A reputação da Shelby American como preparadora é inquestionável e totalmente merecida. Nos anos 60, o texano Carroll Shelby não parou um minuto e, ao longo de uma década, transformou o pacato roadster britânico AC Ace em um canhão com motor V8 americano; fez do Mustang um carro de corridas competente e no processo, criou o carro de aluguel mais lendário do mundo e pavimentou o caminho para uma das linhagens de muscle cars mais incríveis de todos os tempos; e ainda achou tempo para ajudar a Ford a vencer as 24 Horas de Le Mans quatro vezes seguidas entre 1966 e 1969.
Se você é leitor assíduo do FlatOut, provavelmente já leu todas estas matérias dos links, mas nunca é ruim relembrar a história de um dos preparadores mais lendários de todos os tempos. Fica mais fácil entender o quanto a Shelby e quase tudo o que veio dela era incrível – mesmo que fosse um hot hatch aos moldes do Golf GTI, com tração dianteira e tudo. Aliás, especialmente se fosse um hot hatch aos moldes do Golf GTI, com tração dianteira e tudo. E a gente sequer mencionou que, em 1959, Carroll Shelby foi um dos pilotos que conduziram o Aston Martin DBR1 à vitória em Le Mans.
Sendo assim, quando Carroll Shelby decidiu que sua companhia estava pronta para lançar seu primeiro carro projetado totalmente in house, ele fez direito, não?
Hm… não.
E a questão era justamente esta: o Series 1 foi o primeiro carro projetado do zero pela Shelby e, como carro, não devia ser tão ruim, de verdade. Conceitualmente era bem interessante. No entanto, a inexperiência com o processo de criar um carro do zero, de uma folha em branco, acabou cobrando seu preço – além do fato de a saúde de Carroll Shelby, então com quase 80 anos de idade, estar se deteriorando. Shelby parou de pilotar no fim dos anos 50 por conta problemas cardíacos que o acompanharam por toda a vida.
O Series 1 começou a ser projetado em 1994 e estava pronto para começar a ser fabricado já em 1998. Se você reparou certa semelhança com as feições do Cobra, especialmente na dianteira, é claro que não é por acaso. Shelby até poderia ter chamado o roadster de “New Cobra” ou algo assim, mas felizmente não foi o que aconteceu: ele preferiu deixar que apenas o visual do carro lembrasse o clássico, e por isso fez questão de batizar o carro como “Series 1”. Era um produto novo, afinal de contas.
Há quem diga que o Series 1 já começou a dar errado quando a Shelby decidiu utilizar componentes da General Motors em sua construção, em vez de peças de origem Ford, como já era tradição. Não iríamos tão longe mas, de fato, talvez usar as entranhas do Mustang dos anos 90 fizesse mais sentido. No entanto, a rixa entre GM e Ford é só um detalhe nesta história.
O Shelby Series 1 tinha cara de kit car, é inegável. Gaps irregulares na carroceria, curvas em excesso, recortes fora do lugar, silhueta que parece uma mistura de Corvette e Dodge Viper e dianteira com um quê de… Jaguar D-Type? É, parece o D-Type. As rodas pareciam meio enfiadas demais nos arcos dos para-lamas, o que acentuava a impressão de um produto “amador”. O que sequer era verdade: a real é que a estrutura e os métodos de construção do Series 1 eram bem avançados.
O chassi usava uma armação do tipo favo de mel de alumínio extrudado, colada ao assoalho em chapas de alumínio. Já a carroceria usava painéis laminados de fibra de carbono e fibra de vidro, contribuindo para a rigidez e para a leveza sem elevar tanto assim os custos de produção. A suspensão usava um arranjo de braços triangulares sobrepostos na dianteira e na traseira, exceto que os amortecedores eram montados inboard e eram atuados por braços articulados.
Naquela época, Shelby tinha uma relação muito boa com a Oldsmobile, extinta divisão da GM que ficava posicionada logo abaixo da Cadillac em termos de valor, e que também funcionava como o laboratório de motores da General Motors. Isto ajuda a explicar a escolha por componentes GM, começando por um motor de 370 cv inspirado em um projeto da Oldsmobile para a Fórmula Indy.
Por esta mesma razão, muitos outros componentes do Series 1 vinham das prateleiras da General Motors. Boa parte do acabamento interno era Pontiac, incluindo o quadro de instrumentos e o sistema de ar-condicionado. O rádio com toca-fitas e CD-player era Buick, e peças como as saídas de ar e maçanetas vinham dos carros da Chevrolet.
Repare nos pedais e no volante deslocados para a esquerda em relação ao banco – possivelmente porque, com o bloco do motor e os coletores de escape, não sobrou muito espaço para a coluna de direção
O pessoal da revista Car and Driver americana, que acompanhou o desenvolvimento do Shelby Series 1 de perto, garantiu na época que o Series 1 era mais bonito ao vivo do que nas fotos. Tanto que, pouco depois do Salão de Los Angeles de 1998, onde foi apresentado, o roadster recebeu mais de 200 encomendas, mediante um depósito de de US$ 25.000 dólares (o equivalente a cerca de US$ 37.000 em valores corrigidos). O valor total do carro, na época, foi anunciado em US$ 99.975 (pouco mais de US$ 150.000 hoje em dia). E foi aí que os problemas começaram.
A Shelby não previa que lançar um carro novo no mercado fosse tão difícil. Os modelos anteriores eram versões modificadas de outros carros, e não precisavam passar por todos os testes de homologação exigidos pelo governo e pelos órgãos de trânsito.
Tal burocracia acabou atrasando a entrega dos primeiros automóveis. Mas se fosse só isto, tudo bem: a Shelby também repassou os custos adicionais do processo de homologação para os clientes – incluindo a adoção de um motor V8 menos potente, de 324 cv, pois os níveis permitidos para emissões de poluentes ficaram mais restritos no meio-tempo. Ou seja, as pessoas teriam de pagar mais caro por um carro menos potente. O quanto mais caro? De US$ 100.000 para US$ 135.000 (por volta de US$ 200 mil em dinheiro de hoje).
O Series 1 pesava 1.220 kg e era capaz de ir de zero a 100 km/h em 4,4 segundos, cumprir o quarto-de-milha em 12,8 segundos a 180 km/h e continuar acelerando até os 273 km/h. Também fazia curvas muito bem e gerava 0,92G de aceleração lateral. Mas nada disso evitou que o número de pedidos caísse drasticamente.
Para tentar reverter a situação, a Shelby logo anunciou uma versão com supercharger do motor V8 Oldsmobile, capaz de entregar 456 cv. Seria o bastante para levar o Series 1 de zero a 100 km/h em 3,2 segundos.
As encomendas, porém, não decolaram, e a Shelby produziu apenas 249 exemplares do Series 1 em 1998 e 1999, todos como modelo 1999.
As rodas de 18 polegadas pareciam pequenas com o enorme espaço entre os pneus e os arcos dos para-lamas
O fracasso foi um baque financeiro para a Shelby, que quase foi à falência por conta do prejuízo. Em 2005, recuperada, a companhia decidiu retomar a produção do carro, mas havia um empecilho: a homologação do Series 1 havia expirado. Por isso, os poucos exemplares feitos em 2005 formam entregues sem motor e câmbio. Este ficava por conta do comprador.
Depois disto, a Shelby decidiu que era hora de voltar a fazer o que sabia bem. Por sorte, foi bem a tempo do lançamento da quinta geração do Mustang, que trouxe de volta a mística do muscle car dos anos 60. A cooperação com o Oval Azul se mostrou bem mais produtiva, como sabemos muito bem.