Mais uma vez saúdo a todos que acompanham meu interminável e melodramático Project Car! Agradeço as palavras de apoio, os ombros amigos e as histórias semelhantes divididas. Proprietários de carros espoliados por lanterneiros desse mundo, uni-vos!
Encerrei a parte anterior me sentindo um cidadão português com a partida de Dom João VI rumo ao Brasil ao fugir de Napoleão: a ver navios. Recuperado do impacto inicial do desaparecimento do lanterneiro, o jeito foi continuar o serviço com o pai do mesmo, cuja visão não era perfeita, mas que dava conta dos detalhes do serviço. Essa etapa durou uns dois/três meses, até que o senhorzinho resolveu ir atrás do filho e também me deixou na mão embora eu estivesse absolutamente em dia com os pagamentos.
Para ajudar, os bancos, forros de porta e mais algumas peças do carro estavam na casa deles, mas consegui obtê-las de volta facilmente porque a esposa/mãe da dupla já não aguentava mais aquela confusão de coisas ocupando a casa.
Carro parado, trabalho estagnado, estava sem opções até que o dono da oficina (terceiro endereço do SP-2) se dispôs a terminar o pouco que faltava e executar seu ofício: pintor. E que pintor! O trabalho dele era muito bem feito, fato este que me agradava. Mas havia uma condição: ele não montaria o carro porque não era a especialidade dele bem como não se sabia o que havia restado de peças após tantas mudanças.
Serviço tratado, era hora de pensar a cor. Meu espírito conservacionista, que almejava um dia a sonhada placa preta desapareceu, e como sou da teoria de “perdido por pouco, perdido por muito”, resolvi radicalizar. O caminho para a placa preta tinha vários obstáculos. O primeiro era que alguém teve a brilhante ideia de fechar as depressões existentes ao longo da lataria do carro para acomodar os frisos de alumínio, como se vê na foto abaixo.
O problema é que o serviço foi feito com chapas de aço (onde precisava ter feito, não fez!) e a retirada das mesmas não era garantia que os espaços poderiam ser refeitos com qualidade e em condição de receber os frisos. Some-se ao fato de que eu não tinha um único friso, quanto mais as DEZ peças que compõem o conjunto. Desde que comprei o carro procurava um kit completo, mas ninguém que os anunciava tinha todas as peças, então o risco de nunca completar o conjunto tornava a tarefa praticamente impossível.
Nesse meio tempo, o motor foi retirado para ser feita a retífica, posto que ainda era standard e seu funcionamento não estava ideal. E aí veio o segundo obstáculo para a placa preta pois descobri que o motor não era “BL”, mas sim um modesto motor de Variant, o “BV” de 1,6 litros. Em suma, tinha um SP-2 com o desempenho raquítico do SP-1 sem valer o mesmo tanto que essa raridade. É muito azar para só uma alma atormentada.
Desta forma, a conclusão a que cheguei é que não me seria possível atingir a perfeição da restauração, seja pela falta de peças, transtornos na execução dos serviços ou ausência de dinheiro. Então, ao menos eu personalizaria o carro da forma que fosse possível, mas de modo condizente com as características do veículo. A alternativa que me pareceu viável seria fazer algo semelhante à ele: o SP-2 Dacon.
Essa personalização específica deve ter virado a cabeça das pessoas na década de 1970, pelo resultado final (o uso da cor preta, por exemplo) e por ser fruto da já famosa concessionária Dacon, cuja história deve ser conhecida, mas para quem ainda não sabe, tem aqui uma boa leitura da mesma. Além da personalização estética dos SP-2, a Dacon também fez alterações na mecânica que talvez trouxessem a pegada esportiva que se esperava do carro saído de fábrica. Há notícias também do desenvolvimento do projeto do SP-3 com a utilização do motor refrigerado a água do Passat, que acabou frustrada em termos comerciais pelo alto custo.
Para tanto, bastaria, na minha visão simplista, pouca coisa: cor preta e rodas “mexerica”. As alterações mecânicas também não seriam impossíveis e poderiam vir em momento posterior, afinal de contas, um projeto nunca termina. Discutida a cor (eu queria Preto Cadillac, mas o pintor ameaçou abandonar o serviço), optamos pela tinta preta usada no Stilo. As razões dessa escolha eram devidas à facilidade de aplicação e de eventuais retoques, sem falar que o brilho seria discreto, uma vez que chamar a atenção não era a minha vontade, se é que um SP-2 já não chame atenção o bastante por si mesmo.
Como o carro era branco, algumas medidas se faziam necessárias para a regularização do mesmo, e por esta razão eu já tinha a nota fiscal da tinta e teria também a da mão de obra da pintura. Assim, quando o carro estivesse pronto, bastaria realizar nova vistoria e tudo se resolveria. Enquanto a pintura era feita, tratei de dar vida a outras partes do carro, como o sofrido painel. Sobre o mesmo, achei curioso vir pintado nele a data de fabricação, 16/01/1974, o que deve indicar ser meu carro do começo desse ano. O capoteiro (ou tapeceiro) que fez o revestimento dele teve uma tarefa ingrata, pois exigi que não houvesse uma única costura visível na peça.
