Depois daquela viagem incrível para o Alasca, ainda me sobraram oito dias de férias. Eu já tinha programação certa para esses dias: resolver aqueles probleminhas chatos que dependem de marcar horário ou de fazer algum tipo de reserva na agenda de alguém e que a gente sempre acaba postergando. Mas o destino quis que nenhum dos compromissos que eu tentei agendar coincidisse com as minhas férias.
Então o que fazer? Ficar em casa sentado no sofá simplesmente não é uma resposta válida para essa pergunta! Que o general Pompeu me perdoe pelo mau uso de sua frase, mas navigare necesse est, vivere non est necesse. Navegar é preciso, viver não é preciso!
Daí eu, a poucos dias de sair para o merecido descanso, sem conseguir fazer o que inicialmente havia planejado, me vi num dilema parecido com o da viagem de outrora. Para onde eu vou? Àquela altura comprar passagem aérea para onde fosse seria caro e talvez nem conseguisse um voo, então estava mais ou menos livre para decidir o destino, já que o meu velho e bom Civic Si havia acabado de sair da revisão e seria mais uma vez devidamente usado para me levar onde eu decidisse ir.
Dessa vez fiquei entre duas opções: visitar a Chapada Diamantina, na Bahia; ou visitar as serras fluminenses. Como eu já havia feito o Caminho dos Diamantes e Velho da Estrada Real, visitar as serras seria a oportunidade perfeita para passar em parte do Caminho Novo, que eu ainda não havia percorrido. Além disso poderia aproveitar a proximidade e esticar até São Paulo e visitar alguns amigos, dentre eles o japonês do F&F Juliano Barata e curtir um show do Eddie Vedder que aconteceu no dia 30 de março. Pronto. Essa foi até fácil decidir.
Nos dias que se passaram consegui hospedagem em Petrópolis e Penedo (RJ) antes de chegar à capital paulista. Reservei os hotéis e me resolvi visitar dois parques no caminho: Parque Nacional da Serra dos Órgãos (também conhecido como PARNASO) e Parque Nacional Itatiaia (PARNAITATIAIA).
E que viagem foi essa, meus amigos!
Descendo a BR-040 rumo ao Rio de Janeiro, resolvi parar em uma cidadezinha chamada Congonhas, pertinho de BH, para visitar uma igreja. O Santuário de Bom Jesus do Matosinhos possui talvez as mais famosas esculturas de Aleijadinho, chamada “Os Doze Profetas”. Ele esculpiu em pedra-sabão os 12 apóstolos, que foram posicionados ao longo da escadaria de acesso à porta principal da igreja, além de outras esculturas na fachada da mesma. Já havia visitado esse local em 2013, porém como estava chovendo, naquela oportunidade não consegui ver as esculturas com a calma necessária para admirá-las. Desta vez o tempo estava firme, mas a montagem do palco para as missas de páscoa estavam a pleno, então as fotos infelizmente não ficaram tão boas quanto eu queria.
Esse desvio me custou mais ou menos 1h de viagem, mas como nesse caso me importava mais o caminho que o destino, o atraso não foi sentido e certo ponto até desejado.
Nas três noites seguintes em que estive em Petrópolis, decidi por dois programas bem distintos: conhecer a parte histórica da cidade e visitar o PARNASO.
Achei Petrópolis uma cidade bem charmosa. O centro histórico é bonito e bem cuidado, e as temperaturas amenas ajudam um bocado para quem gosta de andar a pé. Fiquei encantando com o Museu Imperial e seus famosos jardins e espantado com a casa de Santos Dumont e como ele era um visionário. Hoje o que os hipsters chamam de loft e acham super moderno o conceito e blablabla era como Santos Dumont morava a quase um século atrás! Até a famosa escadaria com os degraus recortados para economizar espaço e facilitar a subida é genial e foi brilhantemente executada! Sem dúvida um cérebro privilegiado e muito à frente de seu tempo. Aproveitei o tempo e ainda consegui visitar, no mesmo dia, a fábrica da Bohemia. O tour, apesar de pago, é recompensado com uma baita aula do processo de brasagem de cerveja e a degustação de três tipos diferentes ao longo do percurso.
