Há mais de seis anos ele causa crises de autoestima nos superesportivos europeus – e, em consequência, conquista haters no mesmo ritmo de fãs. Seus números de desempenho são absurdos – 0 a 100 km/h em 2,7 s e Nürburgring Nordschleife em 7:19,10 (por enquanto vamos ignorar os Chuck Norrianos 7:08,679 da versão Nismo, pois era um protótipo), tudo a um preço em média três vezes menor que seus rivais de pista. Mas a sua ficha técnica não condiz com tanta performance: 553 cv e 1.721 kg parecem dados dignos de um sedã esportivo de luxo, como um BMW M5 ou um Mercedes-Benz C63 AMG. Afinal, qual a bruxaria por trás do GT-R? Ano passado, pude acelerar este monstro na Califórnia, conversei com alguns técnicos da Nissan e da Nismo, e irei compartilhar algumas descobertas.
Sua evolução em Nordschleife foi monstruosa. Em 2007, pouco após seu lançamento, Toshio Suzuki, piloto de testes da marca, cravou 7:38,5. No ano seguinte, a marca despencou para 7:29,03 e, em 2009, o tempo baixou mais de 2 s, com 7:26,7. Em 2011, mais dois segundos foram cortados fora (7:24,2) e, no ano retrasado (2012), o registro caiu assustadoramente para 7:19,1 – deixando-o perigosamente colado no Dodge Viper ACR e no Corvette ZR1, as duas referências a serem batidas em Nordschleife. Bem, estamos excluindo da conta os protótipos emplacados que ficam a menos de 10 cm do chão, como os Radical e o Gumpert Apollo, e os hipercarros de quase 1.000 cv, como o recordista Porsche 918, ou os McLaren P1 e LaFerrari.
Para se ter uma ideia do que são estes tempos, Ferrari 458 Italia e McLaren MP4-12C amargam quase dez segundos atrás do Godzilla, empatados com 7:28,0. O Porsche Turbo da nova geração 991 – de tração integral, como o GT-R – bem que tentou, mas teve de se consolar com 7:26, ainda muito longe do japa. E se você acha que o GT3 da geração 991 daria conta do recado, talvez seja melhor pensar novamente: a Porsche não declarou o tempo dele em Nordschleife, se limitando a dizer que está “abaixo de 7:30″. E o GT-R está abaixo de 7:20. Como que raios ele faz isso pesando 1,7 tonelada e com menos de 600 cv?
Vamos começar mostrando onde não está a resposta.
A explicação oficial: desviando o foco da coisa
Kazutoshi Mizuno é o nome do engenheiro-chefe encarregado do projeto do Nissan GT-R. Cerca de um ano após o lançamento do Godzilla, o site Piston Heads fez uma pequena entrevista com ele que rendeu muita polêmica – teriam os japoneses reinventado a física? A razão: contrariando o principal mantra do automobilismo – a leveza -, Mizuno dá a entender que os mastodônticos 1.700 kg foram um dos principais pilares do projeto do GT-R desde o início. Os motivos ele explica nos vídeos abaixo. Preste atenção: leia ou assista à explicação, mas não a aceite totalmente. Você vai entender depois.
Na primeira parte, Mizuno explica a importância do peso em um Fórmula 1. Apesar de ter 600 kg, ele gera mais de 1 tonelada de downforce – e é este peso gigantesco que pressiona os pneus contra o solo e gera níveis de aderência monstruosos. “Mas o GT-R é um carro de rua comum, não pode gerar uma tonelada de downforce. Por isso, pesa 1.700 kg – isso é para gerar carga vertical nos pneus”, afirma. Depois, ele critica o excesso de leveza dos concorrentes: “menos peso é melhor, todos dizem. Isso é bom para acelerar e para frear, mas deixa a dinâmica traiçoeira. Mais importante que isso é a carga vertical sobre os pneus”. E ele conclui: “este carro pesa 1.700 kg e isso é a coisa mais importante para a essência de sua dinâmica”.
Aqui, o engenheiro segue falando de Fórmula 1, afirmando que o peso total dele (estático de 600 kg + aerodinâmico de uma tonelada) é de 1.600 kg, ou 400 kg de carga em cada pneu. Sem o peso aerodinâmico, teria apenas 150 kg pressionando cada pneu contra o solo. O GT-R usa rodas de 20″ porque este geraria a área de contato ideal – e, de acordo com ele, a carga de 450 kg sobre esta área de contato é a medida exata para o máximo desempenho em todas as condições de piso. Ele diz que este pacote é extremamente importante: 1.700 kg, exatamente 485 hp, bons freios e rodas aro 20. “Esta é a essência”, crava Kazutoshi.
Neste vídeo, Mizuno explica alguns de seus projetos de competição com aderência aerodinâmica, como monopostos, o Nissan Primera e o protótipo de Le Mans, com 850 kg mais 3.500 kg de downforce. De acordo com ele, é graças a esta experiência vitoriosa que ele determinou que 1.700 kg e 485 hp (potência do GT-R na época do lançamento) seria a equação perfeita para o máximo desempenho.
A distorção marota da explicação oficial
Tudo isso soa muito bonito, revolucionário e bastante convincente. Faz todo o sentido o carro usar a própria massa como fonte de downforce para pressionar os pneus contra o solo e gerar níveis de aderência monstruosos, não?
Não.
