Como você deve lembrar, agora a gente vive em um mundo onde a Rolls-Royce fabrica um SUV. Sinal dos tempos: depois que a Bentley rendeu-se à “SUVização” com o Bentayga, a Rolls não teve alternativa senão adentrar ao mundanos segmento dos utilitários esportivos com o Cullinan. E eles o fizeram ao vivo, com toda a pompa do mundo, mostrando no telão imagens do protótipo atravessando desertos de areia e gelo para garantir que, além de ser o SUV mais luxuoso do mundo, o Cullinan tivesse capacidade off-road real.
Foi a quebra de uma tradição de mais de um século: os Rolls-Royce são carros de luxo, sedãs e cupês (e por veze s conversíveis). Mas foi um movimento friamente calculado, e a marca fez questão de afirmar e reafirmar seu compromisso em fazer do Cullinan um legítimo Rolls-Royce. O “Rolls-Royce dos SUVs”, como espertamente o definiram.
Observando a tudo isto, tivemos a ideia de recordar outras vezes em que fabricantes tomaram decisões polêmicas e quebraram tradições com novos modelos, mudando permanentemente a percepção de suas marcas pelo público. Algumas se saíram bem, e outras nem tanto. Vamos começar a lista com algumas fabricantes que, coincidentemente, são todas alemãs.
Mercedes-Benz e BMW: tração dianteira
Mercedes-Benz e BMW sempre mantiveram uma rivalidade feroz, assim como seus fãs. Mas em algo ambas as partes costumavam concordar: para ser um Mercedes-Benz ou BMW de verdade, um carro precisava ter tração traseira, garantindo comportamento dinâmico envolvente e empolgante mesmo em modelos cuja proposta não fosse declaradamente esportiva. Mesmo as versões mais mansas (ou mancas) de modelos como o Mercedes Classe C e o BMW Série 3 tinham o dever de ser bem acertados nas curvas e capazes de escorregar a traseira nas curvas (mesmo que o dono não soubesse exatamente o que fazer ao volante de um carro de tração dianteira, mas isto é outra história).
Então, em 1997, a Mercedes-Benz decidiu ousar e lançou seu primeiro modelo de passeio com tração dainteira: o Classe A W168, hatch com perfil de minivan que buscava oferecer uma alternativa mais acessível e prática a quem queria um Mercedes-Benz. Os mais tradicionalistas não gostaram muito, mas a imprensa especializada aprovou a iniciativa – e o design.
Depois de capotar no famoso “teste do alce”, que é realizado pela imprensa sueca e consiste em desviar repentinamente de um obstáculo grande, simulando um encontro com um alce (ou qualquer outro animal grande) na estrada, o Classe A passou por mudanças na suspensão e recebeu controles eletrônicos geralmente reservados aos modelos mais caros, como o Classe S, finamente adquirindo um comportamento dinâmico adequado a um Mercedes.
Por mais que os puristas não tenham curtido mesmo, os Benz de tração dianteira vieram para ficar. A segunda geração do Classe A, a W169, foi lançada em 2004 e produzida até 2012, e a terceira veio em 2013. Esta, de código W176, marcou uma revolução, abandonando o perfil de minivan em favor de uma carroceria hatchback mais tradicional e esportiva, com dois volumes bem definidos. Além disso, pela primeira vez o Classe A ganhou um modelo AMG de verdade, com motor 2.0 turbo de 360 cv (385 cv com a última atualização) e tração nas quatro rodas. E ainda deu origem a um sedã de tração dianteira (ou 4×4), o CLA; e a um crossover, o GLA.
No caso da BMW a coisa demorou um pouco mais – alguns entusiastas da marca bávara conseguem ser ainda mais radicais que os fãs da estrela de três pontas, e a própria BMW apostava mais na personalidade esportiva de seus carros do que em sua imagem de marca premium.
