Nos últimos cinco anos você viu o FlatOut defender ativamente a ideia de que o combate às mortes no trânsito tem um foco errado no Brasil. Como ocorre historicamente neste país, o estado selecionou alguns inimigos a dedo e apontou todo seu peso e fúria contra ele.
Foi assim que ficamos proibidos de tomar meia taça de vinho no jantar e voltar dirigindo, e foi assim que fomos punidos por dirigir a 75 km/h em uma via de trânsito rápido. Foi assim que, subitamente, mais de três milhões de motoristas foram tachados de irresponsáveis pelo estado de um ano para o outro.
Estou falando da lei seca e da intensificação da fiscalização eletrônica de velocidade no Brasil, medidas motivadas pela Década de Ação para a Segurança Viária da Organização das Nações Unidas, a ONU, programa lançado em 2011 que visava reduzir as mortes no trânsito globalmente até 2020.
Apesar dos esforços do estado brasileiro em tratar motoristas outrora responsáveis como inimigos públicos, usando sempre o argumento sensível de “salvar vidas”, o número de mortes no trânsito brasileiro cresceu entre 2011 e 2014, diminuiu brevemente nos anos de 2015 e 2016, quando a crise econômica abateu o país e, segundo o volume de indenizações do DPVAT, voltou a crescer no ano passado.
O que deu errado? Por que não conseguimos nos salvar no trânsito apesar da repressão à velocidade e aos embriagados por um gole? Se tais medidas foram impostas prometendo o paraíso no trânsito, porque ainda vivemos no inferno?
A resposta está no recém-aprovado Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito (clique para baixá-lo). Esta nova diretriz também foi inspirada na proposta da ONU, porém chegou com sete anos de atraso: a década de segurança da Organização das Nações Unidas se encerra em 15 meses, com resultados positivos em boa parte do planeta, mas não no Brasil.
Respondendo nossa pergunta, em seu texto de abertura, o Plano Nacional diz o seguinte (os grifos são nossos):
“Reduzir, de fato, o número de acidentes de trânsito exige que os dados de segurança viária não sejam apenas coletados, mas, também, sistematicamente processados, qualificados, analisados e divulgados para que os atores envolvidos possam tomar as medidas corretivas necessárias.
Assim, possuir dados confiáveis é de extrema relevância para que o Brasil possa compreender de uma maneira definitiva que a segurança no trânsito é uma questão prioritária. Os dados também podem ser utilizados pelos meios de comunicação para conscientização do público e a promoção de mudanças comportamentais. Usar dados confiáveis de acidentes de trânsito é essencial para identificar riscos, para desenvolver estratégias e intervenções corretivas, como também avaliar o impacto destas intervenções.
Caso não tenha ficado claro, o que o Ministério das Cidades disse que antes de se apontar causas e consequências de acidentes e fatalidades, precisamos ter informações suficientes sobre as condições de cada um destes elementos na circunstância do acidente.
E aqui nossa pergunta começa a ser respondida: não temos como combater a mortalidade no trânsito brasileiro porque não há estudos sobre acidentes fatais, não há investigação sobre os acidentes, nem mesmo um banco de dados unificado que possa dizer com precisão quantas pessoas morreram no Brasil em determinado período.
Quem está dizendo isso, além do FlatOut, é o próprio Plano Nacional, com o seguinte texto:
Atualmente, existem três fontes de dados que buscam contabilizar as mortesem acidentes de trânsito no Brasil […].Tais bases de dados adotam metodologias distintas, o que pode gerar resultados diferenciados na análise dos dados
O diagnóstico e a gestão dos principais problemas relacionados a acidentes de trânsito devem ser continuados e baseados em dados reais e atualizados. Ou seja, mesmo que de fontes diferentes, devem ser interconectados, de maneira que ações adequadas sejam tomadas e recursos sejam alocados apropriadamente. Sem isso, é impossível haver uma redução significativa e sustentável alteração no quadro de mortes no quadro atual, tanto do nível de exposição da população ao risco de acidentes quanto da sua gravidade.
Estatísticas de acidentes de trânsito podem servir para descrever a magnitude do problema e subsidiar programas e políticas de monitoramento. Igualmente, deve-se fazer uso de informações mais detalhadas para gerir a segurança viária e nela intervir com base em evidências concretas.
