A semelhança de Enzo Ferrari e Carroll Shelby é um tema recorrente aqui no FlatOut. Você sabe: os dois foram militares na guerra, os dois foram pilotos bem-sucedidos, os dois acabaram impedidos de continuar correndo, os dois se tornaram chefes de equipe e os dois se tornaram construtores de automóveis. Eram antagonistas, mas só por que eram exatamente iguais. E os dois tinham personalidade forte e marcante o bastante para render uma série interminável de histórias pitorescas.
Enzo Ferrari, por exemplo, demitiu todo o alto escalão de sua própria empresa quando eles ousaram confrontar sua esposa. Ele também mandou a Lamborghini um sonoro vaffanculo. Shelby gostava de resolver algumas coisas com um martelo, desafiava seus passageiros, fez um Cobra parecer vários e… não gostava dos Beatles.
A história do martelo a gente já contou por aqui, mas agora trago mais detalhes: em 1964 os carros da classe GT precisavam ser GT de verdade, e isso significa, entre outras coisas, ter espaço mínimo para bagagem.
Para verificar esse requisito dos carros de corrida, a FIA usava uma caixa de madeira simulando uma maleta comum. Era uma caixa de 60 cm de largura, 40 cm de comprimento e 20 cm de altura. Os carros com motor até 2 litros precisavam acomodar uma destas caixas. Se o motor fosse maior, o porta-malas precisava acomodar duas caixas.
Os fiscais solicitavam que o chefe de equipe abrisse o porta-malas e tentavam colocar as caixas lá dentro. Se elas não coubessem ou se o porta-malas não fechasse, o carro era reprovado. Na hora de colocar as caixas no Cobra, ela entrou no bagageiro, mas a tampa não fechou.
A partir daqui, a história tem várias versões, mas uma delas — e a melhor de todas —, diz que Shelby pediu um instante para um ajuste técnico, sacou seu martelo, desferiu algumas pancadas na tampa do pobre Cobra, fechou o porta-malas com as caixas lá dentro e, cinicamente, obteve a aprovação para correr com os carros. Se é verdade… quem saberá?
Há diversas fotos de época dos carros com estas saliências, mas elas não parecem ter sido feitas “no improviso” — embora um bom artesão consiga o formato com um molde de madeira (como eram as caixas da FIA). Além disso, há imagens dos carros em um galpão com estas saliências na tampa, e a Shelby também fez carros com o porta-malas “FIA”, que têm um recorte na estrutura do assoalho para acomodar as caixas.
A história seguinte é dos primórdios do Cobra: quando o primeiro AC-Ford Cobra ficou pronto — ele tem código de chassi CSX2000 —, Carroll Shelby o pintou com um tom vibrante de amarelo porque achava que o carro se destacaria em qualquer lugar. O amarelo tinha um problema, contudo: aquele era o único carro da Shelby e, por ser amarelo e facilmente identificável, cada vez que ele fosse exibido, as pessoas lembrariam dele. Era bom por um lado, mas também deixava claro que a Shelby só tinha um carro, e não uma produção em série.
Carroll Shelby então começou a pintar o carro de cores diferentes cada vez que o exibia ou cedia para fotos promocionais e avaliações.
A estratégia deu certo: Shelby convenceu os clientes e jornalistas de que ele tinha mais de um Cobra e a produção do carro foi iniciada, assim como seu programa de automobilismo. No fim, o CSX2000 acabou pintado de azul metálico — cor que ostenta até hoje.
Três anos depois, em 1965, quando Shelby lançou o Cobra com o motor 427, ele demonstrava a potência do carro de uma forma muito convincente: ele prendia uma nota de 100 dólares na tampa do porta-luvas e desafiava seu passageiro a pegá-la durante a arrancada do carro. Segundo a lenda, Shelby nunca perdeu 100 dólares desse jeito.
A última história é de como os Beatles atrapalharam Carroll Shelby nos primeiros anos do Cobra. Sim: os Beatles, não os Beetles.
O que aconteceu: em determinado momento de 1963, quando o Shelby Cobra já era um carro conhecido, especialmente com aquela efervescência toda de cultura jovem, rock, surf, carros modificados e afins. Por isso, ele atraiu uma jovem compositora chamada Carol Connors, que havia ganhado dinheiro com suas músicas — uma delas muito apreciada por Carroll Shelby — e queria muito comprar um Shelby Cobra, mas acabou não conseguindo e, por isso, escreveu uma música sobre ele.