No dia seguinte, percorri uma das estradas mais legais que já andei. A BR-495, que liga Petrópolis a Teresópolis e corta parte da Serra dos Órgãos é espetacular, e apesar do pé direito ter coçado para fazer o que os gringos chamam de canyon carving – dirigir à moda, atacando as curvas com vontade e sentindo os limites do carro – acabei optando por uma viagem mais tranquila, curtindo a paisagem, sentindo o cheiro do mato que cerca a estrada e parando no caminho para brincar de retratista.
O PARNASO possui três sedes: Guapimirim, Petrópolis e Teresópolis. Sendo a sede principal em Teresópolis, e dado à proximidade dessa com as montanhas mais famosas do Parque, é lá a entrada mais popular e recomendada para quem não irá percorrer as trilhas mais longas, atravessando a floresta e acampando no caminho.
Aqui a falta de preparo físico cobrou seu preço. Além de carregar uma mochila e estar fora de forma, percorrer uma trilha de 1200m e aproximadamente 25% de gradiente de subida no meio da floresta úmida e quente foi bem extenuante. Em compensação, quando cheguei no mirante ao final dela e pude admirar a paisagem, esqueci imediatamente o cansaço! Poder ter uma vista MATADORA das montanhas até a Baía de Guanabara e a BR-116 serpenteando os montes, num raro dia sem neblina ou chuva foi realmente recompensador!
Quando, no dia seguinte fui partir em direção à Penedo, queria novamente aproveitar o caminho. Acabei decidindo pela rota mais demorada, indo de Petrópolis a Paraíba do Sul passando por um trecho curto da BR-492 e RJ-131 e uma estradinha rural que sequer consegui achar a designação. Essa estradinha é parte da Estrada Real e passa pelo distrito de Sebollas (é desse jeito mesmo que escreve!). Este distrito é o único local que se tem notícia onde parte dos restos mortais de Tiradentes foram sepultados. Cito parte da sentença:
“(…) Portanto condenam ao Réu Joaquim José da Silva Xavier, por alcunha o Tiradentes, Alferes que foi da tropa paga da Capitania de Minas, a que com baraço e pregão seja conduzido pelas ruas públicas ao lugar da forca e nela morra morte natural para sempre, e que depois de morto lhe seja cortada a cabeça e levada a Vila Rica, aonde em lugar mais público dela será pregada, em um poste alto até que o tempo a consuma, e o seu corpo será dividido em quatro quartos, e pregado em postes pelo caminho de Minas no sítio da Varginha e das Sebollas, aonde o Réu teve as suas infames práticas, e os mais nos sítios de maiores povoações até que o tempo também os consuma; (…)” grifo meu
A história é que ele era muito amigo da senhora Ana Mariana Barbosa Teixeira de Matos, fazendeira na região onde atualmente se encontra o distrito. Pelo fato dele ter sido nomeado para ser o comandante da estrada que ligava Minas ao Rio, ele sempre estava na região e ficava hospedado na fazenda de Ana Mariana. Ela permitia que Tiradentes utilizasse as instalações para suas pregações libertárias, então o local acabou se tornando uma base importante para a Inconfidência. Para servir de exemplo, o local foi designado para receber um dos quartos do corpo dele, que deveria ficar exposto lá até que o tempo o consumisse.
As partes ficaram penduradas em um poste e foi vigiado por soldados imperiais por três dias e três noites. Na primeira noite após eles irem embora, Ana Mariana, com auxílio de seu irmão e alguns escravos, retirou os restos do local e sepultou no altar da igreja. O padre possuía um “Livro de Tombo”, uma espécie de diário de bordo da igreja, e documentou o local exato do altar onde Tiradentes fora sepultado. Graças a esse registro, pesquisas realizadas nos anos 70 acharam a localização da sede da fazenda e da capela (que já não existiam mais), conseguiram encontrar os restos mortais e os removeram para o museu.
Bem, tendo um lugar com tamanha importância histórica, apesar de encravado no planalto fluminense, não poderia deixar de visita-lo.
Nesse ponto, quando entrei na tal estradinha, quase me arrependi. Apesar de estar até bem conservada, a estrada não estava pavimentada e era muito estreita. Atropelei um pássaro, quase atropelei um cachorro e quase fui atropelado por um ônibus escolar. Apesar da adrenalina pude, pelo menos, apreciar cenários como esses.
Infelizmente o museu estava fechado para manutenção. Pela hora que cheguei lá a fome já apertava e o calor e a umidade também não cooperavam. Depois de algumas fotos segui viagem até Paraíba do Sul para almoçar e de lá parti rumo a Penedo.
