jogador de hóquei e tênis que chegou até a disputar campeonatos mundiais. Contudo, ele ficou mais famoso como piloto e, em 1952, já tinha bastante experiência ao volante, tendo disputado quatro edições das 24 Horas de Le Mans pela Talbot-Lago entre 1951 e 1954.

A corrida de 1952 poderia ter sido o auge da carreira de Levegh, pois ele decidiu que realizaria um feito incrível: pilotaria seu Talbot-Lago T26 GS Spider, equipado com um seis-em-linha de 4,5 litros, ao longo de toda a corrida – 24 horas ininterruptas atrás do volante, sem recorrer ao piloto reserva.
O mais impressionante é que Levegh quase venceu aquela corrida. Ele estava na liderança, mas foi forçado a abandonar a prova ao final da 23ª hora, com quatro voltas de vantagem sobre os demais. A causa do incidente não foi totalmente esclarecida até hoje, sendo a versão mais aceita diz que o carro teve um problema no virabrequim.
Contudo, há quem acredite que a fadiga depois de 23 horas dirigindo sem parar tenham levado Levegh a errar uma troca de marcha, quebrando uma das varetas do câmbio e impossibilitando o carro de continuar a disputa. Conta a história que Levegh recusou-se a deixar o carro nas mãos da equipe, dizendo que ele era o único que conseguiria levá-lo embora dirigindo. A Mercedes-Benz venceu aquela corrida com o 300SL, mas não teria sido assim se Levegh tivesse chegado ao fim. Sua determinação chamou a atenção dos alemães, que a partir dali começaram a persuadi-lo a sair da Talbot e fechar um contrato com eles.

Não foi fácil – Levegh ainda resistiu por três anos na Talbot antes de ceder e juntar-se à Mercedes-Benz. Nunca ficará claro, porém, se ele foi vencido pelo cansaço ou se ficou empolgado com o novo carro que estreou em 1955, o Mercedes-Benz 300SLR.
O carro era digno de sua fama: baseado no monoposto W196 da Fórmula 1, que dominara a temporada de 1954, ele tinha chassi tubular de alumínio, motor oito-em-linha de 2,5 litros com injeção direta da Bosch e carroceria de Elektron — uma liga de magnésio ultraleve e inflamável. Era o ápice da engenharia alemã.
Para as 24 Horas de Le Mans de 1955, a Mercedes decidiu aproveitar a receita vencedora do W196 e transformou o monoposto em um carro de corrida de dois lugares. No mais, todo o resto foi aproveitado sem modificações – ou quase: o motor teve o diâmetro dos cilindros e o curso dos pistões ampliados, aumentando o deslocamento de 2,5 para três litros ou, mais especificamente, de 2.496,87 para 2.981,7 cm³. A potência aumentou para 310 cv, e colocava o Mercedes no mais alto nível entre os carros de endurance, dando a ele a capacidade de superar os 300 km/h na reta Hunaudières, também conhecida como Mulsanne.
No ano de 1955 a concorrência prometia ser acirrada. Entre os favoritos, estava o Jaguar D-Type, que já havia conseguido um bom desempenho no ano anterior, quando chegou em segundo lugar apenas dois minutos atrás da Ferrari 375 Plus vencedora nas 24 Horas de Le Mans de 1954.
A Jaguar era a rival mais perigosa. O D-Type, com carroceria monocoque de alumínio, freios a disco e um seis-em-linha de 3,4 litros com 245 cv, havia chegado em segundo lugar em 1954, e estava mais veloz e leve em 1955.

