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Por dentro do 919 Evo: como a Porsche transformou seu LMP1 no carro mais rápido de Nürburgring Nordschleife?

Até três ou quatro meses atrás era impossível imaginar que o recorde de Stefan Bellof em Nürburgring Nordschleife seria batido algum dia. Não porque não há carros capazes de fazer isso, mas porque os carros capazes de fazer isto não disputam corridas somente no traçado Norte de Nürburgring, e por que você não pode entrar nas touristenfahrten com pneus slick.

Além disso, Bellof estava a bordo de um protótipo do Grupo C conhecido pela força de seu flat-6 turbo e por sua capacidade de gerar downforce em uma sessão de classificação, com um motor de classificação, com acerto de classificação. E ele ainda era um dos pilotos mais talentosos de sua geração — seu colega de cockpit nos 1000 Km de Nürburgring daquele ano, Jochen Mass, foi 5 segundos mais lento com o mesmo carro.

Mas então veio a Porsche e criou um desvio na linha do espaço-tempo. Ela decidiu transformar seu 919 da classe LMP1 em um protótipo sem limites e, de repente, havia um carro capaz de superar o recorde de Stefan Bellof. Parece até que foi para mostrar o que o mundo está perdendo com tantas restrições técnicas.

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Primeiro eles levaram o carro a Spa, onde Bellof quebrou seu primeiro recorde de 1983, e quebraram o recorde da pista novamente, superando até mesmo o tempo de Lewis Hamilton com seu Mercedes-AMG de Fórmula 1. Imediatamente surgiu a dúvida: a Porsche vai levar este 919 Evo para Nürburgring, em uma tentativa de quebrar seu próprio recorde depois de 35 anos? Ela levou.

Sem limites e com a pista inteira para si, a quebra do recorde era certa. Não era mais uma questão de “se”, mas “por quanto” o recorde seria quebrado. Vimos uma série de teorias sobre o tempo de volta, apostamos até mesmo em um tempo sub-5, e na manhã do penúltimo dia de junho de 2018 a Porsche acordou o mundo com a notícia de que a marca de 35 anos estava derrubada. Nürburgring tem um novo rei: Timo Bernhard fez seu Porsche 919 Evo cruzar a linha de chegada em pouco mais de 5 minutos e 19 segundos. Com isso, a Porsche passa a deter o recorde absoluto, o recorde em competições, e o recorde entre os carros produzidos em série.

Mas quão diferente é este Porsche 919 Evo do Porsche 919 regular, que disputou o WEC? Que tipo de modificações a Porsche fez no carro para que ele conseguisse este tempo absurdo no circuito?

Originalmente o 919 usa um powertrain híbrido composto por um V4 turbo de dois litros, com injeção direta de combustível, que produz 500 cv enviados para as rodas traseiras, e um sistema de recuperação de energia (seu motor elétrico) que entrega cerca de 400 cv para as rodas dianteiras. Mas para garantir o recorde a Porsche levou o conjunto a um novo patamar que talvez seja atingido somente depois de 2020, quando o novo regulamento dos hipercarros entrar em vigor.

Como dissemos antes de conhecer o recorde, a Porsche provavelmente aproveitou que tinha um protótipo LMP1 de milhões de dólares sem muita utilidade — afinal, ela deixou o WEC por uma série de motivos, nem todos muito claros — e decidiu transformá-lo em uma máquina de propaganda. Sem um regulamento para tolher o desenvolvimento do protótipo, eles poderiam fazer o que quisessem com o caro. Algo como aumentar a potência para quase 1.200 cv, reduzir ainda mais o peso, e modificar a eletrônica e a aerodinâmica do carro usando tudo o que os regulamentos técnicos proibiram nos últimos 30 anos. Foi exatamente o que eles fizeram.

 

Powertrain

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Começando pelo motor, a Porsche diz que todos os componentes do powertrain são os mesmos do modelo comum. A diferença é que o regulamento do Mundial de Endurance limita o fluxo de combustível para parear a potência dos carros. Os 919 podiam usar, no máximo, 2,464 litros de combustível por volta. Sem essa restrição a Porsche conseguiu extrair um pouco mais de potência do seu V4 usando apenas um remapeamento do gerenciamento do motor para injetar mais combustível (E20) nos cilindros. De 500 cv a potência pulou para 720 cv — sim: um aumento de 220 cv só no motor de combustão. Isso foi possível porque o fluxo irrestrito permite o uso de níveis maiores de pressurização do turbo. Sem mudar mais nada o 919 Evo já chegaria aos 1.120 cv, mas a brincadeira de engenheiro não parou por aqui.