Penedo é uma cidadezinha no município de Itatiaia instalada a poucos quilômetros da sede do município, que leva o mesmo nome. Esta cidade é a única colônia finlandesa no Brasil que se tem notícia e isso me chamou muita atenção. Por isso, e por ficar perto tanto da sede da Parte Baixa do PARNAITATIAIA quanto de Visconde de Mauá, locais que estavam no meu roteiro, acabei optando por ela para pernoitar. Infelizmente não consegui ir a Visconde de Mauá. Fui informado lá em Penedo que haviam ocorrido alguns deslizamentos e que, por isso, a estrada estava interditada. Além disso a volta era muito maior, quase dobrando a distância a ser percorrida inicialmente e teria que pagar pedágio até chegar lá.
Penedo me surpreendeu. Apesar de pequenina, a cidade conta com uma ótima infraestrutura hoteleira e de restaurantes. Acabei acertando na minha escolha. A cidade é cortada pelo Rio das Pedras e possui algumas cachoeiras bem bonitas na cidade. Visitei a Cachoeira de Deus e curti bastante!
Mas o mais legal sem a menor dúvida foi a visita ao Parque Nacional Itatiaia. Primeiro parque nacional brasileiro, foi fundado em 1937 por Getúlio Vargas, após a aquisição de área de 11.943 hectares do Visconde de Mauá. Em 1982 a área do Parque foi ampliada para 30.000 ha. A área atual cobre parte dos estados de Minas Gerais e Rio de Janeiro e é dividido em duas partes facilmente distinguíveis: Parte Baixa, composta de vegetação de mata atlântica, rios e cachoeiras; e Parte Alta, sendo um planalto localizado a uma altitude média de 2500m e com o Pico das Agulhas Negras sendo o ponto mais alto, a 2791m.
Como a distância entre ambas as entradas é de cerca de 55 km, e parte do caminho não é pavimentado e com pedras grandes soltas, é impossível visitar o Parque em um dia sem deixar de curtir uma das partes dele. No primeiro dia fui à Parte Baixa. Aqui, as minhas caminhadas pelas trilhas demarcadas me lembraram a da Serra dos Órgãos pela vegetação. Mas a maior diferença foram as cachoeiras, mais acessíveis e igualmente maravilhosas. Acabei escolhendo a do Véu de Noiva para descansar e tomar um banho. Como era um dia útil, o Parque estava praticamente vazio, então em raros momentos fui incomodado na minha caminhada refletindo sobre a vida, o universo e tudo mais em meio àquela natureza exuberante.
No dia seguinte, aproveitei o check-out do hotel para visitar a Parte Alta. Dutra (BR-116) rumo à São Paulo, poucos km após Itatiaia (a cidade), direita para acessar a BR-354, conhecida como Rio-Caxambu. Achei curioso que essa estrada corta três estados em um trecho curto, então ao seguir nela ora estive no Rio de Janeiro, ora em São Paulo, ora em Minas Gerais. Na altura da Garganta do Registro, novamente tomo a direita, desta vez em direção ao Posto Marcão – posto de controle de entrada do parque. A essa altura, já estava a quase 1700m de altitude, mas ainda teria mais para subir. Descobri posteriormente que essa estradinha é a mais alta do Brasil, chegando a 2450m na entrada do Parque. Foram 17 km de subida em uma estrada que ora alternava um pavimento de concreto ruim, ora não havia pavimento nenhum, com várias pedras grandes e soltas. Para um cara teimoso que viaja com carro (levemente) rebaixado, um pequeno calvário a ser seguido, mas eu tinha certeza que valeria a pena no fim. A estrada termina em uma altitude tal que durante o caminho a temperatura foi baixando e o marcador de temperatura externa chegou a marcar 13 graus às 10h30 de um dia de sol!
Chegando no Posto, fiz a entrada, assinei os termos de ciência, estacionei o carro, coloquei a mochila nas costas e iniciei a caminhada rumo ao Pico. Sei que tem muita gente que não gosta, mas a sensação de paz e isolamento ao se fazer esse tipo de passeio é revigorante! Ali, a única coisa que você precisa fazer é andar e admirar a paisagem! E quanto mais você se distancia da civilização, maior a sensação de que seus problemas ficaram para trás. Eles vão estar lá quando você voltar, mas pelo menos naquele momento eles simplesmente não te atormentarão. Você relaxa e fica com a cabeça vazia, apenas contemplando tudo ao seu redor.
