William Shakespeare já dizia sabiamente que “o problema com as citações da internet é que é muito difícil atestar a veracidade delas”. E ele tinha razão. A internet está infestada de citações atribuídas a autores que nunca as disseram. O universo automotivo também tem as suas. E como você já sabe, nós adoramos verificar mitos. Já descobrimos quem disse que “nada substitui as polegadas cúbicas” e procuramos a entrevista em que Paul Walker teria profetizado, sem querer, sua própria morte.
Desta vez a citação é um pouco menos conhecida, mas igualmente impactante: “Racing is life. Anything that happens before or after is just waiting“. A frase foi dita por Michael Delaney, o personagem de Steve McQueen, em “As 24 Horas de Le Mans” (Le Mans – 1971) e até hoje é uma espécie de mantra para os ratos de pista, pilotos e entusiastas do automobilismo, que atribuem sua autoria ao próprio McQueen.
Aí começa a controvérsia: quem disse a frase foi Steve McQueen, porém no papel de Michael Delaney. Por mais que McQueen fosse piloto e entusiasta, Delaney não era seu alter ego, mas um personagem que McQueen interpretou como ninguém mais poderia interpretar. Nesse caso, a citação é do ator que a declamou, do personagem ou do autor do roteiro?
Bem, isso depende de quem colocou a frase lá. McQueen não dirigiu, nem escreveu, nem produziu o filme, embora tenha sido a engrenagem que fez tudo funcionar para que a história saísse do script. Mas é muito comum que atores improvisem falas e introduzam no roteiro expressões com as quais eles se sentem mais naturais. O ator Thomas F. Wilson, por exemplo, criou praticamente todos os bordões e gags jovem Biff Tannen em “De Volta Para o Futuro”. Então Steve McQueen poderia muito bem ter encaixado esta frase de efeito na cena. Independentemente de quem colocou a frase no roteiro, provavelmente o fez por ter visto a frase em algum lugar.
Calma: não estou acusando McQueen nem o roteirista Harry Kleiner de serem plagiadores. O que acontece é que uma variação desta frase foi usada nos anos 1960 por outro ilustre destemido: o funambulista Karl Wallenda. Tudo bem se você não sabe o que é um funambulista, porque nós costumamos chamá-los de “equilibristas que andam na corda-bamba”. Já o nome Karl Wallenda você deve lembrar porque Sílvio Santos adorava usar o trágico vídeo do equilibrista como chamariz de audiência no quadro “Isto é Incrível”.
Wallenda foi um dos mais famosos funambulistas da história, e em certa ocasião disse “To be on the wire is life; the rest is waiting“, ou “Estar na corda-bamba é vida. O resto é espera”. A citação ficou notória depois que foi publicada em um ensaio do sociólogo Ervin Goffman sobre o próprio Wallenda e sua rotina de riscos, publicado em 1967. Nesse caso, McQueen ou o roteirista teriam apenas adaptado a citação para o automobilismo, certo?
Bem… não.
Porque a citação de Wallenda e de McQueen também já havia sido usada nos anos 1940 e 1950 por um outro piloto. Rudolf Caracciola, o homem que deteve o recorde de velocidade em vias públicas por quase 80 anos (e quase 60 anos após sua morte), deixou para a posteridade duas citações famosas. A primeira é: “When speed gets in the blood, one must drive to live”, que pode ser traduzida como “Quando a velocidade entra no sangue, você precisa correr para viver”.
A segunda é, vejam só: “Racing is life. The rest is waiting“. Sim, flatouters. Rudolf Caracciola antecipou a frase de Michael Delaney em mais ou menos 30 anos. Só que ele era alemão, então a frase deve ter saído mais ou menos assim: “Rennen ist Leben. Der Rest ist Warten”.
McQueen certamente conhecia Caracciola, afinal, nascido em 1930, o ator começou a se interessar por carros quando Caracciola ainda estava na ativa. Mas isso não significa que ele copiou a frase de Caracciola também, afinal, ainda não existia o Instagram para proliferar citações apócrifas. Mas não é por isso que estou dizendo que McQueen não se inspirou em Caracciola.
Primeiro porque não encontrei nenhuma fonte confiável de que Caracciola tenha realmente dito isso — especialmente porque procurei algumas variações em alemão (eu não falo alemão, mas consegui uma tradução confiável) e ninguém atribuiu esta frase a ele em sua língua materna. Isso não significa que ele não é o autor — significa apenas que não existem evidências de sua autoria publicadas na internet.
Mas na busca pela origem da frase encontrei um livro chamado “The Quote Verifier: Who Said What, Where, and When” do autor americano Ralph Keyes (“O Verificador de Citações: Quem Disse o Que, Onde e Quando”, inédito no Brasil). Ralph aparentemente pesquisou a origem e descobriu que a frase é um clichê dos “daredevils”, profissionais destemidos como dublês, pilotos de corrida, aviadores etc.
A explicação é plausível, porque o momento em que nos sentimos mais vivos é quando deparamos com a possibilidade de morrer. E andar na corda-bamba, rasgar a Hunaudières a 400 km/h ou acelerar um carro com pneus diagonais e freios a tambor a 437 km/h em uma rodovia pública são situações em que você está a um pixel da morte. São sensações intensas que fazem o resto das atividades parecerem banais. Daí a origem do clichê. Você pode substituir “racing” por qualquer atividade perigosa que a frase continua com seu efeito impactante.
Conclusão da história: pode continuar atribuindo a frase a Steve McQueen, Michael Delaney ou Rudolf Caracciola. Você não precisa ser o autor da frase para que a citação seja atribuída ao seu nome. Basta ter dito ao menos uma vez de forma que ela tenha ficado marcada no imaginário popular. Como diria a Madre Teresa de Calcutá: “Bons artistas copiam. Grandes artistas roubam”.