Pois bem: finalmente tivemos o encontro de Águas de Lindóia novamente. Depois de um longo e tenebroso inverno, o evento principal do antigomobilismo brasileiro aconteceu novamente na cidade, no feriado que acabou de acabar, que foi do dia 21 a 24 de abril.
Sim, o principal evento. Existem eventos mais sofisticados, e eventos diferenciados diversos; mas em nenhum lugar o movimento do carro antigo no Brasil é melhor representado do que em “Lindóia”. Do lixo ao luxo, todo mundo expõe, tenta vender ou quer comprar algo no evento; é o marco regulatório mercadológico, e que mede também a temperatura do interesse pelo automóvel antigo no país, a cada ano. Este ano, aparentemente, este interesse nunca esteve tão grande.
É uma verdadeira loucura, um frenesi: gente demais, espaço de menos. Comer significa horas em pé, e boa sorte na procura de mesas e cadeiras. Banheiros são escassos e com fila. O calor é de matar, a multidão é onipresente, e o sinal de celular desaparece. Hotéis superlotados, estacionamento escasso, caro e lotado. Mas ainda assim, nenhum de nós quer perder o acontecimento. Sofremos e nos cansamos, mas sempre é algo que, feitas as contas no final, nos coloca em contato direto e cru com este mundo. Encontramos gente, encontramos carros e coisas que só encontramos lá.
É um evento para quem realmente gosta, e não quer perder o contato com todas as facetas deste universo; das lojas de peças e quinquilharias diversas aos carros a venda. É um martírio, mas ao mesmo tempo é sensacional e deixa saudades.
No sábado toda a equipe do FlatOut estava junta, e foi uma incrível oportunidade de conversarmos com todos que nos acompanham; a todos vocês que estiveram lá, nosso obrigado.
Este ano, o clube destaque do evento foi o Alfa Romeo Clube. Várias homenagens aconteceram lembrando um de seus membros mais famosos, o saudoso Fabio Steinbruch, lembrando a seu falecimento precoce em um acidente de motocicleta — neste ano, em dezembro, se completarão dez anos de sua morte, o que pedia uma lembrança especial realmente. Por causa disso, o clube trouxe enorme quantidade de carros realmente especiais para o evento, que ocuparam o tradicional lugar de honra da exposição, bem no meio da praça Adhemar de Barros.
Por causa disso, vamos começar a série de matérias do evento esta semana justamente com eles: os mais incríveis Alfa Romeo expostos em Águas de Lindóia 2022.
Furia – FNM GT
Vamos começar, claro, com um carro que era justamente de Fabio Steinbruch, agora exposto por seu irmão, Leo. O Furia é também o vencedor do prêmio maior do evento, o “Best in Show 2022”, na categoria “Nacional”. Sim, é um Alfa Romeo Brasileiro.
O Brasil, bem se sabe, tem longa tradição de admiração e ligação com a Alfa Romeo. A FNM, a estatal Fábrica Nacional de Motores do bairro de Xerém, Duque de Caxias, no Rio de Janeiro, fabricava caminhões e automóveis Alfa Romeo sob licença aqui. O automóvel era o Alfa Romeo 2000, aqui chamado de FNM JK (depois FNM 2000 quando Juscelino Kubitschek saiu da cena política). Este carro evoluiria separadamente do seu irmão europeu por aqui: teve constantes aprimoramentos de mecânica e carroceria, como o TIMB (Turismo Internazionale Modello Brasile) em 1966, que previa a carroceria do novo FNM 2150 de 1969. Este apareceu já sob a tutela da Alfa Romeo, que comprou a FNM em 1968. Primeiro passo para que a mais nova evolução do FNM, o 2300 de 1974, se tornasse o primeiro carro com a marca Alfa Romeo a ser produzido no Brasil.
Pois bem, enquanto isso tudo acontecia em Xerém, por volta de 1970, Toni Bianco, o artesão das carrocerias em metal de competição mais famoso do Brasil, depois de fabricar os Fúria de competição nos anos 1960, pretendia produzir um carro GT em série, para uso nas ruas. Resolveu usar a mecânica completa do mais sofisticado carro nacional: a do FNM 2150.