Aqui a história tem algumas divergências, como tudo o que envolve o folclore automobilístico daqueles tempos. Uma versão diz que a garota ainda não tinha idade para legalmente ter um carro e, por isso, não conseguiu comprá-lo de Shelby. Essa história foi narrada por Carroll Shelby em uma entrevista nos anos 1990, mas ela não se sustenta pois Shelby diz que a garota tinha 17 anos e a idade legal para se ter um carro, na época, era 21 anos. Carol Connors, contudo, tinha 21 anos quando o Shelby foi lançado, em 1962, então sempre teve idade para comprá-lo.
A outra versão, e a mais plausível delas, diz que ela havia batido o carro do namorado, um AC Bristol, e queria que Shelby colocasse a frente do Cobra no roadster inglês. Shelby, segundo consta, começou a rir da situação, mas lançou um desafio: “Se você escrever uma música sobre o Cobra e ela chegar ao número 1 nas paradas, eu te dou um Cobra novinho.”
Desafio feito, desafio aceito: Carol escreveu uma música chamada “Hey Little Cobra”, que foi gravada por um grupo chamado The Rip Chords e foi lançada em 1963.
Em 13 dezembro daquele ano, a música entrou na lista das 100 mais tocadas da revista Billboard nos EUA, estreando na 84ª posição. Na semana seguinte, a música subiu para a 69ª e iniciou uma escalada típica dos grandes sucessos da história. Em oito semanas ela se tornou a quinta música mais tocada nos EUA. O presente de Carroll para Carol parecia apenas uma questão de tempo.
O problema é que, quando a “Hey Little Cobra” estava em sua sexta semana nas paradas, uma outra música começou a tocar nas rádios americanas: “I Want To Hold Your Hand”, composta, gravada e executada por quatro jovens britânicos de Liverpool, conhecidos como “The Beatles”. A semana na qual “Hey Little Cobra” chegou à quinta posição foi exatamente a mesma em que os Beatles conseguiram seu primeiro “número 1” nas paradas americanas, evento que deu início à Beatlemania.
“Hey Little Cobra” ainda subiu para a quarta posição na semana seguinte, de 1º a 7 de fevereiro de 1964 e ficou por lá mais uma semana, mas não era páreo para o sucesso dos Beatles. Na semana de 22 de fevereiro, “Hey Little Cobra” começou a cair e, depois de 14 semanas, ela saiu da lista das 100 mais tocadas e acabou ofuscada por tudo o que aconteceu em seguida. E é por isso que Carroll Shelby dizia odiar os Beatles: eles impediram que uma música sobre seu carro fosse a mais tocada nas rádios dos EUA.
Quanto à promessa, mesmo sem a música no topo das paradas, Shelby acabou dando um Cobra de presente à jovem Carol Connors. Afinal, a música não chegou ao número 1 da Billboard, mas chegou ao número 1 da lista de outras duas revistas. Curiosamente, Carol Connors conta que a casa onde vive até hoje foi comprada com outra música: “Gonna Fly By Now” — sim, o tema de “Rocky, o Lutador”.
E quanto à música dos Beatles, bem… “I Want to Hold Your Hand” ficou só sete semanas nas paradas — metade do tempo de “Hey Little Cobra”. Só que ela foi desbancada por “She Loves You”, outra música dos Beatles — que ficou 15 semanas nas paradas. No total, os Beatles tiveram 20 músicas no topo da lista das mais tocadas, um recorde intocado até hoje.
Agora… esta história nos traz a uma improvável semelhança de Shelby com os Beatles.
Veja só: os Beatles começaram a gravar seu primeiro disco no mesmo ano em que Carroll Shelby começou a desenvolver o primeiro Cobra. Em 1963 os Beatles lançaram seu primeiro single nos EUA, e Shelby vendeu o primeiro Cobra na Europa. Em 1966, os Beatles lançaram seu disco mais bem-sucedido (“Sgt. Peppers Lonely Hearts Club Band”) e Carroll Shelby conquistou seu maior feito como construtor/chefe de equipe ao vencer as 24 Horas de Le Mans. Em janeiro de 1970 Carroll Shelby anunciou o encerramento da Shelby American. Três meses depois, Paul McCartney anunciou o fim dos Beatles. Seria a Shelby os Beatles dos carros?