Finalmente o carro estava pintado! A cor caiu bem, não tinha muito brilho, bem como eu queria. Sob a luz do sol as partículas metálicas da pintura se destacavam, mas nada chamativo. Uma vez pintado, enviamos o carro para o mecânico voltar com o motor para o lugar, e depois disso, resolveria como fazer a montagem das peças.
E aí, um grande mal veio para o bem. A volta do motor para o carro foi tranquila, até mesmo porque não há o que complicar com um VW a ar. Enquanto decidia como resolver a questão da montagem do carro, o mesmo ficou ali, no quintal do mecânico, junto com outros carros. Mas, a enteada do mecânico, já uma balzaquiana, resolveu descontar todas as suas mágoas e frustrações do relacionamento da mãe com o dito profissional bem no meu carro, e ARRANHOU toda a lateral do mesmo, do lado do passageiro. Acredito que não deve ter sido difícil passar um prego numa pintura feita há duas semanas apenas.
No entanto, esse percalço abriu uma oportunidade melhor para o carro. Eu havia recebido a informação de uma oficina que trabalhava com lanternagem e pintura de carros antigos, e talvez eles se dispusessem a montar o carro para mim. O dono era um senhor muito bacana, experiente, e contava apenas com um lanterneiro e um pintor, profissionais simples, mas muito sérios. Quando me passaram a referência da oficina e fui lá para tratar do serviço, tinha um Gordini “saindo do forno” e o trabalho estava muito bom. O problema era pegar um serviço dessa natureza, e para tanto o dono havia me cobrado o preço de um rim (acho que o esquerdo) para fazer o serviço desde que eu providenciasse as peças porventura faltantes.
Mas, quando contei o acontecido com o carro, ele renegociou o valor do trabalho para um valor global menor se eu deixasse o carro ser pintado lá. Desisti de contratar um pistoleiro para eliminar lanterneiros, mecânicos e enteadas por achar melhor encaminhar o carro para eles. Detalhe: era no mesmo quarteirão da oficina do mecânico e eu nunca tinha atentado para a existência da mesma.
Então o carro foi encaminhado para a segunda pintura em pouco mais de dois meses. Serviço rápido, bem feito, e a montagem teve início. Nesse meio tempo resgatei as peças ainda existentes, invadindo a antiga oficina, porque o imóvel foi entregue pelo pintor da primeira pintura e ele não se responsabilizava pelas coisas que não eram dele. Antes que o proprietário limpasse o que ficara para trás, entrei na oficina com um conhecido que tinha as chaves e fiz uma “caça ao tesouro”. Resgatei várias coisas, mas algumas se perderam (ou foram vendidas ou descartadas) e o prejuízo foi grande: teclado do painel, retrovisor interno e os limpadores de para-brisa. Não faça as contas, é uma despesa considerável. Aí vai uma crítica aos “profissionais” do ramo: boa parte não tem o devido cuidado com a armazenagem das peças dos carros, que muitas vezes custam mais que o faturamento de um mês de trabalho.
O carro foi montado, faltando basicamente essas peças. Da pintura foi para o eletricista, que adaptou comandos de caminhão no painel e assim faróis e ventilação poderiam ser usados. Mas bateu desânimo continuar avançando porque o momento não era financeiramente oportuno. Com isso, o carro ficou parado, não evoluí para cuidar do interior e deixei o tempo apontar uma solução. Para piorar, o número do chassi sumiu, parecia ter sido corroído, ou seja, tinha o documento de um carro branco mas o veículo era preto, e como os vidros não eram gravados, nem havia qualquer outra indicação que aquele carro preto era o mesmo do documento, a ideia da troca de cor ficou mais complicada.
Passou cerca de um ano e meio, até que, numa das constantes pesquisas por peças, achei o conjunto dos frisos, as dez peças e elas poderiam ser enviadas para mim lá de Blumenau. Não tive dúvidas, arrematei as mesmas, afinal de contas já eram cinco anos à procura e não correria o risco de perder a oportunidade! Cheque especial não é para emergências? Passado um tempo (recuperação do rombo no orçamento), adquiri do mesmo vendedor os limpadores do para-brisa, o teclado do painel e assim o carro poderia ficar bem próximo da originalidade.
Uma outra aquisição importante foi a do botão da buzina. A original é de borracha e deve haver apenas umas três disponíveis no mundo, após 41 anos do fim da fabricação do carro. Portanto, foi adquirida uma paralela, cujo encaixe foi preciso mas que é dura como um pau. O importante é que é funcional e respeita a estética do carro. Comprei também o rádio da época, o que deu um pouco de dor de cabeça. Achar rádio original para VW da década de 1970 não é complicado nem caro, mas há modelos variados. Após muita pesquisa e consultas em fóruns, o escolhido foi o modelo “Rubi”, o qual, pelas fotos de manuais e carros nunca restaurados parece ser o modelo certo.