Passados 3 km de caminhada nessa estrada, cheguei ao Abrigo Rebouças. Este abrigo, que na verdade é um alojamento de alvenaria com camas, colchões, banheiros, água potável de nascente e cozinha foi nomeado após o prof. André Pinto Rebouças, um prolífico engenheiro dos tempos do Império e conselheiro de Dom Pedro II que visitou a área em 1878 e incentivou a criação do Parque, fato que ocorreu 39 anos após sua morte.
Ali parei para comer algo, tomar uma água e descansar. Assim que recobrei o fôlego, segui a trilha rumo ao Pico das Agulhas Negras. Senhores, que visual! Nem parecia o mesmo lugar que eu visitara no dia anterior! Absolutamente incrível. A vegetação típica de campos de altitude, com muitos arbustos, árvores baixas e gramíneas, as nascentes de rios, o solo rochoso que dificultava a caminhada, as pedras polidas por milhões de anos de ventos e chuvas, tudo isso compunha um visual surpreendente para um país acostumado com a exuberância das florestas e do cerrado. Sendo franco com vocês, nem parecia o Brasil, e me fez em muitos aspectos me lembrar daquela viagem do Alasca.
Num determinado ponto do trecho havia uma bifurcação que levava ao Pico ou a Pedra do Altar. Acabei optando por seguir até a Pedra, pois para chegar próximo ao ponto de escalada da montanha era necessário atravessar um vau onde a água batia na cintura. Como não estava preparado para isso e o tempo estava frio, fui no caminho mais lógico. Não fiquei nem um pouco chateado por não chegar mais perto, estava maravilhado por ter chegado até ali e apenas o exercício e o ar puro já me bastavam para relaxar e esquecer das vicissitudes que nos acometem diariamente.
Como teria que me apresentar no Posto Marcão impreterivelmente até as 17h, controlei bem o horário para não atrasar. Por volta de 15h comecei a retornar. Precisamente às 16h30 estava com o carro posicionado para seguir rumo à São Paulo. E lá vamos nós descendo devagar, curtindo a paisagem, janelas abertas e a playlist tocando baixinho no som. Sentia que meus ouvidos estavam saneados, sem aquele zumbido que a gente acaba até se acostumando por causa da poluição sonora nas zonas urbanas, e queria preservá-lo assim a maior quantidade de tempo possível, mas também precisava de música para tornar aquela experiência ainda mais sensorial.
Logo após terminar os 17 km e tomar a direção correta na Rio-Caxambu, agradeci ao carro com dois tapinhas no painel e um sorriso. Como uma pessoa que diz “bom garoto” a um cão leal, ou até melhor, a um cavalo amigo e obediente, naquele momento eu experimentei sensações parecidas de quando estive no topo do mundo. Não fiz nada demais, apenas resolvi pegar o carro e dar umas voltas por aí para aproveitar uns dias de férias. Mas por razões que eu ainda não sei explicar – e talvez nunca saberei – me senti muito bem comigo. E mais uma vez aquele 1,3ton de metais, derivados de petróleo e materiais inflamáveis em geral que um cidadão normal chama de carro, mas eu chamo de companheiro, estava comigo e enfrentou sem resmungar, sem superaquecer, sem fazer nenhum barulho estranho ou até mesmo furar um pneu em condições adversas. Assim foi pela minha passagem por São Paulo – onde ele me levou para encontrar o Juliano e o Felipe (produtor de parte dos vídeos do Flatout, em especial o Flatout Midnight) e mais uma galera gente finíssima e reviver a época dos encontrinhos em posto de gasolina – e a volta até chegar novamente em casa. A galera até se espantou como o carro estava sujo, mas eu nem liguei. Para mim, esse tipo de sujeira faz com que o carro ganhe ainda mais personalidade.
Não é pelo bem material em si que a gente acaba gostando tanto desses aparelhos. É por eles nos levarem para viver! Graças aos carros fiz amigos que levo para a vida, conheci pessoas e lugares incríveis e acabei aprendendo muito sobre mim mesmo nas incontáveis horas atrás do volante, seguindo em frente e percorrendo meu caminho. Será que é essa a explicação do nosso fascínio pelos automóveis e roadtrips?