Certamente, a era de ouro dos esporte-protótipos foi o fim da década de 1980, durante as regras do Grupo C. Competiam máquinas lendárias como o Porsche 956/962, o Jaguar XJR-9 e o Mazda 767B — carros tão potentes e rápidos, com motores de quase 800 cv e velocidades acima dos 400 km/h, que no início da década de 1990 eram quase tão populares quanto os Fórmula 1.
Essa fase ficou marcada por um regulamento considerado por muitos especialistas como um dos mais inteligentes e equilibrados da história do automobilismo. Em vez de limitar potência ou aerodinâmica diretamente, a FIA impôs um sistema de consumo máximo de combustível para cada prova — o que forçou equipes a buscar eficiência ao mesmo tempo em que exploravam ao máximo o desempenho. Isso permitiu a criação de soluções extremamente avançadas: carros extremamente longos e baixos, com túneis de efeito solo gigantescos, e motores turboalimentados altamente eficientes.
O Porsche 956, por exemplo, foi o primeiro protótipo a integrar completamente o efeito solo no design, usando túneis Venturi que geravam níveis de downforce inéditos até então. Já a Jaguar e a Nissan apostavam em enormes motores V12 naturalmente aspirados, que produziam uma sonoridade marcante e desempenho linear, enquanto a Sauber-Mercedes trouxe tecnologia aeroespacial e sistemas de resfriamento inéditos. Era um ambiente que incentivava verdadeira inovação, algo rarefeito no automobilismo moderno.
Além disso, o traçado original de Le Mans — ainda sem as chicanes nas Hunaudières até 1990 — permitia que esses protótipos atingissem mais de 400 km/h por longos segundos, resultando em recordes que jamais serão repetidos. Em 1988, o WM-Peugeot projetado apenas para velocidade máxima registrou 405 km/h na reta. Esses números eram tão altos que levantaram preocupações de segurança e levaram à criação das chicanes, além de acelerarem o debate sobre limites tecnológicos e custos crescentes.
Outro fator determinante foi a participação simultânea de equipes de fábrica e privadas. Fabricantes como Porsche, Jaguar, Sauber-Mercedes, Toyota, Mazda e Nissan competiam lado a lado com equipes independentes que, graças ao regulamento relativamente acessível, conseguiam adquirir chassis competitivos e motores confiáveis. Esse equilíbrio entre “gigantes” e “garagistas” criou grids enormes — muitas vezes com mais de 40 protótipos — e corridas imprevisíveis.
Em 1993, porém, a FIA decidiu extinguir a categoria antes do início da temporada. Competir no Grupo C havia se tornado caro demais depois das mudanças de 1989, que estimularam o uso de motores derivados da Fórmula 1. As equipes independentes foram as primeiras a debandar, seguidas pelas grandes equipes de fábrica.
A decisão de alterar o regulamento foi profundamente controversa. Até 1988, o Grupo C se baseava na limitação de combustível, o que permitia enorme variedade de motores — V6 turbo, V8 aspirados, rotativos Wankel, V12 — todos competitivos de maneiras diferentes. Com a mudança, a FIA impôs o uso de motores atmosféricos de 3,5 litros, equivalentes aos da Fórmula 1 da época. Isso transformou a categoria em algo próximo a uma “F1 com carroceria”, eliminando a diversidade técnica que a tornava especial.
O problema é que desenvolver um motor aspirado de 3,5 litros era inviável para equipes privadas e extremamente custoso para fabricantes. Um motor de F1 exigia tolerâncias minúsculas, ligas metálicas caras, cabeçotes complexos e regimes de giro acima de 12.000 rpm. Era um salto financeiro brutal. Enquanto o Grupo C tradicional podia usar motores derivados de modelos de rua ou basados em plataformas existentes (como o V6 Porsche ou o rotativo da Mazda), o novo regulamento obrigava projetos 100% exclusivos — algo que apenas gigantes como Mercedes e Peugeot tinham capacidade de bancar.
Além disso, os novos protótipos de 3,5L se tornaram mais frágeis. O Peugeot 905, o Mercedes C291 e o Jaguar XJR-14 eram extremamente rápidos, mas tinham durabilidade inferior e eram bem mais sensíveis ao desgaste — o oposto do espírito de provas de 1.000 km e 24 horas.
A audiência também caiu. Os carros ficaram mais parecidos com monopostos cobertos, e muitos fãs sentiram que o charme do Grupo C clássico havia sido destruído por decisões políticas. A imprensa europeia criticou duramente Jean-Marie Balestre, então presidente da FIA, acusando-o de tentar forçar um padrão “F1-centrado” no endurance.
Com custos em alta, grids diminuindo e fabricantes desistindo (como Nissan e Jaguar), o campeonato entrou em colapso. Em 1992, algumas etapas tiveram somente 11 carros largando — número inaceitável para provas internacionais. Em 1993, já não havia massa crítica para continuar, e a categoria foi encerrada.
Embora os protótipos do Grupo C ainda tenham recebido permissão para participar das 24 Horas de Le Mans em 1993, houve um desfalque nas categorias internacionais de endurance naquele ano. De forma semelhante ao que acontece hoje, com os protótipos LMP1 perdendo espaço para os carros da classe GTE, o fim do Grupo C abriu caminho para que uma categoria de turismo ganhasse destaque. Surgia a BPR Global GT Series — uma das categorias mais interessantes dos anos 1990.
A BPR foi fundada por Jürgen Barth, Patrick Peter e Stéphane Ratel; as iniciais de seus sobrenomes deram nome à categoria. O trio tinha experiência de sobra: Barth foi vencedor das 24 Horas de Le Mans em 1977 com o Porsche 936 e participou da prova 13 vezes entre 1971 e 1993, enquanto Peter e Ratel organizavam a categoria monomarca da francesa Venturi.

