Na semana passada (ou melhor, na semana retrasada…) Top Gear UK finalmente chegou à TV brasileira. O programa já havia sido exibido por aqui na BBC World, um canal restrito aos pacotes mais caros das operadoras e com uma temporada de atraso, mas desta vez quem o está exibindo é o Discovery Channel, um dos mais populares da TV por assinatura, e com um delay bastante aceitável de apenas quatro meses. Nós até noticiamos a estreia do programa no Zero a 300 e eu, Leo, fiquei em casa na sexta-feira à noite para assistir ao programa na TV, mas acabei um pouco decepcionado e com algumas dúvidas sobre o tratamento dado ao programa no Brasil.
Foi exatamente por isso que decidi escrever este texto.
Top Gear é (ou ao menos foi) o programa automotivo mais popular da história. Antes da saída de Jeremy Clarkson e seus comparsas James May e Richard Hammond, a audiência do programa era de 350 milhões de espectadores em todo o mundo (sem contar a audiência que baixa o programa ilegalmente por não ter acesso aos canais). A 23ª temporada foi um fracasso, mas com um novo trio, as coisas se ajustaram bem, como contamos neste post. Sua chegada à TV brasileira, em um canal de grande alcance, portanto, era algo que merecia a atenção — tanto do público fã de carros e de programas sobre carros, quanto do canal que comprou os direitos de exibição do programa.
Mas, como disse mais acima, fiquei decepcionado com o tratamento do Discovery ao programa. Primeiro, a divulgação da estreia foi feita pela produtora do programa, a BBC Worldwide, e não pelo canal por assinatura. Por algum motivo, a nota divulgada à imprensa dizia que o programa estava estreando e que seriam exibidos dois episódios em sequência; primeiro o programa de estreia da 24ª temporada, e depois o segundo programa. Mas quando o programa começou pontualmente às 22:20, foi exibido o segundo episódio da temporada. O que aconteceu?
Como eu descobriria mais tarde, a estreia ocorrera na sexta-feira anterior, dia 7 de julho, e não dia 14 de julho como divulgado.
Sem entender o motivo, continuei assistindo ao programa. O quadro de abertura era sobre o Alfa Romeo Giulia Quadrifoglio Verde, pilotado por Chris Harris pelas estradas da Escócia e depois na famosa pista do programa, onde o jornalista/apresentador desafia o BMW M3 para uma corrida em linha reta que leva o Alfa aos 300 km/h. Eu já havia visto o programa em março, então estava esperando a parte do quadro onde Harris é desafiado por Reid a colocar o Giulia de lado através de uma parede com um buraco no formato do carro, mas após a corrida contra o M3 o programa voltou para o estúdio, onde o trio recebeu o ator David Tennant (o 10º Doctor Who). O que está acontecendo aqui, Discovery? O programa foi editado? Sim.
O divertido quadro com o Alfa Romeo, no qual Chris Harris destroi o para-brisa do carro para o delírio do zoeiro Rory Reid, e a hot lap com o Stig foram cortados para favorecer a entrevista (que também foi editada de forma resumida e quase não fala de carros) e a hot lap de um ator que somente os fãs brasileiros de Doctor Who reconhecem. Pior: ficou um grande nonsense no meio do programa. Ninguém aqui em casa entendeu esse trecho e tampouco foi engraçado, porque é “too british” pra gente.
O momento no qual Chris Harris destroi o para-brisa do Alfa… e que o Discovery não mostrou
Eu entendo que a Discovery quer (ou precisa) transmitir um programa de 50 minutos em 40 minutos com intervalos comerciais, mas se você tem que fazer uma edição mais curta do programa, que seja cortando as partes desinteressantes. É como fazer o compacto de um jogo de futebol mostrando apenas laterais e escanteios e tirar os gols. Não faz sentido.
Depois o problema foram os cortes para os comerciais. Por ser produzido para a TV, Top Gear já tem suas pausas naturais, mas a Discovery decidiu fazer uma edição “espertinha”. Por exemplo: na corrida entre o Porsche 911 de Chris Harris e o Lamborghini Huracán de Matt LeBlanc, os apresentadores precisam largar com a capota aberta e chegar com a capota fechada. LeBlanc decide fazer a volta inteira com a capota aberta e deixar para fechar antes de cruzar a linha e por isso arranca na frente em disparada, enquanto Harris fica parado na largada pois decide fechar a capota antes e fazer uma flying lap para compensar. O problema é que só descobrimos isso depois do intervalo comercial, porque a Discovery achou que seria legal mostrar o Huracán disparando e o Porsche não, cortando para o intervalo antes de mostrar porque Harris não arrancou.
