No início dos anos 1990, o Rio de Janeiro recebeu a Conferência das Nações Unidas sobre o Desenvolvimento e Meio Ambiente. O evento ficou conhecido como ECO-92 e colocou em pauta diversas questões sobre a preservação do meio-ambiente que, até então, eram secundárias e tratadas com menor atenção.
Entre as resoluções tomadas pelos 113 países que participaram da Conferência, estavam o consumo sustentável e a proteção de recursos naturais. Pela primeira vez a reciclagem entrou no vocabulário do dia-a-dia e o símbolo das setas em ciclo passou a estampar cada vez mais os rótulos dos produtos. Havia até programas e publicações infantis que ensinavam as crianças a fazer papel reciclado em casa. Foi uma grande lição sobre o processo de reciclagem, para quem tentou fazer.
Primeiro, porque criar uma coisa nova é sempre uma grande lição para as crianças. A noção de que é possível pegar diferentes materiais e juntá-los para criar outra coisa totalmente diferente. É por isso que crianças adoram acompanhar as mães e avós fazendo bolo — não é só pelo doce, mas pela transformação de farinha, ovos, leite e açúcar em algo tão vistoso e saboroso.
Mas há uma outra lição: a de que a reciclagem não é mágica, e sim um processo que exige recursos. A reciclagem do papel — ou seja: para fazer papel na cozinha de casa aos oito anos —, requer a trituração do papel no liquidificador, o que demanda energia elétrica. E também demanda a adição de água e amido de milho ou cola.
Essa visão mais ampla do processo de reciclagem é fundamental para se discutir a viabilidade da produção sustentável de carros elétricos. Um carro elétrico não é e nem deve ser uma ferramenta para simplesmente melhorar a qualidade do ar nas grandes cidades, mas um produto sustentável também em sua produção e descarte. E a reciclagem de seus componentes é fundamental não apenas para este objetivo, mas para a própria viabilidade do carro elétrico.
Recursos finitos
O petróleo é um recurso finito. Sabemos que as reservas não irão durar para sempre, por maiores que sejam. As previsões não são confiáveis; os mais pessimistas dizem que ele irá acabar em menos de 50 anos, mas esta mesma estimativa foi dada há 50 anos. As previsões mais realistas falam em mais de 100 anos de extração de petróleo. Daí a preocupação com o uso de recursos não-renováveis.
Cem anos é pouco tempo no recorte histórico da humanidade. Há 100 anos não havia, por exemplo, antibióticos. Sim: você pegava uma infecção e… boa sorte. O liquidificador também era novidade, assim como o rádio. Napoleão, Júlio César, Gengis Khan, Alexandre o Grande fizeram o que fizeram sem antibióticos. Nem liquidificador.
Como temos tão pouco tempo de petróleo, parece prudente mudar a matriz energética. E eletricidade pode ser gerada por fontes renováveis, diferentemente da gasolina — ao menos até agora. Com isso, a questão do abastecimento estaria resolvida.
Mas há uma outra questão sobre os recursos finitos que o carro elétrico não resolve. Seus motores e suas baterias têm uma altíssima demanda de minérios — cobre, lítio, níquel e cobalto, mais especificamente. E mesmo que as reservas sejam suficientes, há uma outra barreira que a indústria de elétricos precisa contornar: a extração e a reciclagem destes materiais.
A extração e a reciclagem – e a extração
O problema da matéria-prima já está acontecendo neste momento. Fabricantes de carros como a Stellantis e de baterias, como a americana SES, já reconhecem que a oferta de matéria-prima é o principal gargalo de viabilidade dos carros elétricos hoje e pelos próximos anos.
Carlos Tavares, CEO da Stellantis, disse recentemente à rede americana NBC que espera uma crise no fornecimento de baterias entre 2024 e 2025, seguida pelo desabastecimento de matérias-primas por volta de 2027 ou 2028 — a menos de 10 anos do banimento das vendas de carros novos a combustão interna na Europa e na Califórnia.
