Sou um grande fã de distopias. Você sabe: aqueles futuros que deram errado e viraram o mundo de cabeça para baixo como o 1985 alternativo em “De Volta Para o Futuro II”. A literatura e o cinema produziram dezenas de obras sobre esse tema e eu consumi avidamente quase tudo o que pude encontrar — dos clássicos aos mais satíricos, como “1984”, “Brazil”, “THX 1138”, “Os 12 Macacos”, “O Demolidor”, “Idiocracia” e “Farenheit 451”. Se existe um futuro que deu errado na história, o negócio ganha minha atenção facilmente. E todas as distopias têm um elemento comum: a negação do indivíduo pelo totalitarismo. Isso significa, basicamente, que você não é livre para fazer o que quiser, mas apenas o que for permitido pelo poder dominante. Sempre pelo bem comum.
Lembro disso toda vez que leio algum projeto de médio prazo para “banir os carros”, “tornar os carros obsoletos” ou simplesmente para “devolver as ruas às pessoas” (como se motoristas não fossem pessoas e não merecessem os mesmos direitos só porque dirigem um carro ou moto). Lembro desses filmes e livros que eu tanto gosto e logo começo a achar que algumas pessoas devem tê-los visto como um manual. Porque alguém capaz de propor estas ideias para o mundo real só pode ser um totalitarista travestido de líder altruísta. Algo como o demônio tentando convencer a humanidade de que ele não existe.
A mais recente destas ideias vem de Helsinque, a capital da Finlândia, ironicamente um país que deu ao mundo dezenas de campeões mundiais de F1 e rali (“if you want to win, employ a finn”). A cidade nórdica simplesmente planeja tornar os carros obsoletos até 2025 — daqui a menos de dez anos! Outra vem de Hamburgo, principal porto de escoamento da produção automotiva da Alemanha, o país-berço do automóvel moderno: a cidade de 1,5 milhão de habitantes quer eliminar os carros de seu território até 2034, ou apenas 18 anos. Pobres hamburgueses recém-nascidos.
Mais uma? Oslo, a capital da Noruega já começou a reduzir o número de vagas de estacionamento no centro da cidade. O objetivo é óbvio: desestimular o uso de carros na região. Além desta, Copenhague, Londres, Paris, Milão, Dublin, Madri e Bruxelas também anunciaram medidas para se livrar daquilo que alguns administradores públicos e ativistas consideram o grande mal dos anos 2000, o automóvel.
A ideia de eliminar os carros das cidades atravessou triunfalmente a janela de Overton: há tempos deixou de soar absurda. Hoje ela é aceitável a ponto de ser proposta como uma opção para livrar as grandes cidades do caos. Projetos urbanísticos para o futuro sempre priorizam a circulação de “pessoas” (sempre como sinônimo de pedestre, embora pessoas também dirijam) e bicicletas. Uma busca rápida no Google retorna centenas de artigos sobre os benefícios de se eliminar os carros das cidades e discussões sobre a viabilidade dessa ideia. No fim, estes estudos retroalimentam a discussão, servindo como embasamento acadêmico-teórico-especialista para medidas cada vez mais restritivas aos carros — algumas mais brandas e aparentemente inócuas, outras mais radicais e severas, mas todas com um único objetivo: fazer você caminhar, pedalar ou adotar alguma modalidade coletiva/pública.
O problema disso é que, para banir o transporte individual, você precisa substituí-lo por outra modalidade. E a única alternativa motorizada é o transporte público — que, obviamente, será regulado por um grupo de poder. É aí que mora o problema: quando há apenas uma instituição ditando as regras, significa que ela tem controle total desse sistema. Total, o radical de totalitarismo.
Por esse motivo é importante haver associações de ciclistas/cicloativistas, mas também é importante haver automobilistas para defender o uso do carro, e é importante haver uma alternativa assegurada pelo Estado. É esse confronto de interesses que irá solucionar o trânsito e nos proteger de um eventual “totalitarismo da mobilidade”. É Adam Smith pedalando na calçada. Os carros não podem e nem devem ser os donos das ruas, não por que eles são velozes e furiosos, mas por que ninguém deve ter o monopólio do uso das ruas para que todos tenham direito às ruas.
Liberdade com hora marcada e roteiro
Você toparia condicionar toda a sua mobilidade de longa distância a horários e roteiros estabelecidos por outras pessoas? É isso o que acontece quando você é proibido de usar seu carro ou moto, e está longe demais para usar a bicicleta.