A criação da BPR não foi apenas um movimento esportivo, mas também econômico e político. Após o colapso do Grupo C, as grandes fabricantes estavam retraídas e o endurance ficou sem uma categoria de base acessível. O FIA Sportscar Championship havia sido encerrado, e as equipes privadas estavam órfãs — com equipamentos, pilotos e mecânicos sem destino. Foi nesse vazio que a BPR surgiu, oferecendo uma alternativa simples, barata e extremamente atraente.
O objetivo era resgatar o espírito original das corridas de GT: carros baseados em modelos de rua, cupês esportivos reconhecíveis e custos razoáveis. Ratel acreditava que o público se conectava mais com carros “reais” do que com protótipos futuristas — uma filosofia que mais tarde se tornaria a base do GT3 moderno. A ideia era: “pegar uma Ferrari, Porsche ou Venturi, adicionar segurança, reforços estruturais, amortecedores de competição e pronto: vá correr pelo mundo”.
O modelo de negócios também foi revolucionário. Enquanto categorias da FIA cobravam valores altíssimos de inscrição, a BPR adotou blocos de custos controlados e permitiu que equipes privadas competissem de maneira sustentável. A presença das monomarcas Venturi (França) e Porsche Cup (Alemanha) forneceu um estoque imediato de carros elegíveis, criando grids cheios sem exigir investimento das fabricantes. Isso atraiu dezenas de pequenas equipes europeias, pilotos amadores com recursos e profissionais de médio porte — um ecossistema que não existia desde os anos 1970.
Os planos eram ambiciosos: criar uma categoria capaz de recolocar as provas de longa duração no calendário do automobilismo, não apenas na Europa, mas em outras partes do mundo. Para isso, planejavam usar os carros de suas categorias monomarca, divididos em classes conforme potência e envolvimento das fabricantes. As classes iam de GT1 a GT4, e a maior parte do grid inicial era composta por modelos da Venturi e da Porsche. Era apenas a temporada inaugural, com oito corridas e sem títulos oficiais.

Outro elemento fundamental foi a estrutura operacional. Peter, responsável pela logística, montou um calendário que privilegiava autódromos acessíveis e tradicionais da Europa, reduzindo custos de deslocamento. Barth atuava como o elo técnico, ajustando o regulamento para acomodar diferentes carros sem favorecer fabricantes específicos. Ratel cuidava da parte comercial e atraía patrocinadores, garantindo que a categoria crescesse sem depender de uma federação centralizada.
Esse modelo “independente” foi um grande diferencial: sem interferência da FIA, a BPR podia experimentar, adaptar, simplificar regras e reagir rapidamente às necessidades das equipes. Essa flexibilidade permitiu que a categoria evoluísse naturalmente, atraindo cada vez mais supercarros e aumentando o interesse das fabricantes — algo que se tornaria um dos fatores-chave de sua transformação posterior no FIA GT.
Dito isso, as corridas realizadas em circuitos como Paul Ricard e Montlhéry, na França; Spa-Francorchamps, na Bélgica; e Suzuka, no Japão, com duração entre 3 e 4 horas (ou 1.000 km no caso de Montlhéry e Suzuka), mostraram-se bastante populares. Tanto que, em 1995, o grid deixou de ser quase 100% composto por carros com o Porsche 911 Carrera RS e o Venturi LM 600 e passou a incluir Ferrari F40 GTE, McLaren F1 GTR, Chevrolet Corvette (preparado pela Callaway), Jaguar XJ220 e Lotus Esprit. Até mesmo o De Tomaso Pantera, em uma de suas últimas configurações, correu na Global GT.
A temporada de 1994 havia revelado dois pontos importantes: o formato de provas longas com supercarros era extremamente atrativo ao público, e o regulamento era flexível o bastante para atrair fabricantes que estavam sem espaço no automobilismo internacional.
A Ferrari foi a primeira grande marca a perceber essa oportunidade. A F40 GTE, desenvolvida pela Michelotto, usava o chassi da lendária F40 de rua, mas com turbocompressores maiores, eletrônica revisada, suspensão de competição e aerodinâmica ampliada. Ela rapidamente se tornou um ícone da BPR e pavimentou o caminho para que outros fabricantes considerassem participar.

