A maioria dos carros é feita de metal – alumínio, aço, ou uma mistura dos dois. Há um bom motivo para isto: chapas de metal são duráveis, resistentes e fáceis de moldar na forma que as fabricantes bem entenderem. E a arte de dar forma ao metal já é dominada pela humanidade há séculos.
Ainda não é assinante do FlatOut? Considere fazê-lo: além de nos ajudar a manter o site e o nosso canal funcionando, você terá acesso a uma série de matérias exclusivas para assinantes – como conteúdos técnicos, histórias de carros e pilotos, avaliações e muito mais!
Alguns carros usam fibra de vidro – como o Chevrolet Corvette e uma boa variedade de automóveis de fabricação artesanal. Também é fácil compreender a razão: a fibra de vidro é mais barata que o metal e é mais fácil de ser moldada em pequena escala, artesanalmente. E, claro, há a fibra de carbono, que é muito mais leve que a fibra de vidro ou o metal, e bem mais cara – e, por isso, geralmente é utilizada na fabricação de superesportivos.
Mas indústria automobilística está sempre procurando alternativas – seja em busca de algo mais barato, mais leve ou mais fácil de obter, mas até agora nada substituiu o metal, a fibra de vidro ou a fibra de carbono de forma definitiva. E quase nenhum deles chegou à linha de produção. Como veremos a seguir, a maior parte não passou da fase de protótipo, esbarrando em empecilhos como custo e viabilidade técnica antes de ser abandonada.
Duroplast
Sem dúvida este é o material alternativo mais conhecido entre os car nerds de plantão: o Duroplast, material usado na carroceria do Trabant – que, por uma série de razões, é considerado um dos piores carros do mundo.
Filho de uma Alemanha dividida, o Trabant nasceu no lado oriental do Muro de Berlim, em 1957, e foi fabricado lá até 1990. Após a reunificação da Alemanha, ele ainda foi produzido por mais um ano antes de ser descontinuado. Pequeno e fraco (alguns dizem que ele também é feio, mas isto é subjetivo), o Trabi original usou um motor dois-tempos de 500 ou 600 cm³ por quase toda a sua vida, adotando só em 1990 um quatro-cilindros de origem Volkswagen. Feito para ser o mais barato possível, o Trabant tinha versões absurdamente frugais – sem luzes-espia para os faróis, sem medidor de combustível, sem cintos de segurança no banco traseiro e sem bocal de abastecimento (a mistura de óleo e gasolina era despejada diretamente no tanque, que ficava debaixo do capô.
Mas talvez a característica mais curiosa do Trabant seja o material da carroceria: ela era feita de Duroplast, uma resina plástica reforçada com fibras recicladas de algodão ou lã. Não demorou para que surgissem piadas sobre como o Trabant era frágil, feito de papelão. Mas, curiosamente, a carroceria de Duroplast era um dos pontos fortes do Trabant em uso – ela era leve, surpreendentemente resistente e de fácil moldagem.
O problema vinha na hora de descartar o material, tanto as sobras quanto as sucatas: não era possível reciclar o material para fazer novos carros e, com 3,7 milhões de unidades fabricadas, na virada dos anos 1990 os ferros-velhos da Alemanha Oriental viraram grandes depósitos de Duroplast descartado.
Lendas urbanas que surgiram na época diziam que as autoridades alemãs se livravam do Duroplast dando-o de comer a porcos, vacas e galinhas. Na verdade, depois de realizar experimentos com uma bactéria que, supostamente, consumiria o Duroplast em vinte dias, a própria fábrica do Trabant desenvolveu um método para aproveitar o material em blocos de concreto para a construção de estradas. Ou seja: no fim de sua vida, muitos Trabant viraram pavimento para que outros carros pudessem circular. Quase poético.
Cânhamo
Não é por acaso que “cânhamo” e “maconha” usam as mesmas sete letras – ambas são produtos da mesma planta, a Cannabis sativa. A diferença é que o cânhamo vem de uma variedade da planta com menor concentração de THC (tetra-hidrocanabinol, o componente psicoativo da maconha) e mais alta concentração de CBD, ou canabidiol, que atua como supressor do THC e possui propriedades medicinais.
Mas além de ser usado como remédio, o cânhamo tem outra característica: suas fibras são extremamente resistentes – na verdade, a fibra de cânhamo foi uma das primeiras fibras vegetais utilizadas pela humanidade: há evidências arqueológicas do uso de fibra de cânhamo há mais de 50.000 anos.
Pois no começo do século passado, Henry Ford tentou fabricar um carro usando fibra de cânhamo para a carroceria, e óleo de cânhamo como combustível. Cânhamo, e não maconha – ou seja, nada de ficar doidão com a fumaça do escapamento…
A questão é que, vindo de uma família rural, o fundador da Ford queria ajudar os agricultores depois do fim Grande Depressão, crise econômica que abalou os EUA na década de 1930. Como a indústria automotiva crescia vertiginosamente na época, Ford acreditava que utilizar plantas para construir carros seria benéfico para a economia – e o cânhamo foi escolhido por sua facilidade de cultivo e rápido crescimento.
