Um dia os Mercedes de corrida estavam acima do peso do regulamento e alguém teve a brilhante ideia de raspar a pintura. Eles correram com o alumínio prateado exposto, ganharam a corrida e depois disso o prata virou a cor padrão dos carros alemães. Esta é a versão mais conhecida sobre o nascimento das Flechas de Prata alemãs.
Mas você nunca se perguntou porque a Audi também corria com carros prateados se ela não precisou raspar a pintura?
O motivo é claro e simples: é porque a origem da pintura prateada dos carros de corrida alemães não está na raspagem da pintura branca da Mercedes.
A lenda
A história exata é a seguinte: em 1934 o regulamento para monopostos de Grande Prêmio havia sido modificado, limitando o peso dos carros a 750 kg. Na primeira corrida do ano, em AVUS, a Auto Union fez bonito com seu monoposto de motor traseiro e 16 cilindros, mas a Mercedes abandonou a prova antes mesmo dela começar. Na corrida seguinte, em Nürburgring, durante a vistoria descobriu-se que os Mercedes W25 estavam acima do peso. Depois de um abandono, uma desclassificação por estar fora do regulamento seria inaceitável.

Foi quando nasceu a lenda: Alfred Neubauer, o lendário chefe da equipe na era dos Grandes Prêmios, ordenou que os mecânicos raspassem a pintura para aliviar o peso. Na época os carros alemães ainda usavam a cor branca como pintura nacional (leia mais sobre as cores aqui). Eles passaram a noite lixando os carros e na manhã seguinte eles alinharam no grid com o peso regulamentar e exibindo a reluzente carroceria prata. Manfred von Brauchitsch venceu a corrida e assim a cor prateada substituiu o branco como cor nacional da Alemanha nas pistas.

Essa história foi levada como certa ao longo de mais de seis décadas e a própria Mercedes-Benz a promovia. Afinal, trata-se de um ícone das pistas criado por um de seus personagens mais importantes, Neubauer, em um momento de brilhantismo diante de uma situação controversa — além, é claro, de remeter ao passado vitorioso nas pistas.
Foi mesmo assim?
Em 1999 um jornalista alemão chamado Eberhard Reuss publicou um artigo contundente afirmando que a história era falsa. A repercussão foi tão grande que a própria DaimlerBenz (na época DaimlerChrysler) organizou um simpósio em Stuttgart para revisar a lenda.

As autobiografias de Neubauer e do piloto Hermann Lang repetiam a história da raspagem da pintura, bem como o lendário engenheiro Rudolf Uhlenhaut (criador dos Mercedes de F1 e do asa-de-gaivota dos anos 1950) durante uma entrevista nos anos 1980, pouco antes de sua morte.
Contudo, o artigo de Reus trazia um depoimento do mecânico Eugen Reichle, que trabalhou na equipe em 1934, que dizia que os carros nunca foram pintados de branco e “por isso não havia pintura para ser raspada”. Outro ponto levantado por Reuss é que Uhlenhaut ainda não estava na equipe antes de 1936, por isso não teria como saber o que realmente havia acontecido.
Mas o determinante é que os Auto Union nunca foram raspados, e eles até usaram a carroceria prateada naquela primeira corrida de 1934, em AVUS. Além disso descobriu-se evidências de que não apenas a Auto Union, mas a própria Mercedes-Benz já havia trocado o branco pelo prata em outras ocasiões desde 1924. Uma dessas evidências eram as fotos do W25 durante os treinos em Avus, que mostravam um carro prata.
Durante o simpósio, o departamento histórico da DaimlerChrysler vasculhou praticamente todos os seus arquivos para verificar a verdadeira história. Parece um tanto maluco para nós, mas você sabe como os alemães são metódicos e adoram ser precisos. Além disso, trata-se da história do país no automobilismo, e não apenas um factóide.
Nessa busca a Daimler encontrou um memorando de 8 de agosto de 1924 assinado pelo diretor Max Sailer, que ordenou que o chassi e a carroceria de um de seus novos carros de corrida que estavam sendo construídos para correr em Monza fosse pintado de “Alumínio”, com banco de couro preto. A busca também não encontrou nenhuma referência ou menção à remoção da pintura.
O ponto final da história foi um segundo documento antigo, datado em 1º de março de 1934 (ou seja: três meses antes da suposta raspagem): um comunicado oficial à imprensa que apresentava o novo W25 de corrida. Nesse documento, o carro é descrito como “ein silberne Pfeil” — “uma flecha prateada”.
Como se não bastassem todas essas evidências, o simpósio ainda encontrou uma gravação de rádio da corrida em Avus realizada em 1932, na qual o narrador Paul Laven (uma espécie de Galvão Bueno alemão dos anos 1930) ao ver o Mercedes-Benz SSKL de Manfred von Brauchitsch entrar na reta fala: “Lá vem a flecha de prata!”.

Por último, eles ainda descobriram que as fotos que mostram o W25 pintado de branco (a diferença é perceptível em fotos em preto e branco, afinal o prata é a mistura das duas não-cores) foram retocadas para reforçar o mito em algum momento do passado. Os negativos mostraram que o carro era realmente prateado.
Mas então como nasceu o mito?
Duas hipóteses: a primeira é que o Mercedes W25 realmente era pesado demais e para resolver parte desse problema Neubauer mandou realmente raspar a pintura, porém era a pintura prateada/verniz do carro. A outra, é que ele pode ter simplesmente confundido os fatos com alguma outra alteração na pintura — ou até mesmo atribuído a si a ideia de usar o carro prateado.

E os Auto Union, onde ficam nessa história? Bem, na época já se usava o alumínio polido e sem pintura na aeronáutica como forma de melhorar a aerodinâmica e reduzir peso. Como o automobilismo e a aeronáutica eram relativamente ligados na época, é provável que a Auto Union (e a própria Mercedes) tenha adotado o alumínio polido sem pintura pelos mesmos motivos que os fabricantes de aviões — além de facilitar a fabricação dos carros, que dispensavam o lento processo de secagem da pintura.
Apesar de Mercedes e Audi terem consagrado o prata como a cor dos carros de corrida e esportivos da Alemanha — algo que a Porsche também adotou no fim dos anos 1940 —, a BMW e a Volkswagen nunca usaram o prata em seus carros, optando pelo tradicional branco.
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