Para a corrida de 1955, um dos 300SLR inscritos seria pilotado por Pierre Levegh, que revezaria o volante com o americano John Fitch. Outros dois carros seriam levados para o Circuito de La Sarthe: um deles seria guiado pelo argentino Juan Manuel Fangio e por Sir Stirling Moss e o outro, pelo francês André Simon e pelo alemão Karl Kling – uma seleção de pilotos experientes e talentosíssimos.
Destes, a maior aposta da Mercedes estava em Fangio, que iniciou uma disputa a tapa pela ponta com o principal nome da Jaguar, Mike Hawthorne, assim que a largada foi dada. Sem dúvida era uma corrida que prometia fortes emoções, mas ninguém estava preparado para o que aconteceria em menos de três horas.
Era a 35ª volta, e Hawthorn estava na ponta, seguido pelo retardatário Lance Macklin em seu Austin Healey 100 e por Levegh em seu Mercedes. Ao entrar na reta dos boxes, Hawthorn recebeu um sinal da equipe para parar e reabastecer. Além de ser ser equipado com um seis-em-linha de 3,4 litros e 245 cv, o D-Type era um carro muito leve, pesando apenas 840 kg graças à construção monocoque em alumínio, e era o único carro equipado com freios a disco – tecnologia de ponta em 1955, quando todos os outros carros usavam freios a tambor, incluindo o Austin-Healey e os Mercedes.
Assim, quando Hawthorn pisou com vigor nos freios a fim de entrar nos boxes, Macklin não conseguiu reduzir a velocidade com a mesma eficiência e viu-se forçado a realizar uma manobra evasiva, jogando o carro para a esquerda.
Foi nesse momento que Levegh, vindo em alta velocidade, apareceu.
Com visibilidade reduzida pela poeira levantada por Macklin, e sem espaço para frear ou desviar, Levegh acertou a traseira do Austin-Healey. O impacto catapultou o Mercedes-Benz 300 SLR sobre as barreiras de feno. O carro decolou, desintegrou-se no ar. O motor voou como um projétil sobre a multidão. E os pedaços da carroceria de Elektron, ao entrar em combustão, espalhou fogo como se o céu tivesse explodido. O que era tecnologia de ponta virou arma.
O Austin-Healey, severamente danificado, parou à beira da pista. O Mercedes-Benz de Fangio não foi atingido e passou direto, e o piloto argentino pensou ter visto um sinal de Levegh, dizendo para que se afastasse. Depois do acidente, Fangio costumava dizer que o colega de equipe salvou sua vida com um gesto.
Levegh foi atirado para fora do carro e morreu na hora, não resistindo aos ferimentos no crânio causados pelo impacto. Na época, os pilotos não usavam cintos de segurança, sob a alegação de que preferiam ser jogados para longe do que ficar presos nas ferragens de um carro em chamas.
Oficialmente, 84 pessoas foram mortas pelos destroços do carro e outras 120 ficaram feridas, mas relatos de testemunhas na época sugerem que o número de mortos e feridos foi maior. O vídeo abaixo, que pode ser chocante para alguns leitores, traz uma filmagem muito intensa do momento do acidente — é possível ver o capô sendo atirado como um frisbee e os destroços do carro caindo sobre a multidão.
A corrida não foi interrompida, de acordo com os registros oficiais, para evitar que o público restante evacuasse as arquibancadas e atrapalhasse o fluxo das equipes de salvamento. Enquanto isso, em uma reunião de emergência com todo o pessoal, a Mercedes-Benz decidiu deixar a prova apesar das reais chances de vitória de Fangio. Convidada pelos alemães a fazer o mesmo, a Jaguar declinou. Mike Hawthorn seguiu na liderança, e deu à Jaguar sua primeira vitória com o D-Type.
A Mercedes-Benz, por outro lado, decidiu que o melhor a fazer era abandonar o automobilismo por completo, colocando fim prematuro à carreira de um carro que tinha tudo para dominar as pistas ainda por alguns anos. Foi um hiato que levou três décadas para ser quebrado, quando em 1985 a Mercedes começou a fornecer motores para a Sauber no Campeonato Mundial de Endurance, o WSC.
A imprensa francesa, na época, criticou bastante a atitude da Jaguar em não abandonar a prova, e o próprio Mike Hawthorn declarou sentir culpa pelo ocorrido. Havia também quem dissesse que o responsável pela tragédia era Macklin, por sua manobra evasiva, e até mesmo Levegh por insistir em continuar pilotando com quase 50 anos de idade. Contudo, hoje as coisas estão mais claras, e o senso comum diz que não há culpados além das circunstâncias.
Colocar carros com uma diferença tão grande de potência e desempenho entre si é uma manobra naturalmente arriscada — especialmente na reta dos boxes, onde os carros desaceleravam bruscamente em meio a adversários a toda velocidade. A eficiência extra dos freios do Jaguar D-Type foi um agravante.
Na verdade, a disparidade entre o desempenho dos carros continua sendo a principal causa de acidentes nas 24 Horas de Le Mans, onde carros de turismo competem com protótipos muito mais potentes e velozes. Foi o que aconteceu em 2011, quando o Audi R18 TDI de Allan McNish acertou a Ferrari 458 Italia de Anthony Beltoise. Felizmente, tudo o que McNish perdeu foi a chance de vencer a corrida, porque a tecnologia mudou. Porque aprendemos com o passado — ainda que, muitas vezes, da pior maneira.