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Car Culture Trânsito & Infraestrutura

Por que o trânsito da Rússia parece tão louco?

Se Aldous Huxley estava certo sobre este mundo ser o inferno de outro, a Rússia deve ser o lugar para onde vão os motoristas loucos. Mas você já se perguntou por que o trânsito russo parece tão louco? Ou melhor: será que eles são tão malucos assim?

Com o fim da União Soviética a Rússia foi acometida por uma série crise moral, algo que imagino ter a ver com o fim da “rigidez estatal” socialista e o choque de gerações. Algumas das consequências dessa quebra de valores morais foram a falta de fiscalização de trânsito e um probema de corrupção tão grave que tem até artigo na Wikipedia. A Polícia Rodoviária Russa, por exemplo, é famosa por usar a brutalidade, extorsão e corrupção como fonte complementar de renda, e há vários golpistas que agem em grupos para encenar acidentes e extorquir uma grana ali mesmo no local.

Como em qualquer outro país, quando você se envolver de alguma forma em um processo relacionado a um acidente de trânsito, os juízes serão mais facilmente convencidos se você tiver provas contundentes de sua inocência. Quando a polícia é corrupta e os cidadãos não têm ética, você precisa dar um jeito de se defender sozinho, e os russos optaram pelas famosas câmeras de painel. Os olhos que tudo veem estão em praticamente todos os carros daquele país, registrando tudo o que acontece nas ruas emoldurado pelo para-brisa do carro.

Os russos mantém suas câmeras ligadas durante todo o tempo em que estão dirigindo, então conseguem registrar os acidentes e acabam publicando os vídeos na internet — imagine se você tivesse registrado em vídeo todas as situações bizarras e todas as barbaridades do trânsito que você vê (e não vê, pois as câmeras não tem foco de atenção como o olho humano). O resultado são milhões de terabytes reproduzindo vídeos de acidentes bizarros na Rússia. Como o número de vídeos gravados por lá é assombrosamente maior do que número de vídeos de outros países, temos a impressão de que o trânsito naquele país é composto de gente maluca e bêbada que vai tentar passar por cima do seu carro sem motivo aparente depois de roubar um tanque militar para se vingar do motociclista que o fechou na esquina anterior.

Essa produção de vídeos bizarros concentrada na Rússia a popularizada pelo YouTube, LiveLeak, DailyMotion e outros serviços de streaming de vídeo, ganha uma função social semelhante à teoria de fabricação de consenso. Por exemplo: até pouco tempo atrás, muitos jornalistas faziam questão de publicar a velocidade indicada pelo velocímetro travado ao noticiar um acidente de trânsito. Isso levou as pessoas a acreditar que velocímetros “travam” na velocidade da colisão e, por isso, são um fato incontestável sobre excesso de velocidade. Criou-se esse consenso de opinião pública. Outro exemplo, é a noção de que somente a redução de velocidade irá reduzir acidentes fatais. Essa noção foi criada pela forma que os acidentes são noticiados, seja pela mídia ou pelos órgãos fiscalizadores, que concentram a informação em torno dos quilômetros por hora e minimizam, omitem ou ignoram todos os outros fatores adversos envolvidos (chuva, infra-estrutura, visibilidade etc).

 

Mas será que trânsito russo é tão louco assim?

Conhecendo essa relação entre exposição aos fatos/noticias e consenso, sempre desconfiei que talvez a Rússia não seja tão louca assim, e penso nisso especialmente quando luto por minha sobrevivência nas ruas e estradas do Brasil. Por isso decidi procurar algumas estatísticas interessantes para embasar minha teoria.

Foi chocante.

Depois de assistir qualquer um daqueles vídeos com acidentes na Rússia, você certamente teria a impressão que muita gente morre no trânsito por lá. De fato, a Rússia tem um dos índices de acidentes fatais mais altos do planeta, com 26.500 mortes no trânsito em 2013, segundo a Organização Mundial da Saúde (OMS). Se você acha que a vodka tem influência nesses índices, saiba que apenas 14,2% envolviam motoristas alcoolizados — e a Rússia é um dos países que mais consomem álcool no mundo, com mais de 15 litros por pessoa ao longo de um ano.

No Brasil, no mesmo ano e segundo as mesmas estatísticas da OMS, foram 43.800 mortes (há estatísticas brasileiras com números maiores, mas para efeito de comparação vamos usar a mesma fonte). Além da vodka, pode incluir cerveja, caipirinha e whisky com energético na conta: 21% dos acidentes tiveram relação com o consumo de álcool. E o consumo anual de álcool no Brasil é de 8,7 litros por pessoa — pouco mais da metade dos russos.

Em outras palavras: a chance de morrer em um acidente de trânsito no Brasil é ligeiramente maior que na Rússia – são 18,6 mortes por 100.000 habitantes na Rússia e 20,1 no Brasil. A proporção de mortes por carros é ainda mais assustadora: foram 27,9 acidentes fatais por 100.000 carros na Rússia, enquanto no Brasil (melhor ficar sentado) há 67,7 acidentes fatais por 100.000 carros.

Se levarmos em conta o número total de acidentes em cada país (fatais e não-fatais) a Rússia registra cerca de 200.000 acidentes em rodovias todos os anos, enquanto o Brasil teve mais de 400.000 acidentes com vítimas em 2013, segundo as estatísticas do DPVAT — 185.000 somente nas rodovias federais.

A Rússia ainda tem um agravante que não temos no Brasil: gelo e neve. Por outro lado, no Brasil somente 12% das estradas são pavimentadas.

Claro, tudo isso não significa que o trânsito da Rússia é seguro ou que a impressão de que eles são malucos é 100% fabricada. O ponto aqui é que o Brasil pode ser tão perigoso quanto a Rússia (ou até mais). Só não percebemos isso por que esse negócio de câmeras de painel (ainda) não pegou por aqui. Sorte a nossa.