Eu já disse algumas vezes por aqui que, dirigir é algo que nos faz refletir sobre as coisas. Você está lá, sozinho entre o céu e o asfalto, com uma música ambiente, temperatura controlada, só esperando os quilômetros passarem até chegar ao fim da contagem. É natural começar a contemplar o que se vê e o que se pensa. No mês passado dirigi pouco mais de 3.000 km, e acabei observando o comportamento dos motoristas, o panorama rodoviário, os acontecimentos do trânsito. Isso sempre acontece.
Às vezes eu chego a conclusões ácidas, como a modesta proposta para acabar com os parasitas da faixa da esquerda. Às vezes, eu realmente fico interessado no fenômeno social que é o ato de se conduzir um automóvel em uma rodovia. O trânsito fluía razoavelmente bem para uma quarta-feira de manhã até que, sem motivo aparente, os carros à frente começam a frear e uma carreta carregada vai para a esquerda. Isso normalmente acontece quanto há um caminhão ainda mais lento na direita. Mas naquele momento o problema era um Ford Fiesta.
Uma modesta proposta – para resolver de uma vez por todas o problema da faixa da esquerda
E era um problema mesmo. Não era um motorista exercendo seu direito de dirigir. Era um problema de segurança rodoviária. Porque estávamos em uma rodovia com limite de 120 km/h, mas o sujeito estava tão devagar em relação a todo o resto, que uma carreta carregada precisou desviar dele. E quando a carreta desviou, aconteceu a infalível reação em cadeia. Os carros na faixa da esquerda foram freando até que, alguns metros atrás do meu carro, o trânsito parou completamente.
Parar completamente em um lugar onde se pode viajar a 120 km/h não é bom negócio. Não precisa ser engenheiro de tráfego ou mesmo um motorista experiente para saber que o risco de acidente aumenta quando isso acontece. Depois de cumprimentar cordialmente o motorista do Fiesta, comecei a reparar mais a faixa direita — em muitos momentos dirigindo por ela — e percebi que, talvez, o parasita da faixa esquerda seja reflexo de outro tipo de mau motorista: o motorista alienado.
Veja: em muitas ocasiões o parasita da faixa esquerda não estava lento demais. Ele só estava mais lento que outros motoristas que vinham atrás, próximos do limite de velocidade — ele estava a 110 km/h e os outros a 120 km/h. E ele não quer rodar pela direita porque ali irá encontrar o tal do motorista alienado.
O nome diz tudo: ele está completamente alheio do que está acontecendo ao seu redor. Se há uma carreta esbaforindo diesel no seu cangote, ele nem viu. Ele está na velocidadezinha dele, concentrado no seu carro, na sua rota e em nada mais. Se o limite é 120 km/h, talvez ele nem saiba, porque ele sempre dirige a 80 km/h. Para ele, isso não é problema, porque ele está devagar, afinal, e todo mundo sabe que perigoso mesmo é o excesso de velocidade, não a falta. E tem mais: ele tem amparo legal, porque a velocidade mínima é sempre 50% da máxima. Então ele pode dirigir a 60 km/h, se quiser.
E aí o que acontece? O motorista que não quer dirigir a 120 km/h, mas quer andar a 100 km/h precisa ir para a faixa da esquerda. E aí o negócio começa a ficar perigoso, porque haverá mudanças de faixa em diferentes velocidades. É aqui que mora o problema: o diferencial de velocidade.
Nós já explicamos isso dezenas de vezes nestes quase dez anos de FlatOut: nos anos 1960 um cientista chamado David Solomon analisou uma série de acidentes rodoviários ocorridos nos EUA e encontrou como fator comum o diferencial de velocidade entre os envolvidos no acidente e o restante dos veículos. Ao apresentar as conclusões, ele chegou a um gráfico que ficou conhecido como “Curva de Solomon”, e que ilustra como a velocidade diferencial aumenta o risco de acidentes.
A proposição teórica por trás da Curva de Solomon é a seguinte: se um motorista está a 90 km/h enquanto a velocidade média naquela via é de 110 km/h, quantos carros irão passar por ele em uma hora e quantos destes carros podem acabar colidindo neste motorista mais lento?
Trazendo para o mundo real: as rodovias têm uma velocidade projetada. As características como inclinação, relevo, acesso, adensamento etc, são levadas em consideração para se chegar ao limite teórico de velocidade. Depois há a velocidade operacional, que é a velocidade na qual 85% dos motoristas dirige em determinada via, sem que haja indicação de limite. Quanto mais um motorista se distancia destes outros 85%, maior a chance de ocorrer um acidente.
Se ele for mais rápido, ele irá passar por mais carros em um determinado intervalo de tempo. Se ele for mais devagar, mais carros irão passar por ele nesse intervalo de tempo. E aí a ciência da probabilidade explica: mais carros passando, mais chances de um evento acontecer.
