Uma coisa que sempre me intrigou em Gran Turismo era o fato de os carros competirem sem qualquer modificação, totalmente originais “de fábrica”, em competições de verdade, realizadas em autódromos fechados, com regulamento, sistema de pontos, pit-stops, público, treinos de classificação e tudo o mais. Claro, não estou cobrando ultrarrealismo de um semi-simulador para consoles, mas já naquela época – quase vinte anos atrás – eu me perguntava se existia algo assim no mundo real.
E não apenas no Gran Turismo do primeiro PlayStation, mas também em todos os outros títulos da franquia e outras séries de jogos de corrida, como o próprio Need for Speed, Test Drive ou Forza Motorsport. Será que existe uma categoria sancionada que pode ser disputada com um carro todo original, sem qualquer modificação de motor, suspensão, freios ou aerodinâmica?
Pois a gente não estaria fazendo este post se não existisse. Ela se chama Showroom Stock e, como o nome diz, é exclusiva para carros com configuração “direto da loja”, sem qualquer modificação.
A Showroom Stock foi criada em 1972 nos Estados Unidos pelo SCCA, o Sports Car Club of America. A ideia era proporcionar uma porta de entrada mais acessível ao automobilismo amador, atraindo mais pessoas ao esporte a motor e, consequentemente, aumentando a popularidade das categorias mais altas, para carros de competição.
O regulamento era mesmo simples: não eram permitidas modificações que alterassem o desempenho do carro, fossem em motor, câmbio ou suspensão, ou mesmo redução de peso. O interior deveria ser completo, com todos os equipamentos (de série ou opcionais) e as únicas alterações permitidas eram a instalação de itens de segurança, como uma gaiola de proteção e extintor de incêndio; e a troca dos pneus originais por outros de perfil mais baixo. Só.
Não há muitos registros visuais públicos da Showroom Stock em seus promórdios, mas os poucos que existem são nada menos que sensacionais. É o caso desta corrida de 1980 no circuito de Road Atlanta, no estado da Georgia, entre carros como o VW Golf Mk1, o Ford Fiesta Mk1 (sim, o Fiesta foi oferecido nos EUA de 1978 a 1980. Coisas da crise do petróleo…) e o AMC Gremlin – na íntegra, todos os 40 minutos.
Não é preciso mais de cinco minutos, porém, para entender o que tornava estas corridas fascinantes para quem assistia e divertidíssimas para quem competia. Os carros eram bem mais lentos do que geralmente se espera de uma corrida “de verdade”, mas eram levados ao limite sem muita dificuldade porque estes limites não eram tão altos assim. O Golf Mk1, por exemplo, tinha um motor 1.6 EA-827, que deu origem ao nosso AP, com menos de 80 cv. Mas, é como dizem: é muito mais interessante dirigir rápido em um carro lento do que o oposto.
Assim, mesmo sem atingir velocidades alucinantes, as corridas eram bastante competitivas. Como o desempenho dos carros era semelhante, os melhores pilotos protagonizavam corridas extremamente competitivas. Curvas eram atacadas com muita gana e os mais habilidosos e os freios feitos para uso comum eram submetidos a condições extremas. Com suspensão toda original, a rolagem da carroceria era substancial, e o resultado era uma competição visualmente muito intensa.
Também havia classes para carros esportivos, mais potentes, como o Ford Mustang, o Chevrolet Camaro, o Toyota MR-2 e o Porsche 944. Eram veículos mais velozes e potentes que ficavam mais à vontade no circuito, mas as regras eram exatamente as mesmas. O onboard abaixo é de 1991, em Summit Point, em Jefferson, Virginia.
Estas categorias com carros mais potentes também recebiam mais atenção da mídia e até chamavam a atenção de algumas equipes mais estruturadas, e por isso alguns carros até tinham patrocinadores. Mas não se engane: eles também eram originais!
No início, as corridas da Showroom Stock eram provas de abertura para corridas “de verdade”, por assim dizer. Com o passar dos anos, porém, a categoria foi crescendo em popularidade e tornou-se uma competição por si só, gerando outras competições semelhantes, tanto nos EUA quanto em outros países. Naturalmente, com a evolução dos próprios automóveis, o regulamento também passou a permitir pneu slick, componentes de transmissão mais robustos e radiadores extras. No entanto o foco é sempre aumentar a durabilidade e a segurança, e nunca o desempenho dos carros.
Agora, a esta altura você deve estar se perguntando se houve algo parecido no Brasil. A resposta é sim: a Divisão 1 de turismo contava, nas décadas de 1960 e 1970, com a categoria Estreantes e Novatos, cujo regulamento era bem similar ao que a SCCA estipulava para a Showroom Stock, ainda que fosse mais brando.
Era permitido, por exemplo, reduzir peso retirando os para-choques; instalar amortecedores mais rígidos e barras estabilizadoras; remover o filtro de ar e os abafadores do escapamento e instalar pneus radiais de rua (a maioria dos carros ainda vinha com pneus diagonais, cujos flancos dobravam de forma muito mais acentuada). De acordo com o Apêndice J da FIA, no qual as regras da Divisão 1 eram baseadas, os carros precisavam de um santo-antônio no interior – algo muito mais rudimentar do que uma gaiola de proteção, sendo apenas uma barra transversal atrás dos bancos dianteiros. O ideal era fazê-la de metal, mas havia quem usasse tubos de PVC – que eram mais leves, embora não oferecessem nem de longe o nível de proteção necessário.
E para quem duvida que uma categoria com carros originais sirva para alguma coisa, Ingo Hoffman já declarou que sua estreia no automobilismo de verdade aconteceu aos 19 anos, em 1972, pilotando um Fusca com motor 1500 na Estreantes e Novatos.
A gente acompanha diariamente a evolução dos carros de corrida, cada vez mais tecnológicos, eficientes, velozes e seguros; e a gente sabe que estes avanços do automobilismo de elite são o que possibilita às fabricantes testar e implementar novas tecnologias a nossos carros. Você só precisa mudar sua forma de encarar o automobilismo para entender o que torna a Showroom Stock uma categoria tão interessante: são carros iguais, idênticos ao que muitos de nós dirigimos todos os dias para ir ao trabalho, fazer comprar ou viajar com a família. Bons tempos de automobilismo raiz!