Ônibus, VLT, trens e metrôs são excelentes alternativas quando você tem apenas um destino, pode programar seus horários, viaja sozinho e não leva muito além de uma bolsa, pasta ou mochila. Isso é um fato evidente, e os trens, ônibus e metrôs lotados em todas as grandes cidades do planeta estão aí para provar. Mas o transporte coletivo é bom exatamente por ser o que é: uma alternativa à caminhada, às bikes e aos carros e motos.
Quando ele deixa de ser alternativa para se tornar a única opção para chegar ao seu destino, as coisas complicam. Para funcionar direito, os ônibus, trens e metrôs têm seu trajeto e horários determinados de forma que atendam o máximo de pessoas possível sem causar prejuízo à operação. É por isso que você espera o ônibus, e não é o ônibus que espera você.
Com os carros de aluguel é ainda pior, porque é a elitização do suposto altruísmo que salvará o planeta: ou você tem dinheiro, um smartphone funcional e um cartão de crédito com limite suficiente, ou não vai a lugar algum nos seus horários.
Quando você tem um carro ou moto prontos para usar quando precisar, sua viagem é planejada de acordo com os horários das suas necessidades. Mas quando você depende do transporte público, acontece o contrário: suas necessidades são selecionadas de acordo com o horário da viagem. É por isso que você vê tanta gente dormindo no ônibus, no trem e no metrô — acorde cedo ou perca o bonde. Também é por isso que a frota de motocicletas cresceu 170% nos últimos 10 anos no Brasil e a de automóveis cresceu 105% no mesmo período, enquanto o número de passageiros no transporte coletivo cai sensivelmente ano após ano.
Sem carros e motos como opção, sua “liberdade” de ir e vir é limitada à distância e ao tempo que seu corpo aguenta caminhar ou pedalar. Ou aos horários e roteiros definidos pelo poder público. Você só viaja quando e por onde for permitido, e não quando precisa e por onde precisa.
O fim do carro é uma daquelas promessas vazias de paraíso na terra. Desinventando o carro acabaríamos com a poluição sonora, com os congestionamentos, com as mortes no trânsito, os efeitos do aquecimento global seriam minimizados e todos os males causados ou influenciados pelos carros desapareceriam com eles.
Mas também perderíamos nossa liberdade de morar onde queremos, ou onde podemos pagar (tem gente que não escolhe, sabia?), para morar onde o transporte está — os subúrbios modernos são frutos da popularização dos carros. Perderíamos a liberdade de fazer tudo o que precisamos ou queremos fazer.
Perderíamos até a liberdade de acordar às duas da manhã com vontade de ir de São Paulo ao Rio de Janeiro parando em todas as cidades com a letra A no nome para tomar um Toddynho em lojas de conveniência com a cor azul no logotipo. Ou simplesmente perderíamos a liberdade de correr até a farmácia 24 horas para comprar um Plasil para seu filho de sete anos às três da madrugada de uma segunda-feira chuvosa.
Acima de tudo, banir o transporte individual é um ato elitista e egoísta. Porque a defesa dessa ideia absurda não considera que muita gente precisa de um horário menos rígido que a tabela do ônibus para, simplesmente, sobreviver e trazer um pouco de dinheiro para casa no fim do dia, para sonhar em prosperar. Não considera as senhoras e senhores que, aos 60 ou 70 anos, já não conseguem caminhar muito longe, mas têm condições de dirigir até o tanque esvaziar — e então encher o tanque e dirigir até esvaziá-lo novamente. Não considera as pessoas que têm algum tipo de deficiência, doença ou simplesmente uma fraqueza temporária para caminhar ou pedalar. Banir o transporte individual é limitar a liberdade de se deslocar. E para muita gente, essa liberdade é a única forma de se deslocar.
Se você está disposto a abrir mão dessa liberdade em nome de uma hipotética cidade mais “humanizada”, você talvez já esteja cegado por essa promessa impossível. A imperfeição das cidades é a maior prova de que elas já são humanizadas — afinal a imperfeição é a maior das características humanas —, bem como a individualidade das necessidades. Um milhão de pessoas em carros, outro milhão em bikes e mais um milhão em ônibus e milhões a pé são apenas uma demonstração prática de como somos diferentes uns dos outros. Se as cidades não comportam isso, o problema é das cidades e de quem as planeja (e quem escolhe seus planejadores), e não dos carros ou dos motoristas ou dos ciclistas.
Além disso, o que será das distopias quando tudo der errado?