Assim, o mais próximo que a BMW tinha do Classe A até não muito tempo atrás eram seus hatches de tração traseira – primeiro o Série 3 Compact, baseado no E30 e lançado em 1996 como modelo 1997; e depois o Série 1, apresentado em 2004. Acontece que, mais ou menos nesta época, acontecia algo que seria crucial para o surgimento dos primeiros BMW de tração dianteira: a aquisição da marca Mini pela BMW.
O desenvolvimento do Mini moderno foi dividido entre Rover e BMW na virada do século 21, e o resultado foi um hatch retrô com motor transversal e tração dianteira, com um toque de esportividade. O carro ganhou as ruas em 2000 e não demorou para conquistar o público. Apesar de ter sido desenvolvido pela BMW, que assumiu todo o projeto perto do fim de seu desenvolvimento, o Mini ainda era produzido na Inglaterra, respeitando a tradição.
Anos depois a BMW percebeu que poderia aproveitar o conceito de outras formas. Assim, em 2014 foi lançado o Série 2 Active Tourer, uma minivan de cinco ou sete lugares feita sobre a mesma plataforma do Mini de terceira geração, introduzido no mesmo ano.
Com estilo característico da BMW, o Active Tourer não é voltado ao público mais radical da BMW, e sim àqueles que buscam o design e o prestígio da marca em um veículo para o dia a dia. E ele tem vendido bem na Europa – e certamente que o fato de o BMW M2, sucessor espiritual do incrível BMW 1M Coupe, ser um dos carros mais divertidos de guiar já feitos nos últimos anos. O Série 2 “de verdade” não tem a ver com o Série 2 Active Tourer, visto que usa a mesma plataforma do Série 1 hatch atual.
Agora, também existe um Série 1 de tração dianteira. Desenvolvido na China para o mercado local, em parceria com a chinesa Brilliance, o Série 1 F52 também usa como base a plataforma do Mini, porém tem um visual bem mais tradicional que o Série 2. Dito isto, ele provavelmente não sairá da china tão cedo.
Audi: R8 de tração traseira
Apesar de ser fazer parte do trio de ferro alemão, a Audi não tem a mesma tradição com tração traseira. É o oposto, na verdade: os primeiros Audi, da década de 70, tinham tração dianteira – até que, em 1980, veio o Audi Quattro e seu sistema de tração integral feito com base em um off-roader da Volkswagen, e aquilo mudou tudo.
O Audi Quattro deixou evidente a superioridade dos carros com tração integral sobre os carros de tração traseira nos estágios de rali, e o fez deixando todo mundo para trás no WRC entre 1982 e 1984, colocando na história nomes como Walter Röhrl, Michèle Mouton, Hannu Mikkola e Stig Blomqvist. A partir daí, os Audi de alto desempenho passaram a vir de fábrica com tração nas quatro rodas.
Isto incluiu o Audi R8, primeiro supercarro das quatro argolas, lançado em 2006. Feito com base na plataforma do Lamborghini Gallardo, porém com modificações importantes por parte do pessoal de Ingolstadt, o Audi R8 de primeira geração podia ser encontrado com motor V8 de 4,2 litros e 420 cv ou, a partir de 2009, com um V10 de 5,2 litros e 532 cv, sempre com tração integral Quattro.
A geração atual, porém, decidiu quebrar esta tradição. No Salão de Frankfurt do ano passado a Audi apresentou o R8 RWS, série especial limitada a 999 unidades que alia o motor V10 de 5,2 litros, agora com 540 cv, a um sistema de tração traseira com câmbio de dupla embreagem e sete marchas. Sem o sistema de tração integral, o supercarro ficou 50 kg mais leve, chegando aos 1.590 kg.
Se surpresa, esta quebra de tradição foi muito bem recebida pelos fãs da Audi. Dito isto, ela não representa uma mudança radical no direcionamento da Audi, que só fez um R8 de tração traseira porque trata-se de um modelo de nicho com motor central-traseiro – o que facilita as coisas do ponto de vista prático, filosófico e mercadológico. Tudo bem, por nós.