Um corte desses é como começar a contar uma piada e pedir licença para ir ao banheiro e depois continuar. É como separar sujeito de predicado com uma pausa. Não é legal: é tecnicamente errado, porque você quebra a fluidez da cena como ela foi planejada pelo diretor. Não é como congelar a imagem antes da chegada para guardar o suspense, é somente um corte esquisito. Ou você faz o corte antes, ou espera a linha de chegada.
O corte foi exatamente assim
O programa segue desta forma, com edições e cortes estranhos e, diferentemente do que foi anunciado, não houve dois episódios em sequência. Foi apenas um. Ou melhor, 2/3 de episódio se você considerar 47 minutos reduzidos a 40 minutos com três (ou foram quatro?) intervalos de três minutos. Curiosamente, o programa começou às 22:20 porque às 21:30 foi exibida uma reprise de uma reprise de “Dupla do Barulho”.
E isso me leva a outra observação: a Discovery tem o Discovery Turbo, que é seu canal dedicado aos carros, motos, automobilismo e máquinas afins. Mas por algum motivo Top Gear passa no final da “Sexta de Motores”, o segmento temático que o canal faz em seu horário nobre. Certamente tem a ver com o valor da inserção comercial, que deve ser mais alta devido à maior audiência do Discovery Channel, permitindo que a emissora possa bancar a licença do programa. Mas será que não dá para exibir a versão completa no Discovery Turbo? Ou ao menos uma reprise?
Sei que tudo isso custa dinheiro, e já senti na pele como o licenciamento em dólares pode ser cruel com um veículo de comunicação que ganha em reais, mas vamos lá, caras. Vocês são o Discovery Channel, dá para fazer melhor que isso. Nós esperamos mais que isso. Vocês já merecem aplausos por terem bancado Top Gear no Brasil, mas não estraguem tudo.
A impressão que tive depois de ver Top Gear pela primeira vez na TV é que o Discovery Channel parece não conhecer o perfil do público do programa. Isso ficou claro ao cortar o Alfa Romeo (o “Alfa Romeo Giulia com mais de 500 cv”, como dizia o comunicado à imprensa) para priorizar David Tennant. Com a edição “exótica”, o programa ficou perdido. O primeiro quadro terminou abruptamente, a entrevista não fez sentido algum, e o restante seguiu na mesma tocada.
Então temos: um desencontro de informações somado a uma edição estranha somada a um certo desconhecimento do seu público-alvo e um horário em que o público-alvo está chegando em casa ou saindo para a balada ou atendendo compromissos familiares ou simplesmente dormindo para trabalhar no sábado. É a receita para o fracasso.
Top Gear é audiência garantida se você entregar o melhor deles (palavra de quem foi um dos primeiros legendadores e tradutores do programa no Brasil e conquistou um bom público apenas falando sobre eles), como vocês verão nos comentários deste texto. Com raras exceções, as entrevistas sempre foram o ponto fraco do programa para o público estrangeiro. Há muitos convidados conhecidos apenas localmente, e o público quer mesmo é ver os carros, motores, roncos, piadas, e cenas incríveis, não uma conversa descontraída com um ator de teatro britânico.
Você não está ansioso pela entrevista com Tamsin Graig?
A tradução está legal; não tem nenhuma “base de rodas” ou “volante de direção”, “cabeça dos cilindros” ou qualquer outra bizarrice semântica. A dublagem é natural, boa de ouvir. Mas não cortem o programa de uma forma bizarra como estes primeiros episódios. Não subestimem o gosto do público achando que David Tennant é mais interessante que um Alfa Romeo andando de lado, ou que seremos atraídos por uma super entrevista com Tamsin Graig ou Tinie Tempah. Queremos ver um Alfa Romeo sendo destruído e acelerado e usado e abusado. Só isso.
Não estamos pedindo muito, estamos?