 

 

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O sistema elétrico de recuperação de energia (ERS) também era regido pelo regulamento da classe LMP1, que limitava a quantidade de energia que ele poderia gerar/armazenar/usar a 6,37 megajoule por volta, embora fosse capaz de recuperar/usar 8,49 megajoule por volta. Sem amarras o ERS do 919 Evo produz 10% mais potência, ou seja: aproximadamente 440 cv. Some os 220 cv de lá com os 40 cv daqui e estamos falando de um ganho de 280 cv. É praticamente um Cayman básico inteiro ajudando a empurrar o 919 Evo. Estamos falando de mais de 1.160 cv. Alguém mais lembrou do Turbopanzer? Pois aqui está seu herdeiro direto.

 

Redução de peso

Depois de resolver o powertrain a Porsche voltou sua atenção ao peso do carro. Protótipos de Le Mans precisam de air jacks para levantar o carro nos boxes, precisam de faróis para correr à noite, precisam de limpadores de para-brisa para encarar a chuva, sistema de climatização para não matar seus pilotos cozidos, nem sistemas complexos de comunicação e telemetria. É só arrancar tudo e guardar no almoxarifado. O peso do carro cai de 890 kg para 849 kg.

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Até aqui estamos falando da receita básica de qualquer preparação: aumentar potência e diminuir o peso. Com essa primeira etapa concluída, é hora de refinar o negócio. Todo super-Porsche pode ser equipado com um sistema ativo de vetorização de torque (PTV), mas os regulamentos técnicos não gostam muito desse tipo de sistema, por isso o 919 original não o usava. No 919 Evo, o sistema funciona com o diferencial e os freios como nos 911, porém em vez de um controle mecânico para o diferencial, o sistema usa um comando eletrônico.

 

Aerodinâmica

Um recorde avassalador em Nürburgring, contudo, dependeria muito mais da aerodinâmica do carro do que de sua potência em si. Aquela impressão de o carro estar sobre trilhos que você teve quando viu o onboard é resultado de um projeto radical de aerodinâmica.

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Por essa razão a aerodinâmica também é um dos setores mais afetados pelos regulamentos com efeito solo limitado e posição da asa traseira definida pelo texto técnico. Fazendo o projeto ideal, sem se preocupar em estar dentro ou fora do regulamento, a Porsche conseguiu aumentar a downforce em 53%, além de melhorar a penetração aerodinâmica. Isso fica evidente quando se compara os carros de perfil. Sem faróis, a Porsche conseguiu fazer uma dianteira mais baixa e fluida, com um difusor mais próximo do chão.

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Olhando a lateral do carro também ficam evidentes as saias, que ajudam a selar o fundo do carro aumentando o efeito solo. As saias isolam o fluxo de ar sob o carro da turbulência externa, resultando em uma zona de baixa pressão que literalmente “suga” o carro para baixo.

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As saias foram banidas do automobilismo em 1983 porque, embora produzissem um nível insano de downforce, se elas por algum motivo falhassem (por quebra ou dobramento resultantes do contato com o chão), o efeito seria drasticamente reduzido, causando a perda de aderência aerodinâmica e a consequente perda de controle do carro. Para contornar este problema, a Porsche instalou um sistema de suspensão ativa que varia a altura do carro, o que o ajudou a manter a eficiência do efeito solo sobre o asfalto irregular de Nürburgring.

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Chegando à traseira do carro temos a asa, que ficou mais alta e 40 cm recuada para reposicionar o centro de pressão aerodinâmica do carro, e com um ângulo de ataque muito maior se comparado com o da asa do 919 regular. O difusor do 919 Evo também é maior, e ladeado por saias para isolar da turbulência externa o fluxo de ar que passa por ele. Quem também ajuda a isolar o fundo do carro foram cobertas pelo lado de dentro, por trás dos discos de freio.