Deixar o carro bem original era a ideia, não sou adepto de personalizações em carros tão raros. Veículos com maior volume de produção eu acho bastante válido personalizar, dar a cara do dono, mas em um carro que teve pouco mais de dez mil unidades, quem pode deixá-lo o mais próximo do original tem um dever a ser cumprido.
Já tive intenção de habilitá-lo para placa preta, mas o tanto que ainda me custaria atingir um patamar condizente (em termos financeiros), aliado ao fato da desmoralização de tal “deferência”, me fez desanimar por completo a fazer o esforço para dar a ele a placa em questão. Pelo que já vi nas ruas, revistas e programas de televisão, imagino que os antigomobilistas devem ter um desgosto enorme ao verem carros não originais com a mesma identificação dos veículos conservados a duras penas.
Portanto, considerando a possibilidade de deixar o carro bem próximo do original, e o fato de não ter mais o número do chassi gravado, era hora de ressuscitar o SP-2 e tentar devolvê-lo à sua glória, e por isso ele iria para a sua terceira pintura, desta vez na cor condizente: branco lótus. Voltei à mesma oficina (onde de vez em quando passava para bater papo) e tratei com o dono que levaria o carro para nova pintura.
Negócio fechado, viajei alguns dias depois e vendo as notícias da cidade pela internet qual não foi a minha surpresa ao saber que o dono da oficina havia falecido em um acidente de trânsito! Ela havia saído atrás de umas peças para um cliente e sofreu um ataque cardíaco enquanto dirigia. Logicamente, além da perda sentida, afinal de contas era uma pessoa que tinha se tornado querida, certamente o projeto do carro sofria mais um revés.
Com isso, enquanto a família e os dois profissionais que trabalhavam no lugar não decidiam o destino da oficina, fiquei em compasso de espera. Levar o carro para outro lugar, além dos riscos de uma nova “relação”, me parecia uma falta muito grave com o que fora combinado. Passadso alguns meses, família e funcionários conseguiram resolver a legalidade da situação e a oficina continuou, desta vez nas mãos do pintor e do lanterneiro.
Finalmente pude levar o carro, e tempos depois tive a boa notícia que o número do chassi foi localizado pelo pintor, absolutamente intacto debaixo da “batida de pedra” que o primeiro lanterneiro tinha aplicado sem muito cuidado. No entanto, pelos constantes trabalhos menores que entravam na oficina (pintor e lanterneiro precisavam se reerguer), a pintura do carro só aconteceu cerca de um ano e meio depois.
2017. O carro foi pintado. Os frisos de alumínio, com a fita adesiva vermelha devidamente colocada, estão na lataria. Os mais atentos perceberão que a linha deles não coincide com a linha da lanterna traseira. Em razão da inexistência dos nichos para a fixação dos mesmos, os frisos foram colocados um pouco mais acima, para que as portas pudessem ser abertas e fechadas normalmente. Lamento, puristas. Para piorar, não foram encaixados (saía de fábrica com a lataria furada, pois há pequenos pinos nos frisos para encaixe no carro) mas colados com fita dupla face, larga e de excelente qualidade. No interior, apenas o tecido do teto foi colocado para que o para-brisa fosse posto, ainda está sem carpete, mas tem os forros de porta originais. Há retrovisores nas duas portas, porque não consigo mais dirigir olhando apenas pelo lado do motorista e meio do vidro.
Aliás, preciso instalar o retrovisor central, que é específico do carro e tem apenas uma ranhura para encaixá-lo no teto, sem esforço ou mesmo parafusos. Em nome da segurança (e como os cintos originais foram extraviados), coloquei cintos retráteis de três pontos. Como o carro tem duas portas, e pela posição e tipo dos engates (especialmente os fêmea), medi e achei adequado colocar os cintos do Kadett. A instalação foi tranquila, há um espaço na lataria que esconde a máquina, e mesmo com o ponto superior não sendo elevado como nos carros atuais o cinto trabalha perfeitamente. O funcionamento está redondo e os engates curtos do câmbio passam a ideia da esportividade que o motor deveria ter.
O carro está pronto? Não e sim. Não porque ainda há o que fazer, mas que é pouco diante do que foi feito, e é isso que faz a graça do projeto, o nunca concluir. E sim, está pronto, porque agora, finalmente, eu posso entrar nele, afivelar o cinto, ligar o motor e sair pelas ruas, do jeito que eu sempre quis.
Por Clenio Santos, Project Cars #403
Uma mensagem do FlatOut!
Clenio, nós concordamos com você: devolver um carro assim raro à sua originalidade é, de fato, uma obrigação de seu proprietário. Ficamos realmente felizes em ver mais um SP2 voltando à vida e divertindo seu proprietário como ele deveria ter feito desde o dia em que saiu da fábrica. Parabéns pela conclusão!