Toni Bianco é um artesão do metal; constrói carrocerias inteiras em aço ou alumínio a partir de chapa plana, sem moldes, apenas com martelinho e solda. Essa era sua fama e habilidade. Para seu novo carro, porém, pretendia produzir a carroceria em fibra de vidro, para redução considerável de tempo de produção. O primeiro carro seria em chapa, feito por Toni artesanalmente, e depois, em fibra, molde retirado do primeiro carro. Mas o destino quis que o Furia-FNM GT 2150 não entrasse em produção seriada: o protótipo feito à mão por Toni é o único carro. Justamente este, restaurado pelo Fabio Steinbruch.
Não é a toa que mereceu o maior prêmio da exposição: um carro único, e com o pedigree variado e incrível: Toni Bianco, que o fez pessoalmente sozinho; a FNM e a Alfa Romeo; o resgate pela coleção do Fabio. Estar do lado dele é uma emoção incrível: não existe outro, quanta história importante ele viu acontecer.
Toni reduziu o entre-eixos do sedã FNM para 2500 mm; exatamente o entre-eixos da 2000 Spider italiana, que segundo ele tinha melhor dirigibilidade. O carro de produção deveria atingir 1100 kg de peso final, mas este protótipo de aço pesava o mesmo que o sedã: algo próximo de 1400 kg. O motor de duplo comando no cabeçote (que não é o mesmo da Giulia/GTV/Spider tipo 105, mais moderno), 2.131 cm³ e quatro cilindros em linha recebia leve preparação: mais taxa de compressão (9,5:1, alta para a gasolina da época), e dois Solex 42 duplos horizontais, para um total de 130 cv brutos a 5700 rpm. Prometia ser um grande GT nacional, um tipo de carro raro por aqui: fora o Brasinca que veio antes, e o Santa Matilde que veio depois (ambos com motor Chevrolet, por sinal), não tivemos mais nenhum deles.
O carro permanece, único, imortal, um símbolo de uma época e de um sonho do Toni de virar fabricante, que depois se tornaria realidade. Uma peça de valor simplesmente inestimável.
Alfa Romeo Spider 2000 e 2600
O nosso FNM JK, na Europa se chamou Alfa Romeo 2000, e foi lançado lá no fim de 1957 como ano/modelo 1958. Era derivado do 1900 de 1950; uma nova carroceria e mecânica apenas melhorada. Junto com o sedã, aparece também um roadster conversível de dois lugares: o Spider. Era um belíssimo carro, desenhado pela Touring de Milão (que também o produzia em série), mas obviamente tomando inspiração do primeiro Giulietta Spider, de 1956, desenhado por Pininfarina. Mas talvez seja ainda mais belo que o Giulietta: seu maior comprimento e entre eixos o fazem extremamente proporcional, mais longo e belo que o carro menor.
Além do entre-eixos menor de 2500 mm, era quase idêntico: o motor de 1.975 cm³, com bloco de ferro fundido e cabeçote em alumínio, era o mesmo, mas no Spider, tinha taxa de compressão ligeiramente maior, e dois carburadores Solex duplos, horizontais, em vez de apenas um. O resultado era 115 cv a 5.700 rpm, contra 105 cv a 5.300 rpm do sedã. E a alavanca do câmbio de cinco marchas, que ficava na coluna de direção no sedã, ia para o console na Spider.
No gramado da praça em Lindóia, claro, era possível ver uma Giulietta Spider e um 2000 Spider. Bem como a versão posterior do Spider “grande”: o 2600 Spider. Em 1962, era o mesmo carro, mas com um novo motor. Era uma versão de seis cilindros em linha do motor do Giulia tipo 105, o famoso Alfa Romeo “Twin-cam”. Todo em alumínio, tinha agora 2,6 litros e era bem mais moderno: na Spider (e na Sprint, um GTV grande) tinham taxa de 9:1 e três Solex duplos horizontais belíssimos, para 145 cv. Os italianos tiveram este motor no sedã “JK”, o 2600 Berlina, com 130 cv. Hoje raro e cobiçado, o Spider 2600 do gramado do evento era lindíssimo num tom de verde-escuro.