O McLaren F1 GTR foi ainda mais decisivo para a evolução do grid. Originalmente concebido como carro de rua sem qualquer intenção de competir, o F1 acabou sendo adaptado para a categoria após pedidos insistentes de clientes. Mesmo “estrangulado” para ficar nos 600 cv, o V12 BMW de 6,1 litros era absurdamente eficiente, e o chassi de fibra de carbono o tornava mais leve e robusto do que qualquer concorrente. O impacto foi imediato: o F1 GTR redefiniu as expectativas para um GT e se tornou a referência técnica da categoria.

O Jaguar XJ220 trouxe outra filosofia: motor V6 biturbo compacto e foco em velocidade final. Já o Lotus Esprit GT1 seguia a tradição de leveza e agilidade da marca inglesa. O Corvette Callaway e o Pantera eram representantes do “estilo americano e italiano raiz”: poder bruto, motores grandes, mas menor refinamento aerodinâmico, o que trazia diversidade técnica e visual ao campeonato.
A BPR se tornou uma espécie de “parque de diversões dos supercarros”, combinando desde projetos modernos de fibra de carbono até máquinas mais tradicionais baseadas em modelos da década anterior. Essa mistura explosiva criava grids visualmente espetaculares e com enorme variedade sonora — V8, V10, V12, flat-six, biturbos, aspirados — ajudando a categoria a explodir em popularidade entre 1994 e 1995.
O regulamento liberal da categoria de topo, a GT1, permitia modificações extensas, desde que a potência não ultrapassasse 600 cv — o que garantia uma variedade fascinante de motores: o V12 naturalmente aspirado do McLaren F1, que precisava de leve restrição, pois a versão de rua tinha 636 cv; o flat-six biturbo de 3,6 litros do Porsche 993 GT2; o V6 biturbo do Jaguar XJ220; o V8 biturbo da Ferrari F40; e o V8 Ford 302 do Pantera.

Essa diversidade técnica — somada ao retorno de grandes marcas ao endurance — transformou a BPR na categoria de GT mais empolgante do planeta. E o melhor ainda estava por vir: a temporada de 1995 atrairia mais pilotos internacionais, elevando o nível esportivo e abrindo caminho para a explosão global da GT1.
Mas o que tornou a competição especial naquele ano foi a presença do Brasil no calendário. Quer dizer: as provas nos autódromos internacionais de Curitiba e Brasília eram de exibição, mas isto não tirou o brilho da presença de dezenas de superesportivos de corrida em solo brasileiro. Pelo contrário: a corrida contou com a participação de mais brasileiros: Nelson Piquet, Antonio Herman, Flávio Trindale, André Lara-Resende, Roberto Keller, Roberto Aranha e, novamente, Maurizio Sala. Nelson Piquet, revezando o volante do McLaren F1 GTR inscrito pela BMW do Brasil nas duas provas com Johnny Cecotto.
A realização das etapas brasileiras foi resultado direto de meses de negociações lideradas por Stéphane Ratel e por Nelson Piquet, que sempre manteve forte interesse em promover o automobilismo de alto nível no país. Para a BPR, levar a categoria à América do Sul era estratégico: o Brasil tinha público massivo, tradição no esporte e autódromos capazes de receber provas internacionais, mas estava há anos sem receber uma categoria de grande apelo europeu.


O impacto foi enorme. Nunca antes o público brasileiro havia visto, juntos, carros como McLaren F1 GTR, Ferrari F40 GTE, Porsche 911 GT2, Lotus Esprit GT1 e Jaguar XJ220 GT. Para muitos, foi a primeira e única vez que esses ícones da “Era GT1” rodaram em solo sul-americano. As arquibancadas de Curitiba ficaram lotadas, e o paddock virou um festival de entusiastas, mecânicos estrangeiros, pilotos e colecionadores. Era um nível de maquinário e profissionalismo que o Brasil não recebia desde o auge do antigo Campeonato Mundial de Marcas nos anos 1980.
A etapa de Curitiba, especialmente, ganhou destaque pela presença massiva da imprensa e pela atuação de Piquet. O tricampeão mundial pilotou o McLaren F1 GTR #8 da BMW do Brasil — um dos carros mais avançados do grid — e atraiu a atenção de emissoras de TV, patrocinadores e do público geral. A corrida virou um evento nacional, com ampla cobertura da mídia e transmissão ao vivo, algo raro para provas de endurance no país.