As fibras vegetais foram usadas para reforçar os painéis de plástico usados em um protótipo que foi apresentado em 1941. Mas isto é tudo o que se sabe com certeza: como explicamos nesta matéria, a maior parte das informações a respeito do protótipo se perdeu com o tempo. Há artigos pela Internet (especialmente em sites dedicados à cultura da maconha) que dizem que as fibras do cânhamo correspondiam a algo entre 70% e 100% da composição dos painéis – o que sequer faz sentido. É mais provável que a presença de fibras naturais na carroceria do protótipo não passasse muito de 10%.
A pesquisa para desenvolver os painéis do protótipo foram feitas com a ajuda do Soybean Laboratory, braço do governo norte-americano responsável por estudar o uso dos grãos de soja na alimentação e em outras frentes da indústria. Dizem até que havia fibras de soja em sua composição, mas isto não pode ser confirmado.
O carro de plástico e cânhamo era supostamente mais leve e mais seguro que um carro de metal, mas não foi levado adiante. Apresentado no meio da Segunda Guerra Mundial, o protótipo acabou esquecido à medida que os EUA se envolviam no conflito. Quando a guerra acabou, todos já haviam esquecido do carro de maconha de Henry Ford.
Hoje em dia, oito décadas depois, o uso de materiais de origem vegetal na construção de automóveis voltou a ser considerado pela indústria, motivada pela preocupação com o meio ambiente e a busca por materiais biodegradáveis. Em 2015, Citroën e Peugeot começaram a testar fibras de cânhamo no reforço de partes plásticas, como capas de retrovisores e revestimentos de porta. E o aftermarket já oferece capas para bancos feitas de cânhamo.
Além disso, existe um Mazda MX-5 com carroceria de plástico reforçado com cânhamo, usando o mesmo princípio explorado por Henry Ford. Criado pelo norte-americano Bruce Michael Dietzen, o “Miata de maconha” usa 45 kg de fibra cânhamo em sua carroceria, cujo visual é inspirado pelos esportivos da década de 1960.
Dietzen diz que a carroceria de seu Miata é 10 vezes mais resistente a amassados que o metal usado originalmente. Ele também modificou o motor para rodar com um biocombustível feito de resíduos agriculturais. Segundo Dietzen, que gastou US$ 200.000 na construção do esportivo, sua pegada de carbono é menor que a de um carro elétrico convencional.
Madeira compensada
Os chassis de madeira dos Morgan são tão tradicionais que sequer podem ser chamados de “alternativos” – até porque a madeira era um material comumente usado nos automóveis do começo do século passado. Sem mencionar as Woodies americanas, populares na Califórnia até meados da década de 1950 por serem mais resistentes à maresia.
Por outro lado, madeira compensada – a mesma usada nos móveis das nossas casas – também já foi usada em carros.
Em 1986, uma companhia britânica chamada Africar foi criada com o objetivo de desenvolver um carro para os países mais pobres do continente africano. Ele deveria ser robusto, a fim de atravessar terrenos difíceis sem se desmanchar, mas também barato o bastante para ser produzido localmente.
Com chassi do tipo escada, o carro poderia ser facilmente configurado como uma van, uma picape ou um jipe, por exemplo. Ele usaria, no início, motor e câmbio da Citroën H-Van – mas só até um conjunto mecânico próprio ser desenvolvido. E a carroceria, toda de painéis planos, poderia ser feita de fibra de vidro, metal ou madeira compensada impregnada com resina epóxi. Este último possibilitaria que qualquer veículo da Africar fosse consertado usando recursos e materiais disponíveis à mão, com mão de obra simples e rápida.
Embora três protótipos tenham sido feitos, a Africar sucumbiu rapidamente, em 1988, por problemas financeiros, e o projeto foi abandonado.
Esquecido, não: em 2016, Gordon Murray – que é sul-africano – criou o Ox, um caminhão modular diretamente inspirado pelo Africar.
A ideia é a mesma, incluindo o uso de painéis planos para facilitar e baratear a manufatura, o transporte e a montagem dos véiculos. E, da mesma forma que o Africar, o Ox também pode ser feito de metal, plástico ou madeira compensada.
Tecido
A busca por materiais alternativos não é voltada apenas à indústria do transporte barato. Nos anos 2000, a BMW concebeu o GINA Light Visionary Model, conceito com carroceria flexível de tecido que podia mudar de forma. O acrônimo GINA quer dizer Geometry and functions in “N” Adaptations – em português, “Geometria e Funções em ‘N’ Adaptações”.
Projetado por Chris Bangle, autor de designs polêmicos durante seu período como designer-chefe da BMW o GINA era um roadster feito sobre a plataforma do Z4, porém adaptada com uma armação móvel de metal. Esta armação era coberta por uma capa de tecido sintético, composto por poliuretano e elastano. Usando atuadores eletro-hidráulicos, a armação de metal se movia para modificar o formato da “carroceria”. E o tecido até permitia que as lanternas ficassem ocultas, aparecendo apenas quando acesas.
Com isto, o acesso ao motor e se dava por uma abertura no capô, e em alta velocidade um spoiler traseiro “brotava” para cumprir sua função aerodinâmica – assim como os encostos de cabeça traseiros “brotavam” ao comando de um botão. Sim, o BMW GINA era totalmente funcional e tinha um V8 de 4,4 litros, acoplado a uma caixa automática de seis marchas.
O projeto começou a ser executado em 2001 e só ficou pronto em 2008, e serviu como demonstração da linguagem de design que a BMW seguiu a partir dali – embora, obviamente, nenhum carro de tecido tenha chegado às ruas.