Alfa Romeo Spider tipo 105
Em Lindóia o Spider “pequeno”, baseado no Giulia tipo 105, também estava lindamente representado: dos originais “osso di sepia” com a traseira alongada aos coda-tronca com ela cortada, até um série 3 dos anos 1980 estava lá. Atestando o quão avançado era o Giulia original nos anos 1960, o Spider permaneceria em produção, sem grandes mudanças estruturais, até 1993, nos mercados mais exigentes do mundo. Talvez o mais amado de todos os Alfa-Romeo.
Alfa Romeo Montreal
O Montreal era para ter ficado só como um carro-conceito: foi criado para a feira mundial de Montreal de 1967, a Expo 67. Era um cupê numa base de um GTV tipo 105; o carro da feira era um 1600 Junior. Mas o desenho era da Bertone, e a Bertone nessa época era onde trabalhava o jovem Marcello Gandini; tinha acabado de fazer o Lamborghini Miura, para muitos o mais belo carro da história do automóvel. Por causa disso, se tornou algo muito maior.
O carro era obviamente Gandini em sua melhor fase; muito de Miura nele, principalmente na curvatura das portas e nos detalhes, mas com proporções de motor dianteiro aumentadas; é simplesmente maravilhoso. A Alfa Romeo acaba por colocá-lo em produção.
Mas não com o quatro-em-linha dos Giulia e derivados. Para este belíssimo cupê, a Alfa resolveu fazer algo muito mais impressionante: um V8 criado usando os cabeçotes da Giulia tipo 105. É então um compacto V8 de alumínio DOHC, com 2593 cm³ de deslocamento e 200 cv. O motor é uma obra de arte, com cárter seco e injeção mecânica Spica. Tinha tamanho e peso contidos: 4220 mm num entre-eixos de 2350 mm, e 1250 kg. O câmbio era um ZF manual de cinco marchas.
O carro era muito raro, e sua injeção pré-histórica, problemática; acaba por permanecer num limbo, pouco lembrado e amado. Mas recentemente, tem sido cada vez mais valorizado: especialistas aprenderam a acertar a injeção, e com escapamentos modernos, o V8 faz uma música simplesmente divina. O carro em exposição, claro, era totalmente original, e maravilhoso em vermelho.
Alfa Romeo SZ
Fabricado pela Zagato, numa volta a lendárias parcerias do passado entre as duas casas de Milão, o SZ é um desenho polarizador: ame ou odeie, ninguém é indiferente. Dentro da Alfa era chamado Il Mostro, um incrivelmente atarracado, agressivo, diferente e inovador desenho. As laterais, retas como falésias, enormes, a cabine visualmente minúscula, a frente brava com seis faróis e no meio um Scudetto diferente, minimalista, futurista, mínimo. Original e corajoso ao extremo.
Era baseado no sedã 75, motor V6 Busso de três litros, 12 válvulas e 210 cv dianteiro, transeixo traseiro, de Dion atrás e duplo A na frente. Mas entre-eixos curto, e um V6 feito a mão, com cuidado, o que resulta em algo extremamente suave, linear e potente.
Eu sei disso em primeira mão: andei em Romeiros com este carro, em companhia do dono, para um vídeo do Flatout Clubsport. O que achei? Simplesmente sensacional. Um motor sublime, ao mesmo tempo suave e bravo, linear e entusiasmente. Não uma montanha de potência, mas uma de prazer. O carro é pequeno, ágil, confortável, e, incrivelmente, com ótima visibilidade para todos os lados; o interior em couro claro é iluminado e agradabilíssimo. Um carro único no Brasil, de um total de pouco mais de mil carros produzidos. Um privilégio até de estar perto.
Alfa Romeo 6C 2500 Boneschi
Antes de ser a marca de carros de produção seriada que conhecemos hoje, antes da segunda guerra mundial a Alfa Romeo era basicamente uma marca de motores aeronáuticos, que fazia alguns carros esporte e GT de alta tecnologia e desempenho, além de competição, claro. Era literalmente a Ferrari do pré-guerra; foi cuidando das competições da Alfa Romeo que Enzo aprendeu o seu ofício.
O último dos Alfa Romeo deste tipo, feitos a mão a preços altíssimos, foi o 6C 2500. Um sobrevivente do pré-guerra, era o que a Alfa tinha em produção ao terminar o conflito. Até o lançamento do sedã monobloco 1900 em 1950, e a consequente mudança de foco, era o fim desta era na Alfa.