O dr. Hu ainda explica que o problema nem será a disponibilidade dos materiais, mas o tempo necessário para aumentar a escala de produção, pois a maioria das minas de lítio já têm sua extração vendida até 2026. Outras minas menores, ainda em construção, precisam passar pela prospecção, viabilidade, licenças ambientais e, por isso, ainda levará muitos anos até que comecem a operar. Isso significa que a oferta está sempre atrás da demanda.
Com a oferta sempre menor que a demanda, os preços sobem — colocando de forma simples. E com preços mais altos, o aumento da escala de produção é mais lento. Esse aumento da escala de produção é que poderia reduzir os preços e permitir mais investimentos na extração desta matéria-prima para equilibrar oferta e demanda. E não apenas isso: o aumento na escala também viabilizaria a reciclagem dos materiais dos carros e baterias em fim de vida útil.
A analogia do papel reciclado dos anos 1990 volta à cena aqui: para ter uma folha de papel reciclado feita em casa, era preciso ter papel usado, energia elétrica, liquidificador, cola e água. Era evidentemente mais caro do que ir até à papelaria e comprar uma resma ou um bloco de anotações com 50 folhas. E era mais caro porque era um processo de baixa escala. Se o mesmo processo rendesse dezenas ou centenas de folhas, ele se tornaria viável.
Com as matérias-primas dos carros elétricos ocorre o mesmo: é preciso ter uma quantidade grande de carros elétricos em circulação para ter uma quantidade grande de carros em fim de vida útil para, assim, abastecer a indústria da reciclagem. Neste exato momento estamos enfrentando este problema.
Os paineis fotovoltaicos, por exemplo, necessitam de silício para serem produzidos. O silício pode ser reciclado de paineis usados, mas somente se houver um volume mínimo para tornar a reciclagem economicamente viável. Sem isso, será necessário extrair mais silício em minas que levam longos anos para serem prospectadas, construídas e autorizadas a operar. E ainda mais alguns anos para ter uma escala que permita a redução de custos. Aqui entramos no círculo vicioso que preocupa os CEO e coloca em xeque a viabilidade do carro elétrico em curto prazo. Mas este não é o principal problema.
Recursos finitos, lembra?
Estes minerais são recursos finitos. Ou seja: um dia eles acabam. E mesmo que as reservas sejam imensas, como é o petróleo pré-sal brasileiro, sua extração pode ser tão complexa e dificultada a ponto de se tornar inviável economicamente. É por isso que a reciclagem é tão necessária para viabilizar o carro elétrico em escala global.
Sem a reciclagem, a demanda continuará não apenas maior que a oferta atual, mas também maior do que a reserva economicamente viável. Estima-se que em 35 anos a indústria consumo 90% das reservas de lítio e mais da metade das reservas de cobalto. Ou seja: para produzirmos carros elétricos no ritmo previsto e sem reciclagem, a extração precisará ser maior do que se pode extrair sem aumentar drasticamente o custo de extração. Sem contar que, à medida em que o fim das reservas se aproxima, o custo das matérias-primas tende a subir. Quanto?
Bem… a simples redução temporária na demanda por baterias pode fazê-las subir 22% até 2026 caso não haja volume suficiente para viabilizar economicamente a reciclagem dos materiais. Se chegarmos ao ponto de esgotamento das reservas, o que definirá o preço da matéria-prima será simplesmente o custo da reciclagem, que precisará ter uma alta margem para se tornar viável.
Só que… não é possível atender a demanda apenas reciclando a matéria-prima. O material reciclado precisa ser suplementado com material minerado. São processos complementares e não alternativos. E é daí que vem a necessidade de se escalar a produção da mineração: aumentar o volume de elétricos em circulação para que eles fomentem a reciclagem e, juntos, os processos viabilizem a eletrificação da frota global.
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