Já a etapa de Brasília, disputada no Autódromo Nelson Piquet, foi marcada pelo calor extremo, que testou a resistência dos carros GT1. Muitos pilotos estrangeiros declararam surpresa com a condição abrasiva do asfalto e com a dificuldade de acertar carros pensados para pistas europeias em um traçado tão atípico. Ainda assim, a corrida se tornou uma celebração: paddock aberto, acessibilidade ao público e um contato raríssimo com os supercarros mais desejados da época.
Para os fãs brasileiros, aquele momento foi histórico: foi a única ocasião em que a “era de ouro da GT1” esteve no país. E até hoje muitos entusiastas consideram as 2 Horas de Curitiba e Brasília alguns dos eventos mais marcantes que o automobilismo nacional já recebeu.
Para a temporada de 1997 chegou a ser estudada a possibilidade de incluir o Brasil no calendário da BPR Global Series, com Nelson Piquet como um dos principais incentivadores. Mas aquelas corridas brasileiras acabaram sendo as únicas, porque em 1997 aconteceriam mudanças: com o aumento da participação de fabricantes na categoria, a FIA decidiu que a BPR Global GT deixaria de ser organizada pelo trio fundador e passaria a ficar sob os cuidados da própria federação.
Assim, em 1997 foi disputada a primeira temporada do chamado FIA GT Championship, que trazia um calendário quase totalmente novo e incluía provas em Hockenheim, na Alemanha; Mugello, na Itália; A1 Ring, na Áustria; e Laguna Seca, nos EUA. A FIA GT era dividida em duas categorias, GT1 e GT2, e tinha como novidades o Mercedes-Benz CLK-GTR, o Lotus Elise GT1 e o TVR Cerbera. A maioria destes carros também estava de acordo com as regras das 24 Horas de Le Mans, embora a corrida em La Sarthe não fizesse parte do campeonato.
A transição, porém, não foi apenas um detalhe administrativo — foi uma mudança profunda no DNA da categoria. A partir de 1996, com a entrada do Porsche 911 GT1 e do Dodge Viper GTS-R, ficou claro que a BPR estava se tornando grande demais para continuar sendo gerida de forma independente. Os orçamentos começaram a explodir, as montadoras passaram a investir em departamentos técnicos dedicados aos GT1 e a categoria estava rapidamente perdendo seu caráter “privado” e relativamente acessível.

A FIA viu ali uma oportunidade de retomar o controle do endurance internacional, ocupando o vácuo deixado pelo Grupo C anos antes. A federação incorporou a BPR, profissionalizou a organização, padronizou inspeções técnicas e criou um calendário mais longo e mais global, com etapas em três continentes. O resultado imediato foi uma aceleração da evolução técnica: os GT1 se tornaram, na prática, protótipos com faróis.

O melhor exemplo desse salto é o Mercedes-Benz CLK-GTR. Ele não era um carro de rua adaptado: o modelo de rua foi construído apenas depois, em número mínimo, para cumprir homologação. O Porsche 911 GT1 seguiu o mesmo caminho, sendo um híbrido de 993 na frente e 962 na traseira. Ou seja, o GT1 havia deixado de ser “carros esportivos modificados” e se transformado em “protótipos com forma de cupê”.
Essa mudança marcou o início do que muitos chamam de “segunda era de ouro” do GT1, mas também plantou as sementes da sua destruição: a escalada tecnológica e financeira se tornou insustentável em poucos anos. A FIA GT de 1997 e 1998 representou o auge absoluto da categoria em velocidade, sofisticação e participação de fábrica — com carros que rivalizavam protótipos LMP em performance — mas também foi o começo do fim para os GT1 de verdade.
Ainda assim, sem a BPR nada disso teria existido. A ousadia de Barth, Peter e Ratel criou a base que permitiu o renascimento das corridas de GT e moldou o caminho para as classes GT modernas (GT2, GT3 e GT4), que ainda hoje seguem a filosofia original da BPR: carros reconhecíveis, grids cheios e ênfase na competição entre privados e fábricas.
Esta matéria é uma amostra do nosso conteúdo diário exclusivo para assinantes, e foi publicada sem restrições de acesso a caráter de degustação.
A sua assinatura é fundamental para continuarmos produzindo, tanto aqui no site quanto no YouTube, nas redes sociais e podcasts. Escolha seu plano abaixo e torne-se um assinante! Além das matérias exclusivas, você também ganha um convite para o grupo secreto (exclusivo do plano FlatOuter), onde poderá interagir diretamente com a equipe, ganha descontos com empresas parceiras (de lojas como a Interlakes a serviços de detailing e pastilhas TecPads), e ainda receberá convites exclusivos aos eventos para FlatOuters.