Esse trecho vai ao encontro do que escrevemos aqui em 30 de janeiro de 2018, quando, novamente, a opinião pública voltou a culpar os limites de velocidade pelo aumento no número de mortes nas marginais de São Paulo. Veja só:
“Antes de apontar causas e consequências de acidentes e fatalidades, precisamos ter informações suficientes sobre as condições de cada um destes elementos na circunstância do acidente. Sem isso corremos o risco de lutar contra moinhos de vento, desperdiçando nossa energia em ações que não serão realmente eficazes para reduzir o número de pessoas que perdemos no trânsito todos os anos. Ao apontar para um vilão sem saber se ele é mesmo um vilão, estamos apenas nos enganando e matando uns aos outros.”
O diagnóstico do Plano Nacional de que é preciso constituir uma base de dados confiável é tardio e custou muitas vidas (e muito dinheiro do nosso bolso e do PIB) até que o governo decidisse que já passou da hora de criar mecanismos para fazer estudos sérios e parar de tratar o trânsito como uma bandeira política, dando ao tema o tratamento supra-ideológico que ele exige.
Felizmente o novo Plano Nacional prevê a criação desse banco de dados que permitirá a análise de causas e soluções. Trata-se de uma das mais de 120 medidas previstas pelo plano, que é dividido em cinco pilares — propostos originalmente pela ONU, por meio da sua Organização Mundial de Saúde (OMS) em 2011. São eles: gestão da segurança viária; vias mais seguras; carros mais seguros; usuários mais seguros e conscientes; e melhor resposta aos acidentes. A meta é reduzir o índice de mortos no trânsito à metade do atual, pelo menos, até 2028. Como cada estado tem índices diferentes, as metas são diferenciadas para cada unidade da federação (você pode vê-las aqui).
Algumas medidas são muito bem-vindas, embora tardias — caso da criação do banco de dados e de uma metodologia que permita às autoridades de trânsito identificar pontos críticos de segurança viária. Também há menção a medidas para tornar os veículos mais seguros, os motoristas mais capacitados e toda a população mais consciente — seja por meio de educação formal ou campanhas publicitárias educativas — mas alguns pontos mostram uma certa inversão de valores e revelam contradições com o discurso de introdução ao Plano Nacional. E isso é preocupante.
Comprar o remédio antes de ir ao médico
As contradições mais evidentes são as medidas que preveem a ampliação do modelo de controle de velocidade, cujo prazo é 31/12/2018, e a ampliação de 20% na fiscalização eletrônica de velocidade (e outras infrações), cujo prazo é 31/12/2019, ao mesmo tempo em que o prazo para o desenvolvimento do sistema de informações, de metodologia de identificação de pontos críticos, de unificação de preenchimento de laudos de acidentes é 30/12/2019.
Se o Ministério das Cidades diz que sem o diagnóstico pela base de dados unificada é impossível haver uma redução significativa e sustentável alteração no quadro de mortes atual, como ele pode determinar quais infrações devem ter sua fiscalização ampliada antes da criação de tal sistema?
Há realmente um interesse em reduzir as mortes, ou estamos falando de justificativas apelativas para ampliar a repressão aos condutores (e pedestres/ciclistas, que também serão multados, segundo o plano)?
E as contradições continuam na meta de ampliação de fiscalização: o Plano prevê a compra de etilômetros (bafômetros) e medidores de velocidade portáteis e estáticos até 31/12/2021. Como, então, é possível determinar a ampliação da fiscalização antes da compra do novo equipamento de fiscalização? É preciso ainda mencionar a questão da administração responsável do dinheiro dos pagadores de impostos: vamos gastar dinheiro com mais radares antes de saber se eles serão necessários? Afinal, só saberemos se eles serão necessários depois que forem feitos os estudos baseados nos dados coletados pelo sistema e metodologia unificados. Faz sentido comprar o remédio antes de diagnosticar a doença?
Prosseguindo a leitura das propostas, o Plano começa a ficar tragicômico. As medidas que exigem investimentos públicos e vontade política têm o prazo máximo do documento, 31/12/2028 — sim: dez anos de prazo; as medidas começam quando deveriam atingir seus objetivos —, enquanto as medidas administrativas ou de repressão, têm prazos mais curtos.
