Em 1981 a Audi mudou a história do rali mundial quando apareceu para temporada do WRC daquele ano com um cupê com tração integral. Até então a tração nas quatro rodas havia sido usada somente de forma experimental em competições de velocidade ou era reservada aos utilitários. Naquele primeiro ano, com o carro ainda em desenvolvimento, foram apenas três vitórias, mas a partir de 1982, quando o Grupo 4 foi extinto e substituído pelo Grupo B, a Audi largou na frente com sua tração integral e ganhou o título de construtores daquele ano.
A história se repetiu em 1984, mas àquela altura seus rivais já haviam sacado que a melhor receita para vencer na terra era usar as quatro rodas para tracionar o carro e mais: Peugeot e Renault também perceberam que o motor no meio do carro o tornava mais equilibrado. A Lancia também preparava sua versão do layout e até mesmo os britânicos enrolados da MG fizeram o seu. A Audi precisava fazer algo.
E ela fez. Ou melhor dizendo: ela tentou fazer. Apesar de ter criado os primeiros carros de corrida de motor central-traseiro nos anos 1930, ainda como Auto Union, o alto escalão de Ingolstadt não gostou da ideia de produzir um carro de rali com o motor atrás dos bancos dianteiros. Afinal, desde o início da década eles vinham dizendo que a melhor configuração para enfrentar terrenos hostis como lama densa e rampas cobertas por neve e gelo era usando o motor dianteiro com tração nas quatro rodas, exatamente como seus carros de rua eram oferecidos. Um modelo de motor central-traseiro além de bagunçar toda a linha de produtos, poderia ser visto como uma incoerência no discurso da marca. Se é tão bom, porque o carro de corrida tem motor atrás?
Sem a aprovação dos chefes, os engenheiros da Audi Sport tentaram redistribuir o peso do carro de outra forma — e foi assim que o Audi S1 nasceu, com motor de alumínio, carroceria de carbono e kevlar e entre-eixos curto. O carro ficou bem mais equilibrado e competitivo, mas não o suficiente para derrotar os rivais com o motor no meio do chassi. O problema estava justamente nas curvas de baixa velocidade, onde o motor pendurado na dianteira fazia o carro sair de frente (sub-esterçar) demasiadamente.
Diante da situação frustrante, os engenheiros e mecânicos da Audi Sport simplesmente ignoraram o veto dos chefes e começaram o desenvolvimento de um protótipo do Quattro com o motor no lugar onde eles precisavam: entre os eixos, compartilhando a cabine com o piloto e o navegador. O projeto foi liderado pelo então chefe da Audi Sport, Roland Gumpert (sim, o criador do Gumpert Apollo) em total sigilo.
Apesar de soar impossível, eles conseguiram criar um carro sem que o alto escalão da Audi tivesse conhecimento do projeto. Para isso, eles usaram um campo de provas da Porsche na Tchecoslováquia enviando as caixas de componentes e ferramental identificadas como “Kenya test” como se fossem destinadas ao Safari Rally para não chamar a atenção dos mecânicos e engenheiros não-envolvidos no projeto. O campo de provas ficava a cerca de 350 km ao sul de Praga, além da “Cortina de Ferro”, mas Gumpert tinha um bom relacionamento com as autoridades e os engenheiros locais e, por isso, o desenvolvimento ocorreria sem o risco de ser descoberto. Exceto pelo fato de um fotógrafo tcheco chamado Jiří Jermakov ter descoberto o local dos testes.
Ele fez quatro fotos do carro na Tchecoslováquia e, percebendo que havia conseguido um segredo dos bons, entregou as imagens a um amigo organizador de ralis locais, que enviou as fotos ao editor de uma revista local chamada Svět Motoru (Mundo dos Motores), que tentou vender as fotos à Audi Sport. No fim das contas, o fotógrafo foi obrigado a entregar os negativos e acabou “expulso por vontade própria” da cooperativa de fotógrafos em que trabalhava. Eram bons mesmos estes contatos de Roland Gumpert…
Uma das fotos de Jiří Jermakov
As fotos foram guardadas, mas os fatos acabaram se espalhando. A Audi tentou organizar um teste na Áustria, próximo à fronteira com a Alemanha, mas ao chegar na região a equipe da Audi Sport topou com vários fotógrafos e jornalistas e acabou dando meia-volta e retornou à Alemanha.
Nessa mesma viagem de volta, a equipe encontrou uma estradinha rural secundária, com asfalto danificado, e decidiu fazer o primeiro shakedown do carro com Walther Röhrl, a grande estrela da Audi que, até então, não conhecia o carro nem o projeto. Enquanto Röhrl descobria as qualidades do carro e pensava ter finalmente encontrado o Audi que o levaria de volta à briga pelo título, um fotógrafo austríaco conseguiu capturar uma imagem do carro sem que a Audi percebesse.
A fatídica publicação
A foto acabou publicada em uma revista austríaca e chegou ao conhecimento do alto escalão da Volkswagen-Audi. Ferdinand Piëch, então chefe da Audi, foi chamado para dar explicações, foi multado pela direção do grupo e viu os dois protótipos serem destruídos por um buldôzer — uma cena chocante e dolorosa para aqueles engenheiros e mecânicos que fizeram um projeto com potencial vencedor, mas não-autorizado pelos chefes. Foi uma espécie de recado para que aquilo não se repetisse.
Felizmente o projeto não foi em vão. A FIA planejava criar o novo Grupo S, que teria a mesma filosofia do Grupo B, porém com maior enfoque na aerodinâmica (lei mais sobre ele neste post). Parte do aprendizado do Audi Quattro de motor central foi adotado no novo protótipo que seria batizado RS 002 (há quem acredite que o Audi Quattro de motor central seria chamado de RS 001).
O regulamento exigia apenas 20 exemplares de homologação e era bem mais permissivo que o do Grupo B, mas com os acidentes que levaram ao cancelamento da categoria, o Grupo S também acabou cancelado e os protótipos foram todos desmanchados. Aliás, todos exceto um, que hoje fica no museu da Audi em Ingolstad — e teve sua história contada aqui no FlatOut em 2014.
Quanto às fotos tomadas do fotógrafo tcheco, elas ficaram guardadas até 2005, quando finalmente foram publicadas na britânica MotorSport Magazine e na tcheca Rallye Magazin.