Há uma malandragem que passa quase despercebida até aos entusiastas mais hardcore. Mizuno propositalmente fundiu dois conceitos de física bastante distintos: massa e peso (força vertical em direção ao solo). Quando ele cita o caso da força-peso aerodinâmica dos carros de corrida, deixa de mencionar a diferença fundamental entre ela e a massa: a carga aerodinâmica, ou downforce, é uma força vertical totalmente livre da inércia.
Por que esta diferença é importante?
É simples: a massa – os 600 kg do F1 ou os 1.700 kg do GT-R – é a grande alavanca da inércia, que vai arremessar o carro para fora da curva. Sabe quando você tem um amigo alto e gorducho do seu lado no banco traseiro e, numa curva longa, o sujeito te esmaga com tanta força que parece de propósito? Ele não tem culpa. A fórmula da transferência lateral de peso é massa x altura do centro de gravidade / largura do eixo (também conhecido como bitola). É por isso que, se o gordinho espaçar os joelhos, ele vai te esmagar menos. Ou talvez nem te esmague.
Ou seja: diferentemente da força aerodinâmica, a massa age como um pêndulo. Fazer uma curva com um carro de 850 kg + 3500 kg de downforce a 300km/h não é a mesma coisa que fazê-lo em um carro de 4350kg de massa. Quem já pilotou um sedã de luxo de 2,5 toneladas no autódromo sabe que a massa não faz força para baixo na curva – faz força para o lado, cuspindo o carro para fora da trajetória. Quer uma analogia? Coloque uma melancia no assoalho do carro e faça uma curva. Se estiver no teto, piora.
Mizuno tem toda a razão ao dizer que a melhor coisa para que os pneus gerem aderência é a carga vertical sobre eles. Sua jogada genial, feita de nenhuma mentira mas de várias meia-verdades, foi deixar de mencionar que a força vertical exercida pela massa em um carro estático fica mais horizontal que vertical nas curvas, ao contrário da força promovida pela carga aerodinâmica, que sempre vai ser vertical.
E digo mais: quanto mais aderência gerada pelo conjunto, maior a transferência lateral de peso, aumentando o efeito pêndulo da massa (veja o Evo aí em cima), tirando-a do eixo vertical com mais violência. Massa bem posicionada, concentrada entre os eixos e em posição baixa, reduz o efeito, mas jamais anula. É física pura. Em qualquer tipo de transição, a massa torna-se parte de um jogo indesejável de inércia e transferência de peso que reduz a velocidade de reação e aumenta a diferença de carga entre os pneus.
Ao afirmar que os 1.700 kg do GT-R são propositais, Mizuno transforma o grande pecado do Nissan em uma qualidade excepcional e intencional. Mas ele omite que 3.500kg de downforce não estão sujeitos à força centrífuga, ao contrário dos supostamente propositais 1.700kg do GT-R. Tanto isso é verdade que o Nissan GT-R da Super GT pesa 1.200 kg e gera 1.200 kg de downforce – ou seja, não levem muito a sério aquele papo de equação perfeita. A física não foi reinventada.
Então, por que ele pesa tudo isso? Simples, meu caro. Qualquer carro esportivo sofisticado de tração integral pesa em torno disso. Pense no Porsche 997 Turbo S (1.660 kg) ou no Audi RS5 (1.818 kg). Lembre-se de que o GT-R é um incrível superesportivo de baixo custo (nos EUA, a versão mais simples custa menos de 100 mil dólares), e por isso, não pode abusar de fibra de carbono, magnésio ou ligas muito sofisticadas de alumínio. Ele pesa 1.700 kg porque 1.700 kg foi o que deu pra fazer com o orçamento – e digo mais: em agosto de 2013, ouvi de mais de um engenheiro da Nissan lá nos EUA que, desde 2007, eles estão ralando muito para baixar o peso do Godzilla, e que coisa boa estava para vir neste sentido. Hoje, vocês já sabem o que é: a versão Nismo, com 595 hp e 64,8 kg a menos, graças ao emprego massivo de fibra de carbono (para-lamas, porta-malas, capô e bancos do tipo concha) e remoção de algumas forrações.
Miazuno diz que carros leves demais são traiçoeiros. Cara, isso só faz sentido em automóveis realmente leves, com menos de uma tonelada, como o Lotus Elise. Mas não há superesportivo que pese menos de uma tonelada. E, se você já pilotou o Porsche 911 de geração atual, um dos carros mais leves da categoria (1.395 kg), sabe muito bem que de traiçoeiro não há nada. Absolutamente nada.
Boa parte deste papo eu já tive há alguns anos, com os excelentes escribas do AutoEntusiastas, um dos meus blogs favoritos até hoje.
Neste momento, os “gitiãru boys” estão espumando de raiva, loucos para destilar o melhor dos venenos neste pobre escriba: afinal, quem ele pensa que é para desqualificar o engenheiro-chefe do Nissan GT-R? Nada disso. Mizuno é um cara genial e é macaco-velho do automobilismo. Se você tem um mínimo de vivência nos boxes, sabe bem qual que é a malandragem da coisa: o mágico desvia o seu olhar de onde o truque realmente acontece. Seu carro tem aerodinâmica excepcional por causa de um difusor incrível? Bote seus mecânicos para fazer um teatro no motor, cobrindo tudo assim que o capô é levantado, coloque alguns mecânicos fazendo trabalho de leão de chácara. Distraia do foco real da coisa. Ou você acha que Kazutoshi iria falar abertamente do torque vectoring absurdo produzido pelo trabalho dos diferenciais em conjunto com o uso independente das pinças de freio?
Ops. Este papo fica pro próximo post.