Um dos lançamentos mais importantes do Salão de Frankfurt 2019 foi o Honda E. Apesar do nome problemático na hora da de escrever (ansioso pelo dia em que os carros elétricos terão nomes normais…), o carrinho é deveras interessante.
O Honda E faz parte de um movimento recente entre os carros elétricos: ele tem um design mais tradicional, mais parecido com um carro normal – que não grita “ei, pessoal, estou dirigindo um carro elétrico!” E isto é ótimo. É assim que deve ser. Claro, ele tem câmeras no lugar dos retrovisores, a fim de melhorar sua eficiência aerodinâmica e, consequentemente, reduzir o consumo de energia. Mas, fora isto, se alguém trocasse aquela seção em preto brilhante na dianteira por uma grade de verdade, poderíamos até acreditar que, debaixo daquele capô, pulsa um bom e velho motor a combustão interna. Aliás, se a Honda colocasse um motor downsized ali – que tal o 1.5 turbo de 173 cv do HR-V? – eu já encomendaria o meu. De algum jeito.
Obviamente, a Honda não tirou do vácuo o visual retrofuturista do pequeno hatchback. Ele tem uma inspiração bem definida – em um carro que também foi pioneiro: o primeiro de todos os Honda Civic. Fora a evidente conexão estética entre ambos, há a importância histórica que eles têm.
O Honda E será o primeiro carro elétrico dedicado da Honda. Ele não será acessível, mas tem a proposta de ser um carro urbano estiloso, prático, econômico e altamente tecnológico. É quase como um elétrico de imagem, feito para impressionar como prévia do futuro que nos aguarda logo ali; mas também para nos conquistar pelo que ele tem de familiar: o acabamento em madeira, o design “quadradinho”, os faróis e lanternas redondos (como em muitos carros dos anos 1970), o tecido dos bancos. É como se a Honda dissesse, “o futuro está aí e é incrível, mas ele não é tão diferente do passado. Fiquem tranquilos”.
Da mesma forma, o primeiro Civic marcou uma revolução na Honda em 1972. Ele foi o primeiro carro normal (e não um kei car, com restrições de tamanho, peso e potência) feito pela Honda a ser bem sucedido. O carro que mostrou ao mundo que a Honda era mais do que motos estilosas e minicarros para o mercado doméstico japonês.
É claro que, desde o início, a Honda mostrou que tinha potencial para fazer bons carros. O primeiro automóvel de passeio fabricado pelos japoneses foi um esportivo bem bacaninha – o Honda S500, um roadster inspirado no que havia de melhor no Reino Unido, equipado com um quatro-cilindros de 531 cm³ e 45 cv a 9.500 rpm. Com tração traseira e apenas 680 kg, dizem que ele era uma delícia de guiar – e ainda chegava aos 130 km/h. Tanto que, nos anos seguintes, ele deu origem aos sucessores S600 e ao S800, que usavam a mesma receita, mas tinham motores maiores.
Depois, em 1967, veio o Honda N360 – o primeiro Honda “não-esportivo”. Ele era um pequeno sedã de dois volumes (mais ou menos como o Mini original) equipado com um minúsculo dois-cilindros de 354 cm³ e 31 cv. Ele só conseguia chegar aos 105 km/h, o que era bem pouco, mas suficiente para uso urbano no Japão.
Em 1969 – exatos 50 anos atrás – ele se tornou o primeiro carro da Honda importado oficialmente para os Estados Unidos, embora se chamasse N600 e tivesse um motor maior, de 598 cm³ e 45 cv. Sua velocidade máxima era 130 km/h, um número mais aceitável para os padrões ocidentais.
No entanto, o Honda N600 ainda era um carro pequeno e fraco demais para ganhar o mundo. E foi por isso que a Honda o pegou como ponto de partida para criar o Civic.
A ideia era simples e engenhosa: ampliar a competente plataforma do N600 em todas as dimensões. Assim, o Honda Civic tinha 3.551 mm de comprimento, 1.505 mm de largura e 1.327 de altura, além de 2.200 mm de entre-eixos. Para efeito de comparação, o N600 tinha só 2.995 mm de comprimento, 1.295 mm de largura e 1.346 mm de altura, com exatos 2.000 mm de entre-eixos. Claro, o Civic ainda era um carro muito pequeno – para os padrões da época, porém, era este o tamanho padrão.