Este exemplar 1950, com carroceria Boneschi, é portanto uma raridade, feita em baixo volume. Todo 6C 2500 é raro, com algo em torno de 680 deles fabricados no pós-guerra, mas este é mais: consta que fizeram três deles no mundo e somente dois sobreviveram ao tempo. Com direção do lado direito, reflete de novo o pré-guerra: acima de uma certa faixa de preço, os carros chiques eram todos com a direção à direita na Itália.
O motor é um seis em linha DOHC, com 2,5 litros e 90 cv; a carroceria GT é obviamente um item de alta qualidade, encomendada a um valor inimaginável. Um carro extremamente exclusivo e belíssimo, que reflete uma Alfa Romeo muito diferente.
Alfa Romeo A12 flat-bed
Como sabemos, a Alfa Romeo também fabricava caminhões; mas não tivemos aqui a linha de furgões e caminhões pequenos da marca. O que não impediu o colecionador Diego Comolatti em trazer uma e adaptar uma prancha para carregar seus Alfa Romeo com ela. Algo simplesmente sensacional.
Alfa Romeo Giulietta Sprint e Sprint Speciale
Antes da Giulia existiu a Giulietta; um carro menor, mas que inaugurou a era de ouro do Alfa Romeo Twin-cam. E antes da GTV existiu o Giulietta Sprint: um cupê esportivo baseado na Giulietta. O Twin-cam tinha aqui apenas 1.290 cm³, mas até 100 cv nos Sprint Speciale. A diferença basicamente ficava na carroceria, 2+2 no Sprint, e dois lugares na SS.
Ainda com freios a tambor, são de qualquer forma carrinhos minúsculos e sensacionais; um tamanho menor de Alfa Romeo que fez um sucesso tremendo e abriu as portas para os Giulia que vieram depois. Como o GTV que veio depois, ambas as carrocerias são de Bertone; mas aqui são obra de Franco Scaglione, e não Giugiaro.
Alfa Romeo 75 Evoluzione
O 75, lançado em 1985, seria o ultimo sedã mainstream a ter tração traseira na Alfa por muito tempo; com a compra da Fiat em 1987, os novos carros eram todos de tração dianteira. Até hoje é um carro cobiçado por entusiastas no exterior; mas lá são baratos por sua baixa durabilidade e grande quantidade produzida. Mas não este aqui: é um raríssimo Evoluzione.
Apenas 500 exemplos do Turbo Evoluzione foram produzidos na primavera de 1987 para atender aos requisitos do Grupo A da FIA. O motor, ainda o mesmo famoso Twin-cam Alfa, foi reduzido para 1.762 cm³ (normalmente 1.779 cm³) e, embora a potência declarada fosse a mesma do 75 turbo normal, este motor era mais adequado para maiores potências; era um carro de homologação de competição, com suspensão de corrida, kit de paralamas largos e aerodinâmica melhorada, e tudo pronto para se criar um vencedor nas pistas. Foi campeão italiano de turismo em 1988. Este carro é, claro, único no Brasil, e pertence ao Diego Comolatti.
Alfa Romeo GTV tipo 105
O mais comum e amado dos tipo 105 no mundo todo, e especialmente no Brasil, são dos GTV. No encontro este ano tivemos GTV para todos os gostos; da raríssima conversível GTC a uma “GTA”, na verdade uma “scalino” (frente com degrau, desenho da Giulia Sprint GT Veloce até 1966) caracterizada como GTA de uma forma extremamente cuidadosa, incluindo emblemas e rodas de magnésio de época.
As três gerações principais da GTV, “scalino”, 1750 e 2000 GTV estavam presentes, assim como carros de competição feitos no estilo das GTAm como a do Juliano Barata (que devia mudar seu nome oficialmente para Giuliano Barata, IMHO), e até uma incrível GTV com motor V6 Busso!
Literalmente Alfa Romeo para todos os gostos. E nem falamos em detalhes de todas; FNM de competição e originais, as 2300 de todas as épocas, Berlinas, Giulias sedã e muito mais. Foi um evento realmente para não se esquecer.