Em resumo: o estado é moroso no cumprimento de suas obrigações, mas é eficiente para a repressão e para tomar ações burocráticas. Veja por exemplo as propostas para reduzir os acidentes com pedestres — atualmente as maiores vítimas de fatalidades urbanas — e seus respectivos prazos:
Sim. Todas as medidas foram “empurradas” para 2028, quando o plano será encerrado ou substituído por um novo. Como podem estabelecer um prazo tão longo para medidas tão fundamentais de segurança ao pedestre, que é o mais vulnerável dos elementos do trânsito? Além disso, se a meta do plano é reduzir pela metade o número de mortes até 2028, faz sentido implementar uma medida de segurança nos últimos dias deste plano?
Para os ciclistas a situação é a mesma: o prazo para fomentar a implantação de ciclovias e ciclofaixas é 31/12/2028. A instalação de iluminação pública nas ciclovias, ciclofaixas e travessias também têm prazo de 31/12/2028. E não pense que tal prazo foi estabelecido por que estas medidas são permanentes ao longo da vigência do Plano, porque nestas situações o documento utiliza a expressão “durante todo o plano”.
E fica ainda pior, porque o prazo para “incluir o incentivo ao uso de bicicletas em campanhas de trânsito” é 31/12/2019. Ou seja: o estado pretende estimular o uso das bikes quase que imediatamente, porém concede a si mesmo o prazo de uma década inteira para fornecer a segurança necessária para os novos ciclistas que ele mesmo incentivou!
Trata-se de uma política irresponsável, que pode colocar a vida de ciclistas e pedestres em risco. Afinal, ao estimular o uso das bicicletas, o governo está dizendo que é seguro adotá-las como meio de transporte urbano, ao mesmo tempo em que admite que a segurança não é completa e dá a si mesmo um prazo de 10 anos para garantir esta segurança. Como podemos reduzir a mortalidade no trânsito com tais discrepâncias e pesos diferentes para as obrigações?
No campo da infra-estrutura, mais morosidade do estado para prover segurança, e eficiência para reprimir o condutor. Uma das metas para 31/12/2019 é “promover a redução de velocidades nas vias urbanas e nas vias rurais com características de vias urbanas (vias rurais que cruzam áreas urbanas)” — lembrando que não há evidências de que a velocidade é a causa da mortalidade, uma vez que não há estudos, como citado pelo próprio Plano Nacional.
Agora tente adivinhar qual o prazo para “melhorar a segurança de rodovias de pista simples nos trechos mais críticos em ocorrências de acidentes com mortes”? Sim: 31/12/2028. E para “identificar e tratar no mínimo os 20 segmentos críticos de 10km nas rodovias estaduais, vias municipais e rodovias federais”? Também 31/12/2028.
Ao mesmo tempo, as medidas para melhorar a formação dos condutores são apenas três (estas acima) — e elas não parecem muito incisivas. Reavaliar metodologia é diferente de implementar uma nova metodologia — que é notoriamente falha para formar condutores, como já foi dito inúmeras vezes por especialistas, que compararam a formação a um adestramento.
Como confiar no Plano?
Procure nas listas de profissões mais confiáveis segundo a opinião pública e você invariavelmente verá enfermeiros, bombeiros e professores no topo em todo o mundo. Nos últimos lugares da lista estão sempre os políticos. Há motivos de sobra para esta imagem — em especial no Brasil, onde há um volume bélico de mortes e nenhum serviço público de qualidade.
Apesar dessa imagem pessimista, o anúncio do Plano Nacional de Redução de Mortes e Lesões no Trânsito me deixou otimista em um primeiro momento. Parecia que finalmente teríamos uma política séria e suprapartidária para reduzir a mortalidade no trânsito e para, finalmente, podermos dirigir em paz. Até que comecei a ler o documento…
As contradições nas metas, a falta de comprometimento do Estado com suas obrigações e uma aparente transferência da responsabilidade exclusivamente para os condutores — visto que fala-se muito em multar, e sem base nos estudos considerados indispensáveis pelo Ministério —, nos deixam céticos quanto a eficácia deste plano.
A leitura que podemos fazer é que ele é apenas uma justificativa para engordar os cofres públicos usando artifícios que como aqueles que explicamos aqui e aqui, e culpando condutores inofensivos como se eles fossem psicopatas ao volante. Torço para que, desta vez, estejamos errados.