No fim da década de 1970, quando quase todas as motos de competição haviam se rendido à selvageria dos dois-tempos, e Soichiro Honda queria provar um ponto: que as motos de quatro tempos poderiam ser tão competitivas quanto, mesmo que tivessem motores mais complexos e com menor rendimento específico. Para o Sr. Soichiro, era algo óbvio: se a maioria das motos de rua da Honda usava motores quatro-tempos, por que os de competição deveriam ser dois-tempos? Na visão dele, era como se a Honda não confiasse em sua própria tecnologia para vencer corridas.
Já fazia dez anos que a Honda estava longe das corridas de motos — eles abandonaram os Moto GP em 1967 para se dedicar ao projeto da Fórmula 1 — e, nesse tempo fora das pistas, a Federação Internacional de Motociclismo (FIM) havia decidido que motores com mais de 500 cm³ não podiam ter mais de quatro cilindros para competir em provas de Grand Prix.
Para a Honda, que ficou famosa por suas motos de corrida com motor de seis cilindros, o retorno às pistas era um novo desafio, uma vez que eles precisavam de um novo motor de quatro cilindros em vez de seis. Para isso, eles precisavam de duas coisas: 1) provar a competência dos quatro-tempos e 2) contornar o limite de quatro cilindros. Além, é claro, do objetivo fundamental de vencer corridas.
Anunciada em 1977, a moto foi batizada NR500 – sendo que “NR” era a sigla para “New Racing”. E ela de fato era completamente inédita, desenvolvida do zero pela HRC (Honda Racing Corporation), antiga divisão responsável pelas motos de corrida da Honda.
Embora o motor seja o elemento que colocou a NR500 na posteridade, a motocicleta trazia outras inovações. Primeiro, o quadro – que era do tipo monocoque, com a carenagem dianteira fazendo papel estrutural. Os freios eram de carbono-cerâmica e o garfo dianteiro, invertido. Para abaixar o centro de gravidade e reduzir o arrasto aerodinâmico, as rodas eram de 16 polegadas, fabricadas pela Comstar, e exigiram o uso de pneus feitos sob medida (o padrão era usar rodas de 18 polegadas). O resultado era uma moto mais rígida e mais leve – a estrutura pesava metade de um quadro tubular convencional.
Mas era o que ficava aninhado no chassi que roubava a cena: o motor V4 – que, em todos os sentidos exceto o literal, era na verdade um V8. Agradeça pela engenhosidade do engenheiro Suguru Kanagawa, criador da usina: a princípio, levando em conta a limitação imposta pelo regulamento, Kanagawa projetou um motor V8 com quatro pares de cilindros ligados, formando um “8” – ideia que eventualmente deu lugar a quatro cilindros ovais (ou quase ovais, já que as paredes laterais eram retas) com duas velas e oito válvulas cada um. Os pistões também eram ovais, com direito a duas bielas, algo necessário para estabilizá-los durante o movimento reciprocante, já que eram mais largos.
Mas a escolha por pistões ovais não era apenas uma questão de “transformar oito cilindros em quatro”. Havia uma razão técnica mais sofisticada – as válvulas, dispostas em fila, permitiam uma queima muito mais eficiente. Como André Dantas explicou no Autoentusiastas:
“A disposição alongada de múltiplas válvulas lado a lado permitia aumentar a razão entre a área de passagem de gases e a área da câmara de combustão muito acima da possível de obter com cilindros circulares.
A disposição dos dois bancos de válvulas paralelas mantinha a facilidade de acionamento conseguido nos motores convencionais, mas o formato da câmara não era deformado como ocorria nestes últimos, melhorando a característica antidetonante da câmara de combustão.
Por fim, a turbulência obtida dentro da câmara alongada, e embalada por bancos de válvulas com angulação apropriada era mais alta e consistente, melhorando a queima da mistura e diminuindo ainda mais a tendência à detonação.”
No papel, tudo muito bonito – e nas fotos também. Mas nem tudo era beleza: o plano era que o motor entregasse 130 cv, mas essa potência só veio no final da vida da NR500, em 1983. Na estreia, quatro anos antes, ela tinha “só” 110 cv. Claro, a 16.000 rpm – uma velocidade impressionante, levando em conta o formato inusitado dos pistões. Nas versões posteriores, o limite de giro ficou ainda maior: as últimas NR500 chegavam às 19.000 rpm para produzir 130 cv.
A verdade é que a NR500 nunca foi uma motocicleta competitiva – seu desempenho nas pistas foi praguejado por problemas mecânicos, em boa parte por conta da complexidade do projeto. E, de certa forma, por conta da falta de experiência dos envolvidos: a Honda decidiu montar uma equipe jovem e sem medo de ousar – e que, em última instância, acabou dando origem a pessoas importantíssimas dentro da empresa. Kanagawa, responsável pelo motor, veio a se tornar chefe da HRC. E Takeo Fukui, supervisor do projeto, foi presidente da Honda entre 1998 e 2003.
Com o passar do tempo, algumas das inovações da NR500 foram consideradas… inovadoras demais. O monocoque, por exemplo, exigia que se soltassem 18 parafusos para dividir a estrutura ao meio e ter acesso ao motor, o que era impraticável durante uma corrida. Por isso, um quadro convencional de aço tubular foi adotado. Já as rodas de 16 polegadas mostraram-se um investimento desnecessário por causa dos pneus sob medida, e por isso deram lugar a rodas de 18 polegadas como em todas as outras motos que competiam nos Grand Prix.
Em 1983, a última encarnação da NR500 recebeu um quadro de fibra de carbono – que nunca chegou a ser usado em uma corrida, mas mostrou-se influente a ponto de, em 2002, a MotoGP adotar o mesmo material nos quadros das motos.
Sem sucesso com a NR500, a Honda acabou cedendo e, já no início de 1983, estreou outra moto: uma três-cilindros dois-tempos que acabou conquistando o título para a fabricante. Mas não foi a última vez que os pistões ovais foram usados: em 1987, a NR750 apareceu de surpresa entre as participantes das 24 Horas de Le Mans (para motos, claro), agora rebatizada com o sobrenome “Endurance”.
Promissora, ela terminou os treinos de classificação na segunda posição, mas não chegou ao fim da corrida. Talvez por isso a Honda tenha esperado algum tempo para lançar sua versão de rua, batizada simplesmente NR – ela veio em 1992 e teve 300 unidades fabricadas para homologação da variante de competição, que àquela altura nem corria mais.
A Honda NR pesava 222 kg a seco e 239 kg em ordem de marcha, um número elevado até para os padrões de hoje, mas o motor com comandos de geometria variável baseado na velocidade do motoro entregava saudáveis 127 cv a 14.000 rpm, com 6,6 kgfm a 11.000 rpm – suficientes para que a monstra (no melhor sentido possível) fosse de zero a 100 km/h em 2,2 segundos, com máxima de 257 km/h.
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