Porsche: motor dianteiro, SUV e sedã de luxo
A gênese da Porsche está intimamente ligada ao conceito de motor boxer pendurado na traseira. Mesmo antes de fundar a fabricante de esportivos Ferdinand Porsche já apostava no layout – o VW Fusca, criado por ele e lançado em 1938, já era assim. O Porsche 356, criado pelo filho de Ferdinand Porsche, Ferry Porsche, seguia o mesmo conceito e tinha um motor até parecido com o boxer da VW. E o Porsche 911, lançado em 1963 e concebido por Alexander Porsche, neto do Dr. Ferdinand Porsche, aperfeiçoou a receita colocando dois cilindros a mais no motor.
Desde então, todo Porsche 911 fabricado seguia o mesmo perfil (literalmente), e trazia um flat-6 na traseira. Isto é sagrado até hoje, mesmo com diferentes adições à receita – como turbos nos anos 70, tração integral nos anos 80 e motor a água nos anos 90. Mas, para garantir a existência do 911, a Porsche precisou quebrar estas tradições de formas diferentes ao longo de sua existência.
Começou ainda na década de 1970, quando o Porsche 928 foi proposto – um grand tourer com motor V8 na dianteira. A ideia era substituir o 911 gradualmente, mas o carro acabou se tornando um modelo à parte que sobreviveu até os anos 90.
Depois veio o Porsche Boxster, um roadster de motor central-traseiro que foi lançado em 1996 como um modelo mais acessível – medida tomada para tentar tornar a marca mais lucrativa, porque a Porsche estava passando por sérios problemas financeiros. A situação deu uma melhorada, mas ainda estava longe do ideal e no fim dos anos 90 a Porsche corria riscos reais de ser obrigada a pedir falência. E foi por isso que, em 2002, foi lançado… um SUV.
O Porsche Cayenne parecia um contrassenso: um carro com a marca Porsche, porém em um segmento que não costuma empolgar os entusiastas – o dos SUVs de luxo. O purismo em excesso pode ser nocivo, e a Porsche sabia disto. Ao dar aos que queriam um SUV de luxo a possibilidade de comprar um Porsche, a fabricante conseguiu atingir um público valioso. Muitas vezes, quem comprava um Cayenne já tinha um Porsche 911 na garagem – e provavelmente era uma pessoa interessada demais em salvar a marca para se importar com tradição e heritage.
Graças ao Cayenne a Porsche teve lucro suficiente no início dos anos 2000 para continuar produzindo e melhorando não apenas o 911, mas também seus outros modelos. Temos a impressão de que, felizmente, os entusiastas amadureceram e entendem agora que é melhor ver sua fabricante de esportivos favorita vendendo um SUV do que fechando as portas.
O Cayenne também deu à Porsche segurança para investir na expansão de sua linha. E foi por isso que, anos mais tarde, em 2009, a Porsche decidiu colocar em prática uma ideia conceitual dos anos 90 e colocou nas ruas o Panamera, uma espécie de sedã de luxo com perfil de cupê e motor dianteiro.
O Panamera foi um sucesso entre o grande público logo de cara, mas demorou a conquistar os entusiastas por causa de seu design não muito bem resolvido, com uma traseira “corcunda” que nos impedia de apreciar a ideia de um sedã de luxo da Porsche.
Esta questão foi resolvida com o lançamento da segunda geração, em 2016. Ao pegar emprestados elementos de design do 911 a Porsche conseguiu “consertar” o visual do Panamera, mantendo as linhas gerais da dianteira, porém tornando a traseira muito mais harmônica e proporcional. Era para ter sido assim desde o início.
E hoje, talvez aqueles mesmos radicais que criticaram a Porsche por decidir fazer um SUV e um sedã de luxo hoje sonhem em ter uma garagem com um exemplar de cada modelo da linha. Talvez, no caso do Panamera, seja a perua Sport Turismo. A variante de teto longo foi lançada em 2017, e tem na versão Turbo S e-Hybrid a perua mais potente do mundo: seu V8 biturbo de quatro litros entrega 550 cv sozinho, mas a potência sobe para 680 cv em conjunto com um motor elétrico.
Dá para dizer que a galera de Stuttgart acertou.