Então, voltando ao motorista alienado, ele passa despercebido dos estudiosos da segurança do trânsito e mesmo do imaginário popular, porque ele está devagar, então está seguro. E não apenas isso: quando esse motorista está em uma via de pista simples, ele se torna o famoso puxador de fila, que torna o trânsito lento e causa congestionamentos — os famosos congestionamentos fantasma, que também já vimos por aqui.
Por que o trânsito para de repente – e a fila ao lado fica mais rápida?
Quando ele se torna o puxador de fila, um outro aspecto entra em cena: o fator psicológico dos outros motoristas que ficam atrás dele, impossibilitados de ultrapassar. Como ele anda abaixo do limite, ele contraria as expectativas daquele motorista que só quer dirigir um pouco mais rápido. E quanto mais tempo atrás do motorista alienado, agora puxador de fila, mais chances de a paciência se esgotar e forçar uma ultrapassagem. E aí vem o risco. Não se trata de transferir responsabilidade; é uma mera análise da realidade.
E ainda há a situação do congestionamento. Na maioria das vias expressas e anéis viários mundo afora, a lentidão não se dá pelo “excesso de veículos”, mas pelo excesso de motoristas alienados, dirigindo lentamente. Com a campanha intensa contra a velocidade e o medo de ser multado, dirigir devagar virou virtude rodoviária.
A solução, em alguns casos, pode ser simplesmente elevar o limite de velocidade ou ao menos conscientizar os motoristas para não dirigir lentamente. Foi a solução encontrada pelas autoridades de trânsito de Medelim, na Colômbia, onde fica o Túnel do Oriente.
O túnel é o mais longo da América Latina, porém tem pista simples de mão dupla. Ou seja: os carros atravessam enfileirados os mais de oito quilômetros do túnel. Se um motorista alienado decidir dirigir a 40 km/h por achar que é mais seguro, o trânsito acaba parando dentro do túnel. O problema disso é que um acidente dentro do túnel é difícil de se atender — afinal, você está dentro de um cano de 8.000 metros enfiado em uma montanha —, mas a principal razão é o risco de concentração de monóxido de carbono. Ficar parado em um ambiente pouco ventilado e cheio de monóxido de carbono pode resultar na intoxicação dos motoristas — e ela pode ser letal.
Por isso o túnel tem limite de velocidade máximo e mínimo estabelecido por sinalização. Você não pode passar dos 70 km/h, nem baixar de 60 km/h. Assim, o diferencial de velocidade é reduzido e o risco de se formar um congestionamento fantasma por uma reação em cadeia é significativamente reduzido.
Até os anos 1990 os EUA adotavam isso em suas expressways. Havia placas orientando o motorista a manter o ritmo do fluxo para evitar esse tipo de congestionamento e reduzir as mudanças de faixa, que podem resultar em acidentes. Atualmente, os EUA têm limite de 70 mph (112 km/h) nas Interstates que não passam por zona urbana, com velocidade mínima de 45 mph (72 km/h). Alguns estados impõem limite mínimo de 40 mph (64 km/h) em suas rodovias intermunicipais, mas outros não têm limites mínimos.
Outro país que impõe limite mínimo em suas rodovias é a Alemanha — e nem poderia ser diferente, afinal. As Autobahnen são famosas por seus trechos sem limites máximos de velocidade. Para manter a segurança nessas rodovias, que têm três faixas em cada sentido, o limite mínimo na faixa rápida, mais à esquerda, é de 110 km/h. Na faixa central, não se pode dirigir a menos 90 km/h e na faixa da direita, destinada aos veículos mais lentos, é preciso dirigir a, pelo menos, 60 km/h.
Na França, é proibido dirigir a menos de 80 km/h na faixa da esquerda, enquanto na Espanha esse limite mínimo é 60 km/h — o mesmo adotado no Canadá.
O caso mais interessante é o da Austrália: eles não consideram a velocidade, mas o risco de obstrução do tráfego. Por exemplo: dirigir a 50 km/h em uma via com limite de 100 km/h não é considerado infração em uma rodovia vazia, durante a madrugada. Porém, em um feriado, com a rodovia cheia, o motorista a 50 km/h pode ser abordado por obstrução do tráfego, uma vez que o limite de 100 km/h foi imposto para que as pessoas pudessem dirigir em velocidades próximas dos 100 km/h. Tem a ver com a finalidade da via, também: uma via rápida deve ser rápida, afinal.
No Brasil, algumas rodovias têm paineis que indicam a velocidade dos motoristas e orientam a reduzi-la, caso ela esteja acima do limite. Estes mesmos paineis poderiam, por exemplo, orientar os motoristas a elevar sua velocidade no caso de se estar lento demais.
É algo que ajudaria a conscientizar os motoristas de que a velocidade baixa demais pode ser perigosa e ajudaria no condicionamento do motorista que não está acostumado a dirigir em rodovias, induzindo-o a dirigir em uma faixa mais estreita de variação de velocidade — entre 100 km/h e 120 km/h, por exemplo. Isso reduziria as ultrapassagens de veículos muito lentos por veículos menos lentos, reduzindo o risco de acidentes e tornando o trânsito mais fluido.
Será pedir demais?
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