Visualmente, o Honda Civic original era como uma versão maior do N360/N600, com o mesmo perfil de dois volumes e a mesma identidade visual, porém com faróis menos “saltados” acima do capô. A semelhança do Honda E com o clássico é discreta – não uma tentativa de emular o passado, mas sim homenageá-lo usando elementos seguramente modernos. É o sweet spot do design retrô. A carroceria podia ser sedã de duas ou quatro portas (novamente de dois volumes) ou hatchback de duas ou quatro portas.
No interior, a similaridade com o Honda E fica mais evidente. O design em “dois andares” do painel de instrumento, o acabamento em madeira e o desenho dos bancos são claras referências, bem como a cabine arejada graças à área envidraçada generosa.
O motor, por outro lado, tecnicamente dobrou de tamanho: eram 1.170 cm³ e quatro cilindros, com montagem transversal, acoplado a uma caixa manual de quatro marchas. Com cerca de 50 cv, ele não estava muito distante em potência do que se veria no segmento até o início dos anos 2000, e era suficiente para manter velocidades seguras em rodovia, com a ocasional esticada.
Já em 1972 o Civic começou a ser vendido no Reino Unido, onde a mão inglesa facilitava a adaptação ao novo mercado. Em 1973, o Civic com o volante do lado esquerdo começou a ser vendido oficialmente nos Estados Unidos, onde era vendido apenas como hatch.
A estréia do Civic nos States coincidiu com a chegada de um novo motor o de série, com 1.237 cm³ e 52 cv, seguido de um motor 1.5 (1.488 cm³) de 53 cv em 1955. Este motor trazia no cabeçote o inovador sistema CVCC, de Compound Vortex Controlled Combustion – traduzindo, “Combustão Controlada por Vórtice Composto”. Na prática, isto queria dizer que, além das válvulas de admissão e escape normais, cada cilindro tinha uma válvula de admissão extra, menor, próxima à vela de ignição.
https://www.youtube.com/watch?v=Qimj5XlGCcQ
Por ela, entrava uma mistura ar-combustível mais mais rica do que aquela que ocupava o restante do cilindro. O efeito disto era uma combustão mais eficaz, que aproveitava a totalidade do combustível dentro do cilindro, reduzia emissões e aumentava a eficiência. O efeito do CVCC era tal que o motor sequer precisava de um catalisador para passar nos testes promovidos pelo governo americano.
O elevado padrão de construção e acabamento do Honda Civic, os motores econômicos e modernos, a robustez típica dos carros japoneses, e o preço acessível faziam dele o carro perfeito para o mercado norte-americano pós-Crise do Petróleo. Ele chegou na hora perfeita, e conseguiu desbancar ofertas locais feitas por fabricantes acostumadas com automóveis grandes, sofisticados e beberrões. Mas o público sabia o que era mais vantajoso – e modelos como o Chevrolet Vega e o Ford Pinto não conseguiram o mesmo sucesso. Em certo ponto, o Civic fez nos EUA dos anos 1970 o mesmo que o Fusca havia feito na década anterior.
E ele até virou astro de cinema: em “Loucademia de Polícia” (Police Academy), o clássico da Sessão da Tarde lançado em 1984, o enorme Moses Hightower tem aulas de direção em um Civic – um carro que mal consegue acomodar seus 2,01 metros de altura.
https://www.youtube.com/watch?v=Em2rxxtlIrM
Claro, seria injusto dizer que o Honda Civic foi o único responsável por isto – na verdade, ele foi parte de um fenômeno chamado Invasão Japonesa, uma onda de importados que também colocou o Toyota Corolla e o Datsun 510 nas ruas dos EUA. Nem mesmo um recall por problemas de corrosão, que atingiu quase 1 milhão de unidades, manchou sua reputação – na verdade, a Honda mostrou saber lidar bem com este tipo de situação, oferecendo a troca gratuita dos para-lamas ou o reembolso aos clientes.
Em 1975 começou a ser oferecida uma perua de quatro portas, equipada com o motor CVCC, apenas no Japão. Era o primeiro indício de que o Honda Civic daria origem a uma família maior, com outras opções de carroceria. E, nos EUA, o hatch de quatro portas começou a ser vendido em 1977. Paralelamente, a Honda começou a fabricar um carro maior e mais luxuoso – o Honda Accord, que serviu de inspiração para a segunda geração do Civic, lançada em 1979.
A Honda, com uma abordagem mais sofisticada, quer repetir o fenômeno com o Honda E. Se eles vão conseguir… vamos ter que esperar alguns anos para saber.